sábado, 24 de outubro de 2020

DAS DORES DO PARTO

 

 De Henrique Borralho 

Para Paulina Chiziane

 

Dos nossos ventres nascem as vidas e as dores da morte.

Quando geramos meninas, sentimos os agouros das más sortes de sermos abusadas e maltratadas pelas buscas aos mesmos ventres de onde nascem nossas proles de não consortes.

As dores das mortes revelam as faces dos estupros, dos coitos forçados,

das penetrações pelos gozos unilaterais escorrendo sangue e sêmen de membros viris

contra as dobras de nossos úteros fortes.

Do prazer da vida de gerarmos em nós outras vidas, sentimos as desgraças de ver escorrer pelas lágrimas a lancinante condição de sabermos que sexo será:

se menina, possivelmente serão caçadas, abusadas, maltratadas pelos anos de guerra, independentemente da cor do agressor, de sua bandeira ou ideologia, pois a violência não tem pátria, não tem raça, só tem afasia;

se menino, choraremos a dor do recrutamento e sua morte pela baioneta de seu adversário, ou pelas balas guardadas em seus alforjes, pela espada desembainhada a cortar sua cabeça como quem jorra sangria.

Mas pelo menos nunca sentirá o desgosto de ser estuprado. [E sua vida será menos violada]

Os anos de guerra agudizaram a nossa triste sina: a de não sermos enxergadas pelas lentes de nossas retinas.

Que triste condição essa de ser mulher nesta terra de carnificina! 

Somos retiradas do solo de nossos ancestrais onde semeamos as sementes da nutrivida.

Os homens bestializados nos veem carne,

a mais barata carne,

nem posso a rigor dizer do mercado,

pois mercado tem preço e não temos preço, somos posses em suas vindimas.

E nem adivinham os nossos desejos,

segredos,

nem conhecem nossos corpos, 

nem mesmo nossos sexos.

Buscam incessante, achando que assim nos possuem,

sem saberem que penetrar sem nos fazer gozar e sem nossa entrega fortuita é como ordenhar uma vaca sem saber por onde o leite sai.

Assim são os homens ignóbeis desta terra de guerra!

Indóceis perversos, moribundos, maltrapilhos e desalmados, cujo prazer em matar, pilhar, torturar é consoante ao gozo em ouvir os gemidos de seus adversários murmurando em seus ais.

E as mulheres do sul já se esqueceram de quem são, assumindo características do colonizador, se comprazendo em seres submissas, como se suas vidas se atrelassem aos sectos machistas.

Esqueceram que seus corpos são sagrados, são como as terras de Monomotapa, de Changamire, de Makombe, de Kupula, de onde nós viemos, de onde partimos e cujo desvelo de suas sinuosidades são como nossos seios, 

montanhas a escalar;

como nossas barrigas, depressões a deslizar;

nossos sexos, labirintos a desvendar;

 nossas pernas, colossos a nos sustentar;

nossas nádegas, véus a nos retirar;

nossos lábios, mel a saborear;

 nossas línguas, torvilhos a sugar;

 nossas almas, 

espíritos a voar para onde querem, 

porque daquilo que se passa nos íntimos de nós mulheres só desvenda quem não tem pensamentos simplistas.

Agora, as guerras já cessaram e eis as novas mulheres frutos desses coitos dilacerados. 

É hora do grito bardo não consumado,

de tirar as nossas mordaças aplacadas nos lábios atados,

de soltar a voz neste espaço ocupado, mas não por nós, senão pelos mesmos que no passado nos tiraram dos nossos lares de nossos ancestrais, usurparam nossos ventres sagrados ora mutilados.

Avante mulheres!!!

Chegou o nosso tempo!

É tempo de empunhar a bandeira de nossas vontades, de reassumir a nossa condição que outrora nos pertencia, 

ocultada pela marcha indolente e sanguinolenta da dominação opressiva. 

Gritemos para que as novas gerações jamais passem pelo que passamos, 

jamais sintam a opressão de terem seus ventres violados e marcados como gado no abatedouro com membros cortados.

Que as futuras mulheres jamais tenham medo de gerar vida, 

que não enxerguem o volume da barriga crescer com a paúra de não saberem que sexo será.  

NÃO, hoje nem somos obrigadas a gerar nada daquilo que não quisermos, 

mas se enfim decidirem fazer, 

que dos seus ventres não sintam a angústia de dar à vida a dor da morte, 

para que suas meninas nunca sintam os agouros da má sorte,

de gerarem proles em seus ventres de não consortes.  

