quinta-feira, 24 de novembro de 2011

Marcados para o descarte?

MARCADOS PARA O DESCARTE?

Por Cláudio Zannoni

A conjuntura nacional dos últimos meses apresenta várias inquietações que merecem nossa atenção. Entre elas, uma em particular nos preocupa: o aumento da violência no campo envolvendo vários setores numa luta díspare e deixando vítimas a cada dia.
Os noticiários passaram a divulgar, no mês de maio, o assassinato, no interior do Estado do Pará, em Nova Ipixuna, de duas lideranças camponesas mortas friamente a tiros numa emboscada: José Cláudio Ribeiro da Silva e sua mulher Maria do Espírito Santo da Silva, no dia 24 de maio. Alguns dias depois, em 27 de maio, mais outra liderança foi assassinada em Vista Alegre do Abunã, em Porto Velho (RO): Adelino Ramos. No dia 29, mais uma liderança é morta novamente em Nova Ipixuna (PA): Eremilton Pereira dos Santos, de vinte e cinco anos.
O que essas mortes têm em comum?
·         todas elas foram prenunciadas;
·         as ameaças haviam sido denunciadas publicamente, mas nenhuma providência foi tomada pelos órgãos competentes a fim de preservar a vidas dessas pessoas[1];
·         essas lideranças vitimadas vinham, há tempo, denunciando a derrubada e o roubo ilegal de madeira por parte de madeireiros da região, todos eles identificados;
·         foram vitimadas por pistoleiros profissionais que mataram covardemente pessoas indefesas e desarmadas;
·         todos eram pais de famílias pobres que lutavam para sustentar seus lares e que usavam sua liderança para dar vez e voz a uma população abandonada neste país.
Foi necessário o sacrifício sangrento dessas lideranças para que o Governo Federal montasse uma “força tarefa” para poder averiguar fatos que há tempos vinham sendo denunciados pelas entidades sindicais e pelos órgãos de defesa dos direitos humanos.
Mas a violência não pára por aí. No país inteiro, lideranças quilombolas continuam denunciando a não regularização de suas terras, legitimamente reconhecidas como tais, mas que continuam invadidas. No entanto, a algumas delas é tolhida a liberdade elementar de ir e vir, tendo que se movimentar com escolta policial até dentro de sua própria casa.
No Maranhão, na Bahia, no Estado do Rio de Janeiro e quantos outros lugares ecoa o desejo de todos eles por uma terra onde possam viver e trabalhar em paz. Até a greve de fome se tornou necessária como meio para chamar a atenção dos órgãos públicos a cumprirem seu dever constitucional de preservar a vida dos cidadãos.
Os dados divulgados no mês de junho pelo Conselho Indigenista Missionário (CIMI), através o Relatório sobre as violências praticadas contra os Povos Indígenas do Brasil[2], mostra dados alarmantes:
·         Violência Contra o Patrimônio: 92
·         Violência contra a pessoa: 1.705
·         Violência por Omissão do Poder Público: 42.958
·         Destes: 60 assassinatos
                        152 ameaças de morte
                          92 crianças mortas por desnutrição e doenças facilmente tratáveis
Diante de tudo isto vale a pena se questionar e relacionar estes dados com a conjuntura atual e com algumas décadas passadas.
Em primeiro lugar nossa atenção volta à década de 1980 quando os conflitos no campo tomaram proporções exacerbadas. Com a abertura política da Nova República, os campos em conflito mostraram sua verdadeira cara. Se até aquele momento eram mediados por interesses comuns representados por inúmeras tendências políticas dentro de um único partido (MDB), naquele período afloraram interesses divergentes no campo político e social.
O surgimento do Movimento dos Sem Terra (MST), o fortalecimento dos Sindicados dos Trabalhadores Rurais (STRs), o surgimento da União Democrática Ruralista (UDR), a criação de inúmeros partidos defendendo interesses de grupos políticos e econômicos particulares, a mobilização de forças sociais e políticas para a elaboração da Nova Constituição do País (aprovada em 1988), recrudesceram os conflitos no campo que se manifestaram de forma muito violenta.
Hoje o campo social e político retornam à década com força maior. Os conflitos e as divergências se tornam sempre mais evidentes e, diante de conquistas políticas e sociais em nível jurídico e institucional, voltam a se contrapor à violência covarde da “pistolagem” e de interesses econômicos e políticos em nível macro conjuntural.
Em segundo lugar as lutas ambientalistas em nível não só nacional como também internacional se contrapõem a interesses políticos escusos a tal ponto de aprovar na Câmara dos Deputados um Código Ambiental que concede o “indulto” a quem destruiu ilegalmente a floresta.
De certa maneira incentiva os madeireiros a continuarem com o desmatamento, “protegidos” por uma não punição exemplar a quem acabou com o patrimônio da nação.
Em terceiro lugar uma nova consciência de classe que ultrapassa as fronteiras do proletariado e coloca no cenário novos atores fortalecidos como os ambientalistas, os indígenas, os sem terra, os sem teto, os atingidos por barragens e pela base espacial, etc. Como consequência disso, novas formas de luta afloram na conjuntura atual.
Enfim, em quarto lugar, um governo de esquerda, eleito pela aclamação popular com Lula e agora com Dilma, com uma aprovação nunca vista antes, mas que não consegue responder concretamente aos anseios do povo por mais justiça, por paz social, por melhorias da qualidade de vida da população; que ao invés de prevenir os conflitos e a violência chega depois para tentar remediar a ferida aberta; que contrapõe a estes anseios, projetos populistas que, de certa forma, rompem com a consciência de classe da população e com a possível mobilização das classes pobres em vista de melhorias concretas nos campos primordiais como educação, saúde, moradia, trabalho e enfim o direito a uma vida digna e real para todos. Sem um investimento profundo nestes setores o futuro continuará incerto e opaco.
O Brasil traz no “gene” histórico a vocação para o latifúndio; a mentalidade dos proprietários de terras e grandes empresários rurais considera índios e camponeses guardiães temporários das terras que certamente explorarão. E esses guardiães então passam à condição de obstáculos a serem removidos a qualquer preço. É claro que a miséria moral, somada à econômica, formaram uma rede especializada em matar para ganhar dinheiro. Debatem-se, nesse cenário, os interesses do latifúndio preocupado em manter seus lucros contra os desejos de uma população trabalhadora que procura, com seu trabalho, sustentar inúmeras famílias que não tiveram a possibilidade de acesso a uma vida decente e humana. Esse é o Brasil do século XXI cuja política fundiária condiz perfeitamente com o atraso de séculos passados.

