sábado, 24 de junho de 2023

William Autumn sem o bolso da camisa

 (Continuação do conto: no bolso da camisa, de 14 de fevereiro de 2017)  versura.blogspot.com/2017/02/no-bolso-da-camisa.html


O que teria acontecido a William Autumn, professor de Filosofia da Linguagem da Universidade de Vancouver, após o seu sumiço diante do palco perante uma plateia lotada? Se preparara para uma grande conferência acerca do significado da existência a partir da filosofia da linguagem quando, ao pedir à plateia que fechasse os olhos, após alguns instantes, desaparece do palco. Fez de volta o trajeto a pé da Universidade para sua casa. Caminhou lentamente, como de costume, com seu blazer azul claro, camisa azul turquesa, calça de linho cinza, cinto marrom e sapatos pretos.

No trajeto de volta indagou ser aquela mais uma conferência, como tantas outras e que não mudaria nada a percepção das pessoas sobre a vida. Mas, como o subconsciente é sorrateiro, algo passou despercebido no momento em que  pediu que a plateia fechasse os olhos, ele não. Mirou fixamente nos seus alunos que o assistiam entusiasticamente e, como um espelho, se lembrou de sua adolescência e sua fase já enquanto estudante de filosofia. Se deu conta de que todo esforço empreendido em ser um grande estudante de humanas era uma resposta ao abandono maternal, quando, ao ingressar com entusiasmo na Universidade, foi até a casa de sua mãe, que nunca lhe teve grande proximidade, para comunicar a ela do feito de ingresso à carreira acadêmica e ouviu um sonoro: “_ eu pensei que viesses me comunicar que serias um futuro advogado, engenheiro, mas um estudante de filosofia? Para que serve mesmo?”

Ao olhar detidamente a plateia, se deu conta de que todo esforço empreendido ao longo da carreira acadêmica era uma resposta inconsciente aos desejos dos outros, a uma necessidade de agradar, de ser aceito, no caso, pela via intelectual. E tudo isso passou num átimo de segundo. Fora enganado a vida toda por uma persona, uma máscara, e isso era duro demais para um professor de Filosofia da Linguagem cujo interesse maior era exatamente a existência. Era como se a “existência” o tivesse pregado uma peça: ao falar dela, falseou os sintomas subterfúgicos. E o que é pior? Seus alunos eram-lhe reflexos. Se sentiu um impostor, um embusteiro, antiverdadeiro por não ter tido a coragem de enfrentar tal falseamento. Não conseguira mais seguir em frente. Aproveitou enquanto a plateia fechara os olhos para, lentamente, sem aviso, deixar o palco, assim, sorrateiramente, silenciosamente, sem aviso, porém, sem medo da repercussão, pela primeira vez na vida.  

No trajeto de volta para casa, ainda que relativamente perto das cercanias da Universidade, pensara não ser esse o único motivo do abandono da conferência e tal trajeto que antes causava-lhe fruidez, tranquilidade pela beleza do bosque que adorna o campus, as ruas floridas, os cafés, as gentes sentadas na grama, lendo livros, muitos inclusive de sua autoria, dessa vez lhe pesara os pés como chumbo. Como reage a isso? O Professor de filosofia não se vê envaidecido? Agora pouco se importa com essas minúcias. O tempo não passava, o trajeto de repente se tornou uma tormenta, pesaroso, como se não quisesse chegar em casa, porque a casa não seria o fim dessa reflexão, por isso, começou a andar e dar voltas no quarteirão.

A recente descoberta o embarcaria ainda em outras descobertas que só se dera conta à medida que pensava com os pés, como Sêneca. A resposta intelectual enquanto estudante a sua mãe ausente era sequência, ou melhor, consequência de outro acobertamento: a de que todo esforço empreendido em ser um bom estudante, retirou-lhe da vida boemia costumeira aos jovens universitários. Seu inconsciente sub-repticiamente o impeliu a estudar, a se destacar perante a humilhação de sua mãe como forma de compensação, mas não lhe previu que tal obstinação lhe custaria outra sublimação: “viver” e ser livre. Seu empenho acadêmico lhe retirou noitadas com os amigos, paqueras, flertes, boites, festas, como de costume dos jovens, mesmo sendo ele vistoso, a bem da verdade, muito bonito, embora tímido. A timidez no fundo é vaidade, receio em ser rejeitado, por isso, uma defesa, uma antecipação a qualquer rejeição. Ele se indagou, mas, de onde vinha a timidez? Certamente da falta de acolhimento maternal, da segurança que os pais transmitem aos filhos, como também de suas memórias apagadas da adolescência.

Corpo franzino, pele esquálida, nada se assemelhava ao bonito jovem daquele tempo da Universidade. Durante a infância e a adolescência sentia-se estranho, esquisito, retraído. Seus interesses não se confundiam com os de seus colegas de rua, com exceção de Sebastian, que sempre preferia ficar no telhado de sua casa olhando o céu a brincar de futebol na rua.

Se lembrou que nas brincadeiras em que de olhos vendados as moças escolhiam uma respectiva fruta correspondente ao ato do beijo, quer na bochecha, quer na boca, nunca fora escolhida a maçã, pois estava correlacionado a ele, ou seja, jamais recebeu beijos nos lábios de suas possíveis namoradas da rua. E isso era mais uma dura constatação: os seus relacionamentos ao longo da vida refletiam carências como busca por beleza, mulheres exuberantes, vistosas, uma espécie de espelhamento de suas carências internas, uma necessidade fremente de aceitação, de validação social, tudo como forma de compensação pela rejeição na adolescência e pelo excesso de timidez. Se deu conta de que havia uma padrão em seus relacionamentos: quase todas as mulheres com quem se envolveu ao longo da vida tinham os mesmos perfis, características muito semelhantes, traços arquetípicos em comum. O inconsciente é nove mais forte que o consciente.  

A timidez da adolescência prolongou-se a fase adulta, já na Universidade, que, enquanto resposta a sua mãe, sublimou uma fase importante da existência: outras descobertas. Foi aí então que William Autumn começou a chorar. Sua atuação de professor não era apenas uma resposta a sua genitora, como também uma tentativa de recuperação da fase acadêmica dedicada quase que exclusivamente aos estudos. As leituras seriam uma espécie de bônus, compensação, barganha, respeitabilidade pela fase de “invisibilidade” que vivera enquanto estudante. Ser visto pelos seus alunos era uma questão também de aceitação.

O longo trajeto, embora curto, enfim acabara. Sentou-se em sua cadeira, frente à escrivaninha, redigiu uma carta de demissão à Universidade de Vancouver, escolheu um velho romance que comprara há muitos anos, embora ainda plastificado, e começou a ler sem se preocupar com o futuro. Estava se curando de seu passado.


Entrevista com Arton, de Sirius. Parte II

  Entrevista realizada no dia 14 de fevereiro de 2024, às 20:00, com duração de 1': 32'', gravada em um aparelho Motorola one zo...