(Continuação do conto: no bolso da camisa, de 14 de fevereiro de 2017) versura.blogspot.com/2017/02/no-bolso-da-camisa.html
O que teria acontecido a William
Autumn, professor de Filosofia da Linguagem da Universidade de Vancouver, após
o seu sumiço diante do palco perante uma plateia lotada? Se preparara para uma
grande conferência acerca do significado da existência a partir da filosofia da
linguagem quando, ao pedir à plateia que fechasse os olhos, após alguns
instantes, desaparece do palco. Fez de volta o trajeto a pé da Universidade
para sua casa. Caminhou lentamente, como de costume, com seu blazer azul claro,
camisa azul turquesa, calça de linho cinza, cinto marrom e sapatos pretos.
No trajeto de volta
indagou ser aquela mais uma conferência, como tantas outras e que não mudaria
nada a percepção das pessoas sobre a vida. Mas, como o subconsciente é
sorrateiro, algo passou despercebido no momento em que pediu que a plateia fechasse os olhos, ele não. Mirou
fixamente nos seus alunos que o assistiam entusiasticamente e, como um espelho,
se lembrou de sua adolescência e sua fase já enquanto estudante de filosofia.
Se deu conta de que todo esforço empreendido em ser um grande estudante de humanas
era uma resposta ao abandono maternal, quando, ao ingressar com entusiasmo na Universidade, foi até a casa de sua mãe, que nunca lhe
teve grande proximidade, para comunicar a ela do feito de ingresso à carreira
acadêmica e ouviu um sonoro: “_ eu pensei que viesses me comunicar que serias
um futuro advogado, engenheiro, mas um estudante de filosofia? Para que serve
mesmo?”
Ao olhar detidamente a
plateia, se deu conta de que todo esforço empreendido ao longo da carreira
acadêmica era uma resposta inconsciente aos desejos dos outros, a uma
necessidade de agradar, de ser aceito, no caso, pela via intelectual. E tudo
isso passou num átimo de segundo. Fora enganado a vida toda por uma persona,
uma máscara, e isso era duro demais para um professor de Filosofia da Linguagem
cujo interesse maior era exatamente a existência. Era como se a “existência” o
tivesse pregado uma peça: ao falar dela, falseou os sintomas subterfúgicos. E o
que é pior? Seus alunos eram-lhe reflexos. Se sentiu um impostor, um
embusteiro, antiverdadeiro por não ter tido a coragem de enfrentar tal
falseamento. Não conseguira mais seguir em frente. Aproveitou enquanto a plateia
fechara os olhos para, lentamente, sem aviso, deixar o palco, assim,
sorrateiramente, silenciosamente, sem aviso, porém, sem medo da repercussão,
pela primeira vez na vida.
No trajeto de volta para
casa, ainda que relativamente perto das cercanias da Universidade, pensara não
ser esse o único motivo do abandono da conferência e tal trajeto que antes
causava-lhe fruidez, tranquilidade pela beleza do bosque que adorna o campus,
as ruas floridas, os cafés, as gentes sentadas na grama, lendo livros, muitos inclusive de sua autoria, dessa vez lhe pesara os pés como chumbo. Como reage a isso?
O Professor de filosofia não se vê envaidecido? Agora pouco se importa com
essas minúcias. O tempo não passava, o trajeto de repente se tornou uma
tormenta, pesaroso, como se não quisesse chegar em casa, porque a casa não
seria o fim dessa reflexão, por isso, começou a andar e dar voltas no
quarteirão.
A recente descoberta o
embarcaria ainda em outras descobertas que só se dera conta à medida que
pensava com os pés, como Sêneca. A resposta intelectual
enquanto estudante a sua mãe ausente era sequência, ou melhor, consequência de
outro acobertamento: a de que todo esforço empreendido em ser um bom estudante, retirou-lhe da
vida boemia costumeira aos jovens universitários. Seu inconsciente sub-repticiamente o impeliu a estudar, a se destacar perante a humilhação de sua
mãe como forma de compensação, mas não lhe previu que tal obstinação lhe
custaria outra sublimação: “viver” e ser livre. Seu empenho acadêmico lhe
retirou noitadas com os amigos, paqueras, flertes, boites, festas, como de
costume dos jovens, mesmo sendo ele vistoso, a bem da verdade, muito bonito,
embora tímido. A timidez no fundo é vaidade, receio em ser rejeitado, por isso,
uma defesa, uma antecipação a qualquer rejeição. Ele se indagou, mas, de onde
vinha a timidez? Certamente da falta de acolhimento maternal, da segurança que
os pais transmitem aos filhos, como também de suas memórias apagadas da
adolescência.
Corpo franzino, pele
esquálida, nada se assemelhava ao bonito jovem daquele
tempo da Universidade. Durante a infância e a adolescência sentia-se estranho, esquisito, retraído. Seus
interesses não se confundiam com os de seus colegas de rua, com exceção de
Sebastian, que sempre preferia ficar no telhado de sua casa olhando o céu a brincar
de futebol na rua.
Se lembrou que nas
brincadeiras em que de olhos vendados as moças
escolhiam uma respectiva fruta correspondente ao ato do beijo, quer na
bochecha, quer na boca, nunca fora escolhida a maçã, pois estava correlacionado
a ele, ou seja, jamais recebeu beijos nos lábios de suas possíveis namoradas da rua. E isso era mais uma dura constatação: os seus relacionamentos ao longo da vida refletiam carências como busca por beleza, mulheres exuberantes, vistosas, uma espécie de espelhamento de suas carências internas, uma necessidade fremente de aceitação, de validação social, tudo como forma de compensação pela rejeição na adolescência e pelo excesso de timidez. Se deu conta de que havia uma padrão em seus relacionamentos: quase todas as mulheres com quem se envolveu ao longo da vida tinham os mesmos perfis, características muito semelhantes, traços arquetípicos em comum. O inconsciente é nove mais forte que o consciente.
A timidez da adolescência
prolongou-se a fase adulta, já na Universidade, que, enquanto resposta a sua
mãe, sublimou uma fase importante da existência: outras descobertas. Foi aí
então que William Autumn começou a chorar. Sua atuação de professor não era
apenas uma resposta a sua genitora, como também uma tentativa de recuperação da
fase acadêmica dedicada quase que exclusivamente aos estudos. As leituras
seriam uma espécie de bônus, compensação, barganha, respeitabilidade pela fase
de “invisibilidade” que vivera enquanto estudante. Ser visto pelos seus alunos
era uma questão também de aceitação.
O longo trajeto, embora
curto, enfim acabara. Sentou-se em sua cadeira, frente à escrivaninha, redigiu
uma carta de demissão à Universidade de Vancouver, escolheu um velho romance
que comprara há muitos anos, embora ainda plastificado, e começou a ler sem se
preocupar com o futuro. Estava se curando de seu passado.