Claudio Zannoni
Editorial publicado na revista
Cadernos de Pesquisa Vol. 18, n. 2
maio-agosto de 2011

terça-feira, 15 de novembro de 2011

nascer e morrer: eternos recomeços

 

Há autores na psicanálise que fazem afirmações sobre tipos diferentes de pessoas que se portam também de formas distintas diante da vida: os que habitam a zona branca e a vermelha. Sem atribuição de juízo de valor, os da zona branca são aquelas que diante da vida evitam complexificações, discussões existenciais, terminologia sobre o que é o ente e o ser, nadificam as coisas porque tais coisas não são para serem perscrutadas, mas vividas, simplesmente vividas. Os da zona vermelha, ao contrário, possuem a imensa capacidade de questionar sempre o que existe por detrás da aparência formal das coisas, da forma como se apresentam e nunca aceitam as coisas tal como elas são, sempre mudam de lugar. Dentre esses dois grupos de pessoas, para além de atribuir um caráter valorativo sobre quem está certo, se esconde a dialética da existência quanto ao ato potencial de investigar o não-revelado, os mistérios, assim como desfrutar da dimensão da existência concreta, vivida, da passeidade, da condição objetiva. 

O equilibro talvez ideal seria se fôssemos um pouco de cada, assim desfrutaríamos das conquistas obtidas e perscrutaríamos o que ainda está por vir. Dessa forma é que na roda de samsara se apresentam as pessoas: como cada ente se encontra em uma posição distinta dentro da roda, leia-se, dentro da vida, ao se encontrarem por vezes há choques, tensões, isto porque nós nos reconhecemos no outro e rejeitamos exatamente o que já fomos e o que não gostamos em nós mesmos. 

Assim, que ao longo da humanidade o caráter investigativo sobre a existência foi ganhando corpo. Do nascimento do pensamento ascético, da passagem dos humanoides para a humanidade, quer dizer, quando deixamos de ser meros seres biológicos à procura da sobrevivência para o surgimento da abstração, da arte, da representação da vida, expressa em pinturas rupestres pleitistas da condição humana, exatamente quando a vida se transmutava para a ascese, o transcendental, pletora condição do sagrado. O fogo, o trovão, deixam de ser objetos inanimados e ganham sentido em si mesmos. A vida começa a deslindar-se da brutalidade para um tipo de sensibilidade. 