          

 

terça-feira, 20 de outubro de 2020

O SER DAS MONTANHAS

As montanhas de Plateau de Beille, nos Pirineus, são lugares aprazíveís para atividades diversas como lazer e prática de esportes, sobretudo para quem aprecia o tour de France. Desde tempos remotos, elas são refúgios daqueles que buscam paz de espírito, respostas às suas questões internas e, hodiernamente, escapar das vicissitudes do mundo capital, do frenesi das cidades com suas luzes sedutoras, com o barulho dos carros, ofuscando as vozes pela vida agitada.  

Philipe Condorcet, sempre que pode, apruma seu equipamento de ciclismo e sobe as montanhas, não apenas para se preparar para o tour de France, bem como para respirar novos ares e alcançar o objetivo de um dia subir ao ponto mais alto da mais alta montanha de Plateau de Beille. Subir as montanhas constitui um desafio constante, um objetivo e uma meta. A cada pedalada era como se as horas rodassem para trás, sorvendo o tempo, roubando um pouco dele e se transpondo a uma atmosfera em que a medição dos minutos não fazia muito sentido.  

Depois de tirar uns dias de folga, rumou ao Plateau. Retirou sua bicicleta do carro estacionado na estação de esqui, lançou mão da jaqueta para temperatura mais amena, afinal, estava no meio do outono, quando as folhas secas caem com suas cores acinzentadas, seus tons pastéis, revolvendo-se no chão, levadas pelos ventos da estação, se transformando em solo, adubo, aptas a se transformar em lama, e serem revolvidas.    

Quando contornou uma curva, andando, solitariamente, e apreciando a paisagem, avistou ao longe um carro tombado. Dois rapazes com força hercúlea, solenemente, tentaram desvirá-lo. Philipe Condorcet de soslaio até tentou ignorar a cena como se tudo se resolvesse sem sua ajuda, em vão. A consciência salvacionista o acusara de desumanidade, ao passo que seu ego sobressaia, gritando por fazer algo que o redimisse de sua vida comezinha e autorreferenciada. Estacionou a bicicleta e saiu correndo a prestar socorro. Aproximou-se e perguntou se precisavam de ajuda. Os jovens ignoraram-no completamente, como se lá não estivesse. Ainda assim, somou suas forças a dos rapazes e, com muito ímpeto, conseguiram desvirar o veículo. Depois do feito, perceberam que os vidros dianteiros estavam quebrados. O silêncio reinou, só entrecortado pelo uivo dos ventos. Não falavam nada. Após tal façanha, Philipe Condorcet sentou-se de tão cansado e só então percebeu que estava despido da cintura para baixo, somente com uma jaqueta a cobrir suas espáduas. A seminudez, além de não ser notada, não era motivo de constrangimento aos rapazes, pois eles continuavam a ignorar a sua presença

Como se recostou próximo dos pneus traseiros, ouviu um sussurro, uma espécie de frêmito muito baixo. Era uma mulher ferida com duas crianças de colo, também parcialmente feridas. Conseguiram retirá-las, mas achou estranha a falta de preocupação dos rapazes com os possíveis ferimentos da mulher e das crianças, bem como a ausência de pedido de socorro médico. Mesmo despido, insistiu que alguém procurasse ajuda, mas ninguém se importava. Diante da insistência para que um dos rapazes as levassem ao hospital da região, um deles o agrediu com palavras ríspidas, perguntando afinal o que queria e o que fazia ali. Foi embora, mas percebeu que um deles o acompanhava, à medida em que se aproximava de sua bicicleta, como se quisesse se certificar de que não voltaria, ou, se de fato seria essa mesma a atitude a deixar a mulher e as crianças naquelas condições. Incomodado com a situação, virou-se, no intuito de agredi-lo. A reação foi a mesma do observador indômito. Quando, enfim, se encontraram frente a frente,  esbravejou que seu único desejo era ajudar aquela senhora e suas filhas. Então, o mais nervoso, gesticulando como quem galharda, pediu para que parasse de falar e fizesse alguma coisa.

Quando ambos voltaram ao local do acidente, a mulher e as crianças estavam já recuperadas, mesmo diante de tamanho trauma. Havia se formado uma pequena aglomeração e todos que lá estavam, alegremente, comentavam que tanto Philipe Condorcet quanto o mais indômito dos rapazes havia, enfim, feito as pazes, como se já se conhecessem.

