Ítalo Calvino em As
cidades invisíveis fala dos múltiplos lugares
imperceptíveis dentro das próprias cidades, e de outras
que construímos dentro de nós. Assim, um turista ou viajante pode
avistar e perceber coisas que os moradores apressados muitas das vezes não se
dão conta.
Fazer a travessia de barca Rio-Niterói é um
desses exercícios para mim de revisitar a memória e de busca de novos olhares.
Esse percurso trilho desde 1995, e é comovente refazê-lo.
Em 2004, quando vim fazer a prova do doutorado, a travessia
foi carregada de tensão, mas não menos de desejo de que aquela paisagem se
repetisse em minha retina por um ano. Após o resultado, foi isso que se
comprovou: acompanhado dos meus amigos Agenor Júnior, do Ceará, e Márcio Both,
do Rio Grande do Sul, tais viagens, sempre na frente da barca, tendo o vento
por companhia, constituíram-se num exercício do olhar à procura
de novas facetas ao longo da travessia.
Nossas retinas buscavam tudo: dos transeuntes apressados à
procura do melhor lugar na barca, da silhueta de Niterói, do Pão
de Açúcar no Rio, da grandiosidade da Ponte (Rio-Niterói – obra da
ditadura militar), dos aviões que passavam por nossas cabeças como se nos
escalpelassem e causassem a sensação de que iriam pousar no mar, do
avistar do Cristo distante, sempre de braços abertos, da poluição da Baía de
Guanabara, a mesma que Claude Levi-Strauss achou feia pois lhe pareceu uma
boca banguela.
Ontem, fui visitar minha amiga Lícia Cristina da Hora, que
faz mestrado em Educação na UFF em Niterói. Conversarmos horas sobre política,
o cenário eleitoral de São Luís, por sinal, empobrecedor, política
universitária e nossas velhas trincheiras marxistas. Queríamos tê-lo
feito na praia de Icaraí, mas o tempo nublado não permitiu. Não faltou,
claro, o significado de novas paisagens na vida dela, morar em outro lugar,
revisitar o seu lugar sobre outra ótica.
Quando atravessei ainda do Rio para Niterói à tarde, levei
minha câmera no afã de revisitar minhas imagens – memórias, fui surpreendido
por uma nova barca; mais moderna; mais luxuosa – e que impede os usuários de
viajarem na proa –, na parte de fora. Foi broxante. Depois fiquei sabendo que o
preço da passagem subiu de R$ 2,35 para R$ 4,15. Houve manifestação, piquete e
muito protesto. É um absurdo privar as pessoas menos aquinhoadas
financeiramente de ir e vir pelo abusivo aumento de preço. Se eu estivesse lá
fatalmente também protestaria.
Na volta, já de noite, tive a sorte de pegar uma barca “velha”:
a mesma que eu, Agenor Junior e Márcio Both pegávamos em 2005. Claro,
fui para a frente pegar o vento, vendo as luzes de Niterói, do Rio, dos carros
sobre a ponte, a baía poluída da Guanabara, o Cristo distante.
Imaginei Agenor e Márcio ao meu lado e pensei no que falaríamos 7
anos depois, qual cidade invisível contemplaríamos nessa noite. Uma
melancolia tomou conta de mim. Peguei o telefone e mandei mensagens para alguns
amigos. Aquele momento era meu, mas eu queria compartilhá-lo. Dei-me conta
quando cheguei ao Rio que estava me despedindo da cidade. Era hora de voltar
para casa. Nesse exato instante, um avião passou sobre minha cabeça me
escalpelando o couro cabeludo e me dando a sensação de que iria cair no mar.
Sorri.
Peguei um 415 Usina direto para Tijuca para a casa de
minhas primas Eliane e Ellen. Motorista apressado, como sempre. Meus olhos
buscavam a cidade: a Candelária com seus meninos mortos na calçada, o Centro
Cultural Banco do Brasil, a Avenida Getúlio Vargas, as luzes, a pobreza, os
contrastes, os mendigos e pedintes, “as meninas da noite”, as favelas,
o camelódromo, a Marquês de Sapucaí, mesmo sem carnaval, iluminada, o
Comando Geral do Exército. Transportei-me para 31 de março de 1964, golpe
militar, exatamente durante o comício da Central do Brasil, do lado
do Comando Geral.
Cheguei à Tijuca. Chovia. Era minha melancolia se
despedindo da cidade.
Qualquer dia eu volto. Até lá, vou enxergar outros Rios invisíveis dentro
de mim.