Depois vieram o nascimento do mito, das religiões, da astrologia, da filosofia, do racionalismo em busca de respostas. No caso da astrologia, por exemplo, foi um dos primeiros exercícios de ilação entre homem e natureza. A partir da observação, os primevos detectaram a imensa conjunção entre astros e tendências comportamentais em homens e mulheres. 

Essas questões tendem a me levar a pensar sobre o significado das incompletudes humanas, dos diversos caminhos adotados por pessoas à procura de respostas; quer seja na militância política; no ativismo social; no pensamento religioso; no desenvolvimento do racionalismo; na ciência, enfim, e no porquê de tantas respostas distintas sobre o que vem a ser a(s) existência(s) e, é inelutável pensar que as respostas distintas se dão por perguntas distintas, e as perguntas partem de lugares distintos porque estamos em posições dísticas dentro da roda de samsara, ou seja, na vida, quer sejam lugares, tempos, formações culturais, sociais, políticas e religiosas.

Sem uma resposta clara, hoje acredito que a vida é um eterno nascer e morrer em todos os seus sentidos: plenos, abstratos, figurados, metafísicos. Porque somente nascendo e morrendo várias vezes temos a percepção de que a cada vida enxergamo-la sob ângulos diferentes e incorporamos novos valores, novas perguntas se apresentam, novas respostas, novos questionamentos, num processo ad infinitum. Nascer e morrer fazem parte da existência; quer seja nascer e morrer um amor, uma ideia, uma amizade, uma paixão, uma tese, uma antítese, uma síntese, um poema, uma música, uma melodia. 

No entanto, nada morre para sempre, afinal, a vida é antitética à nadificação, uma vez existente, para sempre existe. Qual seria o sentido de existir para depois nunca mais existir? Congraçar a vitória da morte sobre a vida? Viver é mais.

Os gregos antigos temiam muito mais o ostracismo que a morte física. A verdadeira morte para eles era o esquecimento. Foi por isso que Aquiles, mesmo sendo avisado pelo Oráculo de Delfos que iria morrer na guerra de Troia, preferiu entrar para a história como herói que viver na Grécia uma vida pacata e feliz. De onde vem essa relutância em querer perpetuar a existência? Da certeza de que a existência é passageira e efêmera? Não há compreensão de que nada inexiste para sempre.
  
O mistério da existência está em esconder onde está a verdade. Se já soubéssemos, desistiríamos da busca, ou seja, estaríamos mortos. Não saber é continuar a busca, é continuar a viver.

                   

Nova era, velhas práticas

NOVA ERA, VELHAS PRÁTICAS

Por Cláudio Zannoni

Prezados leitores, neste começo de ano fomos surpreendidos por inúmeros problemas em nível nacional e internacional que não passaram despercebidos da população, mas que de alguma forma, foram abafados por uma propaganda desenvolvimentista preocupada não com as consequências, mas em dar respostas que justifiquem sua atuação destemida e preocupada somente com lucros e mais lucros.
Gostaria de comentar aqui alguns impactos relacionados à construção de usinas hidrelétricas no Brasil (o caso Belo Monte), a previsão de aumento do parque nuclear a partir de 2011, junto às sequelas do desastre japonês de 11 de março de 2011.
Há tempos vem se debatendo no Brasil a construção de mega-projetos hidrelétricos, especialmente na Amazônia Legal. Em 1988 debatia-se sobre as hidrelétricas no Xingu e suas consequências para as populações indígenas e ribeirinhas daquela região. Antes disso o governo brasileiro havia construído Itaipu, Sobradinho, Balbina (estas duas últimas consideradas um desastre ecológico e um fiasco de engenharia pela baixa produção de energia e a grande área de alagamento), entre outras.
Pinguelli e Schaeffer apontavam propostas alternativas à Política Energética Brasileira indicando a necessidade de uma participação ampla da sociedade e, especialmente, da população atingida:
Assim, para o caso brasileiro, a melhor alternativa à usina hidrelétrica grande geradora de energia é ainda a usina hidrelétrica grande geradora de energia, só que democraticamente discutida. E a questão da avaliação do impacto ambiental deve estar cada vez mais presente, quando da implementação de um aproveitamento hidrelétrico (grifo nosso).[1]
Além do mais indicam a possibilidade de utilização da energia eólica e solar. Para tanto seria necessário diminuir os custos de produção dos equipamentos necessários, ainda muito caros no Brasil em relação a outros países.
Na época falava-se de Kararaô, hoje fala-se de Belo Monte para a mesma população que deverá ser atingida. O IBAMA impôs várias condições para permitir o começo das obras da usina. Surpreendentemente, embora estas condições não tenham sido cumpridas, o Instituto emitiu licença de instalação de Belo Monte.
As avaliações de impactos não foram respeitadas e pretende-se instalar uma usina novamente sem uma discussão democrática ampla da população. Aliás, desrespeitando-se todos os estudos da comunidade científica que apontam um custo altíssimo (fala-se já de 35 bilhões de reais) para a previsão de geração de 11 mil megawatts (a própria NESA Nacional Engenharia, no Plano Básico Ambiental - PBA, reconhece que o potencial a ser gerado poderá não irá passa de um terço desse total).
Por que pagar um preço tão alto e por que não ouvir as populações interessadas? Novamente pretende-se impor um modelo que, ao invés de discutir um crescimento econômico adequado com a participação da população, insiste em inchar as cidades e não se preocupa com o espaço que sempre foi ocupado pelo homem do campo através da pequena propriedade rural.
É sobre isto que o geólogo da UFRGS, Rualdo Menegat, fala em uma entrevista publicada na revista Adverso:
Como as nossas cidades estão ficando muito gigantes e as pessoas estão cegas, elas não se dão conta do tamanho do precipício e do tamanho do perigo desses locais onde estão instaladas. Isso faz também com que tenhamos uma visão dessas catástrofes como algo surpreendente.[2]
As usinas nucleares japonesas atingidas pelo terremoto e sucessivo tsunami de 11 de março de 2011 são um exemplo claro dos riscos que uma política desenvolvimentista pode provocar. Os desastres naturais devem ser vistos também como e, sobretudo, consequências da ação humana em relação ao ambiente.
Tendo em vista a tragédia nuclear no Japão, vários países estão discutindo sobre o desmantelamento das usinas nucleares. Será que a ideia de limite começa a ser um ponto de discussão dos governos? Afinal, até onde a ação do homem pode chegar? São todos questionamentos que deveriam nos levar a uma reflexão mais ampla sobre que tipo de modelo de desenvolvimento nossa sociedade não só quer, mas, sobretudo, pode se permitir.
Enquanto outros países estão preocupados com os desastres nucleares e admitem a possibilidade de substituição das usinas nucleares por energias “limpas” e renováveis, o Brasil planeja iniciar um projeto de construção de 55 usinas nucleares no território nacional a partir deste ano. Onde serão distribuídas? Além disso, há que destacar o potencial ainda não concluído das usinas de Angra:
Estudo de 2006 da Universidade de São Paulo (USP) revela que serão necessários R$9,5 bilhões e mais seis anos para a finalização de Angra 3. Com um investimento menor, de R$7,2 bilhões, seria possível construir um parque eólico com o dobro da capacidade de Angra 3, ou seja, 2.700 MW, em dois anos – sem produzir lixo radioativo, sem o perigo de contaminação e com as emissões de gases estufa quase zeradas, gerar 32 vezes mais empregos.[3]
Por este caminho, onde iremos parar? Novamente surge o mesmo questionamento: quando a população poderá participar ativamente do processo democrático visando a uma reformulação de um modelo desenvolvimentista ultrapassado? Quando os Movimentos Sociais e as populações atingidas por estes mega-projetos serão ouvidas. Nem um governo “esquerdista” conseguiu por na pauta governamental a participação popular. Estamos, afinal, diante de um autoritarismo exacerbado que atinge todos os campos da sociedade. Se um governo “popular” não ouve a população, não podemos esperar que o capitalismo, que nunca a ouviu, passe a discutir ações que visem à melhoria das condições de vida.

Claudio Zannoni
Editorial publicado na revista
Cadernos de Pesquisa Vol. 18, n. 1
janeiro-abril de 2011



[1] PINGUELLI ROSA, L.; SCHAEFFER, R. Propostas alternativas à política energética brasileira. In: SANTOS, L.A. de O.; ANDRADE, L.M.M. As hidrelétricas do Xingu e os Povos Indígenas. São Paulo: Comissão Pró-Índio, 1988, p. 59-61)
[2] WEISSHEIMER, Marco Aurélio. Tragédias naturais como do Japão expõem perda da noção de limite. Carta Maior. 12/03/2011.
[3] Petição Pública. Abaixo-assinado Contra Angra 3 e a Construção de 55 novas usinas nucleares no Brasil. 14 de março de 2011.. http://www.peticaopublica.com.br/PeticaoAssinar.aspx?pi=Nuclear. Acesso em março 2011.

terça-feira, 8 de novembro de 2011

confiança e credibilidade

Philippe Condorcet sempre foi gente de boa fé, sempre achou que credibilidade era sinônimo de confiança, sobretudo quando se tratava dos amigos. Ele vivia as estreitas com duas amizades muito dísticas: a de Augusto Venturoso e a de Joelma. 

Augusto Venturoso era gente de boa cepa, falastrão, boêmio, poeta, fumante, apreciador de uma boa cerva, boa música, bebia sempre no mesmo bar, às vezes sozinho, confabulando e desenhando um mundo a partir de seus poemas-epitáfios. Não parava em emprego, gravata e pasta preta nunca fora seu mote predileto. Apaixonava-se a cada mulher que adentrava no bar do Joaquim, português mal humorado que tratava mal os clientes por saber da qualidade musical do seu acervo e também por apostar que gente como Augusto são fiéis aos seus amores, mesmo quando maltratados.

Joelma era funcionária pública, correta, disciplinada e determinada, embora pusilânime. Sempre recorria aos conselhos de Condorcet para tomar decisões. Era uma daquelas pessoas cuja palavra era certeira, não vacilava, havia credibilidade no que dizia. 

Certo dia, Condorcet foi tomado de surpresa com a sua demissão. Justamente quando havia assinado um contrato de compra para o seu apartamento, sinalizado com um percentual relativo de entrada, podendo até voltar atrás, mas traria muito desconforto e complicações, inclusive creditícias, afinal, fez um empréstimo no banco para tal entrada no imóvel. Dali a dois meses teria que dar o sinal definitivo para a aquisição da chave. Que fazer, pensou?!!! Como sinônimo de credibilidade recorreu à amiga Joelma, contou o seu drama e perguntou se quando necessário, num prazo de dois meses, poderia contar com um empréstimo de dinheiro e assim que voltasse a trabalhar pagaria tudo, inclusive com juros. Joelma foi enfática: – Não se preocupe, quando precisar conte comigo.

Dois meses se passaram... Quando Condorcet recorreu a Joelma, foi tomado de surpresa com a notícia de que ela possivelmente teria que emprestar um dinheiro a sua irmã que precisava comprar um carro, sem o qual não poderia se sustentar, trabalhar e se manter, era instrumento de trabalho. Condorcet se desesperou e se decepcionou com Joelma, afinal, quantas e quantas vezes estendeu sua mão e a ajudou quanto mais precisava.

Triste e sorumbático foi ao bar do português malcriado para afogar sua tristeza. Lá encontra-se com Augusto Venturoso que, vendo o amigo triste e sorumbático, pede uma cerva bem gelada e música do MPB4 amigos é para essas coisas. A par do que se passava, prometeu ajudar Condorcet. Desconfiado, Condorcet sorriu de soslaio, afinal, seu amigo era bom para conversa, mas não tinha credibilidade em nada do que falava, a julgar pelas incessantes mentiras que contava sobre a relação com sua namorada, era um misantropo empedernido e sempre distorcia sobre os fatos, sempre a seu favor, sempre de forma patética.

Dois dias depois, ao consultar sua conta bancária para averiguar por quanto conseguiria viver até o final do mês, surpreendeu-se com um valor existente um pouco acima do necessário para a compra da chave do apartamento e começou a se indagar como aquele dinheiro havia parado ali e quem era o responsável. Toda a gente passou pela cabeça dele. Alegre, ligou para Venturoso para colocar a par das novidades. De volta ao bar, após contar o inédito, seu amigo sorriu. Foi aí que Condorcet se deu conta de que tinha sido ele, mas como? Dias antes quando beberam no bar, ao ir ao banheiro, Venturoso abriu a carteira de dinheiro do amigo, sacou o cartão do banco com o número da conta e fez o depósito. Mas não só. Comunicou a Condorcet que a partir de seus contatos havia descolado um trampo, não era muita coisa, o suficiente para viver dignamente até conseguir algo melhor. Condorcet chorou. Foi aí que se deu conta do seu enorme estereótipo sobre as pessoas e sua visão sobre amizade.

De volta para casa, andando lentamente pensou: “às vezes é melhor ter confiança nas horas certas em certas pessoas que do que crédito naquilo que elas falam. Toda confiança é baseado em certo crédito, e todo crédito pressupõe uma confiança, mas nem todo amigo é crível no que fala, mas é melhor ser seguro no que faz”.                       


segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Um ideal, uma utopia

UM IDEAL, UMA UTOPIA

Por Claudio Zannoni

Sou um dos filhos dos grandes ideais e também de uma utopia. Por que lembrar disso agora? Porque eles nos questionam frente ao mundo do século XXI. Velhos problemas que acreditávamos terem sido superados reaparecem bem debaixo do nariz: tráfico de seres humanos, escravidão, prostituição em larga escala, inclusive infantil, epidemias que se alastram, fome, violência contra a mulher, isto é, o ser humano reduzido a coisa, a vida relativizada. A dor do outro é apenas a dor de outro, não nos interessa, porque se diluiu o principio de irmandade e perdeu-se a consciência de que a humanidade é uma espécie única. Não há, portanto, como não evocar as tentativas de superação do individualismo ao longo da história.
Liberdade, igualdade, fraternidade foram os lemas da Revolução Francesa. O Marxismo se fundamenta também no princípio de direitos iguais, no respeito à dignidade humana. Esses foram os ideais que se transformaram em sonhos tão caros à minha geração. Inspirada neles surgiu na Califórnia, no ano de 1968, a comunidade alternativa denominada Urso Negro, fundada por um grupo de hippies. Este grupo pretendia colocar tudo em comum: terra, água, moradia, comida, roupa, ideias, modo de vida. Era uma comunidade autossustentável cujo lema era “terra livre para pessoas livres”. Um ideal utópico, para a sociedade daquela época e contracultural porque, antes de tudo, era uma crítica contundente ao modelo de sociedade daquele tempo, consequentemente também ao de hoje, já que o individualismo venceu, os paradigmas foram destruídos, a fraternidade relativizada. Viver em comunidade alternativa significava uma mudança de princípios no que diz respeito à posse, à individualidade. A relação entre os gêneros também foi revisada e mudada porque se acreditava na liberdade incondicional da mulher.
Essa experiência durou alguns anos, mas, posta à prova pelo individualismo de alguns, não resistiu. O ideal de pôr tudo em comum sucumbia ao desejo de posse: de coisas, de pessoas, de condições. A sociedade ideal é certamente uma utopia, mas o desejo de viver numa sociedade ideal é legitimo.
Em algumas sociedades indígenas brasileiras não existe a palavra propriedade ou, se existe, esta passa a ter um significado diferente daquele que é colocado por nossa sociedade. O que determina a “propriedade” de um bem é seu uso, portanto, cada qual pode usufruir dele quando precisar. O pronome possessivo meu/minha é usado quando uma pessoa se refere às partes do seu corpo: minha mão, minha cabeça, etc.
O desafio está lançado: como construir a igualdade na diversidade? A esse desfio a comunidade de Urso Negro quis dar uma resposta. É possível construir a igualdade na diversidade quando cada um é valorizado por aquilo que é, por sua diversidade, por suas especificidades as quais não se sobressaem para dominar, para se sobrepor ao outro, para ter mais, para dominar mais, mas para se complementar com os outros, dos quais também ele necessita, para servir, para ser sinal de justiça e paz. Não foi por acaso que essa mesma época as décadas de 1960 e 1970 ofereceram ao mundo inteiro homens de paz que encarnaram esses ideais: Gandhi, Dom Helder Câmara, Martin Luther King e tantos outros que gritaram aos quatro ventos que construir um mundo melhor é possível.
Você pode dizer que tudo isso é velho, superado, faz parte de uma outra época. Tudo bem, mas a dominação do homem pelo homem é muito mais antiga e continua atual e confirmada como única possibilidade. A violência contra a mulher e contra a criança são males tão velhos que por um tempo os consideramos extintos e eis que reaparecem e são tolerados, conforme se ouviu da boca do goleiro Bruno: “Qual o homem que nunca saiu na mão com a mulher, cara?”
Construir alternativas é necessário e não é coisa de “bicho grilo” nem de burguês entediado, não se pode mais tolerar essa concepção de que as pessoas são coisificadas. A coisa em si tem muito mais valor que a pessoa que a carrega. Precisamos de alternativas. Elas existem, basta procurar.

Claudio Zannoni
Editorial publicado na revista
Cadernos de Pesquisa Vol. 17, n. 3
setembro-dezembro 2010

quinta-feira, 3 de novembro de 2011

Frustração ou revolução

FRUSTRAÇÃO OU REVOLUÇÃO

Por Cláudio Zannoni

Meninos calados, doentes, de olhos fundos. Era a precocidade. Era a opressão da pedagogia sádica, exercendo-se sobre o órfão, sobre o enjeitado, sobre o aluno com o pai vivo mas aliado do mestre, no esforço de oprimir a criança.[...] É bem expressiva a alcunha que o povo do Rio de Janeiro pôs nos meninos de São Joaquim: carneiros. Carneirinhos. Calados, olhos tristes, sem vontade própria, eram mesmo uns carneiros (FREYRE, 1990, p.81)[1]

Há cerca de um ano uma mãe me dizia estarrecida que, ao matricular um filho adolescente ouviu da diretora o seguinte: pode esquecer o cineminha aos sábados e domingos, pois aluno dessa escola não tem fim de semana.
Achei absurdo, e ao mesmo tempo fui ingênuo ao pensar que aquele era um caso isolado. Por isso,  em homenagem aos estudantes de modo geral elaborei esse editorial.
Primeira cena: embalados pelo som doce dos acordes de um violão ouvi que a educação é um processo em construção. Nesse momento entram em cena diversos personagens: o professor, o aluno, o faxineiro, o carpinteiro, a secretária e muitos outros profissionais. Era o compartilhar silencioso da ideia de que a educação era como aquele pão ali, dividido entre todos de forma igualitária, simbolizando que a educação é algo que se aprende no dia a dia, que os alunos constroem junto com o professor, que é vivida por todos. Na plateia, havia muitos pais e mães espectadores. Ouvi alguém dizer: “Já ouvi isso inúmeras vezes, quero algo concreto para o meu filho”.
Segunda cena: retira-se a música, retira-se a mesa da comunhão. Mudança de cenário. Agora o som estridente de um microfone saúda a todos. Uma voz firme apresenta, para os pais e mães ali presentes qual será o futuro para seus filhos:
- Nossa escola tem como princípio educar o homem na sua integralidade, numa educação interdisciplinar e transdisciplinar completa que envolva as diferentes áreas do conhecimento. No entanto, para o Ensino Médio o aluno deverá ser acompanhado. Por isso, ele terá aulas pela manhã, a tarde, e para alguns, à noite também. Nosso Ensino Médio prepara o aluno para concursos, essa é a nossa meta final, porque essa sociedade exige que ele seja um aluno preparado para se sair bem na vida.
A plateia aplaude fragorosamente. Olho em volta e me sinto só. Sinto um profundo pesar pela morte da educação.
Terceira cena: todos saem, aparentemente alegres e contentes, mas no fundo angustiados, alguns procurando saber se a educação será a da primeira ou da segunda cena. Afinal, meu filho em que série está?
Parece uma peça de teatro, mas é a realidade que vivenciei num colégio da capital. Uma grande frustração tomou conta de mim. Imagens de um passado recente me vieram à memória naquele momento, imagens de uma educação que eu sonhava para os nossos filhos e filhas. De uma educação em que o professor é apenas o facilitador. Dizia-se naquele tempo: o professor não tem respostas prontas, ele indica caminhos para que os alunos procurem encontrar suas respostas sozinhos. Isso é educação. E nós lutamos por isso: pela liberdade de expressão, pela arte de construir, pela alegria de estar juntos, pelo amor á vida, pelo respeito á natureza.
Será que todos esses valores foram suplantados pela ideologia capitalista, pela concorrência , pelo desejo de ser e ter mais, de ser o primeiro, o melhor, o mais bonito, o mais inteligente? Dos milhares que fazem concurso para algumas míseras vagas só alguns conseguem passar, porque todos não podem. E o que dizer dos que não conseguem?
- Que são inferiores?- Que são incapazes?
O que sentem os reprovados?
- Frustração?
- Sentimento de incompetência?
- Sensação de derrota?
Será que esses não eram tão capazes quanto os outros? Não eram tão humanos quanto os outros?
Saber fundamental á prática educativa do professor ou da professora é o que diz respeito à força, as vezes maior do que pensamos, da ideologia. É o que nos adverte de suas manhas, das armadilhas em que nos faz cair. É que a ideologia tem que ver diretamente com a ocultação da verdade dos fatos, com o uso da linguagem para penumbrar ou opacizar a realidade ao mesmo tempo em que nos torna “míopes” (FREIRE, 2008, p.125)

Quero com isso convidá-lo a refletir sobre a educação que queremos para os nossos filhos. A educação do vitorioso e do perdedor ou a educação para a vida, onde cada um encontre seu espaço? Afinal, marceneiro, médico, professor, músico, ator … são somente profissões, cuja razão maior de existir deve ser o serviço à população e não somente o bolso.
A vida de um ser humano varia muito. Hoje fala-se de uma expectativa de vida de mais de setenta anos para a população brasileira, mas nem todos conseguem chegar lá. Quantas vidas se perdem no caminho. Então, de que vale estudar...estudar...estudar se o estudo não for vivenciado com o lúdico, com a ternura, com o amor, com todas as belezas que a vida pode oferecer em tão pouco tempo?
O que será de nossos filhos que devem passar doze horas entre estudo e sala de aula, oito para dormir, quatro para os intervalos de café, almoço, janta, televisão e internet? Onde estão as horas em que passávamos brincando, embora jovens, com nossos companheiros da mesma idade? Hoje cada um vive isolado em sua casa. Cada família luta pelo “bem dos filhos” e muitas vezes esquecem que uma hora “perdida” por dia ajuda a construir o futuro deles. Será que um dia não nos dirão o que disseram nossos ídolos do passado?

Não precisamos de educação!
Não precisamos de controle mental!
Nada de sarcasmos na sala de aula!
Ei, professores, deixem as crianças em paz
Afinal, você é somente mais um tijolo no muro...
(Another Bringh in the wall – Pink Floyd)

Talvez coubesse dizer: nós não precisamos desse tipo de educação que privilegia o conteúdo em detrimento do desenvolvimento do sujeito educando tendo a clareza de que cada educador, em quaisquer dos níveis, é tão importante quanto um tijolo na parede e que “[...] quem ensina aprende ao ensinar e quem aprende ensina ao aprender. Quem ensina ensina alguma coisa a alguém. Por isso é que, do ponto de vista gramatical, o verbo ensinar é um verbo transitivo-relativo”.(FREIRE, 2008, p.23)[2]. Afinal “Ninguém é sujeito da autonomia de ninguém”[3].
Na década de 1960 essa frustração eclodiu para o “sessenta e oito estudantil” onde os alunos saíram às ruas para protestar contra essa sociedade opressora e em favor da liberdade. Essa revolução foi o eco de uma juventude que revolucionou os comportamentos sociais e propôs uma nova sociedade. A nova sociedade jovem pode se tornar a sociedade revolucionária dos valores da justiça, da liberdade, do amor, tão pregados pela sociedade jovem da década de sessenta. Uma sociedade que lute por uma educação libertadora, contra uma educação mecânica e conteudista.
Como a revista Cadernos de Pesquisa, volume 17 número 2, traz artigos sobre educação, essa é uma boa oportunidade para pensarmos sobre as inquietações aqui expostas, que, antes de serem minhas, podem ser de qualquer um, podem ser de todos nós.

Claudio Zannoni
Editorial publicado na revista
Cadernos de Pesquisa Vol. 17, n. 2
maio-agosto de 2010



[1]              FREYRE, Gilberto. Sobrados e mucambos: Introdução à história da sociedade matriarcal no Brasil. 8ª ed. - Rio de Janeiro: Record, 1990.
[2]              FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia. São Paulo: Paz e Terra, 2008.
[3]              Frase tirada da capa de um dos livros de Paulo Freire: Pedagogia da autonomia.

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