Foi, então, que Philipe percebeu, na pequena aglomeração, uma mulher a lhe observar candidamente. Com passos lentos, tentava perceber sua silhueta, os traços do seu rosto, em meio aos braços e pernas das pessoas a turvarem sua visão, completamente obnubilada. Como um déjà vu, sentia que conhecia aquele rosto de algum lugar, mesmo sem identificar de quem se tratava. Somente quando não havia ninguém entre eles, percebeu que se tratava de sua mãe, já falecida. Seu rosto resplandecia, seu sorriso era cândido, como quem, pós-morte, apascentara seu espírito atormentado por uma vida de angústia. Transmitia paz. Olhou para os lados e se deu conta de que somente ele a via, mais ninguém. Absolutamente, ninguém percebera sua presença, como se ali não estivesse. Coçou seus olhos, sua boca seca aumentava a glote à procura de água, seu coração disparou, suas mãos ficaram gélidas e pensou estar louco. Ela continuava a olhá-lo com mais ternura à medida em que se aproximava. Quando, enfim, estavam frente a frente, ela lhe disse: - Filho, a minha preocupação não é o que falam de ti, mas o que pensas de ti mesmo! Condorcet abaixou a cabeça, como quem reconhecia internamente o sentido da mensagem. Quando levantou o rosto, sua mãe não estava mais lá.

Lentamente, caminhou em direção à bicicleta. Já estava vestido da cintura para baixo. Começou a pedalar, refletindo sobre o sentido disso tudo e, até mesmo, se estava alucinado, se havia sofrido algum acidente e batido a cabeça e não se lembrara. Pedalou por horas, quando avistou a montanha mais alta do Plateau de Beille, exatamente, aquela que sempre desejara subir, desde a mais tenra infância. Saiu da estrada e rumou por um caminho de terra até o sopé da montanha. Não tinha equipamento adequado para a subida, sobretudo, roupa para o frio. Olhou a estrada ao longe, avistou o cume da montanha, fechou os olhos, respirou fundo e começou a subida. À medida em que subia, as dores nas pernas, o cansaço, os detritos de pedra que ofuscavam sua vista e a distância a ser percorrida lhe pesavam como quem carregasse o mundo nas costas. Tudo compelia para sua desistência. Recobrava seu fôlego e continuava sua escalada. Suas mãos sangravam de tanto esforço fixando-se nas frestas das pedras, mas nada o fazia parar. Depois de horas de tal escalada, avistou um plateau bem próximo do ponto mais alto e lá havia uma pessoa em posição de lotus, de costas para onde se encontrava, avistando uma outra parte da cadeia montanhosa. Ele se perguntou como alguém poderia estar ali e o que fazia. Quando enfim alcançou o plateau, caminhou lentamente até a pessoa. Era um homem. Seus passos lentos, sobre os detritos do solo arenoso eram abafados pelo uivo dos ventos. O silencio só era interrompido pela onomatopeia das montanhas ao usarem os uivos como palavras para se comunicarem. Deu-se conta de que as montanhas conversavam e guardavam os segredos e toda a história do que se passara naquele lugar, como velhos guardiões do tempo. O tempo era aliado delas e se sentava à mesa para falar da visão finita, sobretudo, das pessoas. Ao chegar bem próximo do homem, tocou em seus ombros e, lentamente, virou-se para olhar quem o tocara, era ele próprio.          

sexta-feira, 2 de outubro de 2020

DESEJO E CRIAÇÃO III

 


A latência das imagens se inicia com o nascimento, ainda que não haja clareza e nem conduta moral para inundar o que serão as lembranças puras. Tudo, no entanto, começa a ser registrado. O corpo absorve as imagens, matéria da vida. As lembranças puras sofrem inflexões das lembranças-imagens até se formarem percepções, propriamente ditas, já transformadas em representações, sentidos, como diria Bergson. O que permanece são as percepções, não mais as imagens puras. O corpo capta as imagens, mas o cérebro as processa. Tudo a passa a ser fremido pela relação presença-ausência. A cada afecção que interpretamos como ausência, é iniciado um processo inconsciente de busca por algo que supostamente possa preencher o vazio, ainda que inominável, ainda que não prefigurado. As dores, construções nomotéticas das memórias já elaboradas, editadas pela percepção, passam a se relacionar com o tempo distinguindo o ontem, passado; hoje, presente; e o amanhã, futuro, ainda que só exista o agora. É a dor da ausência que transforma o passado numa porta sem saída, pois só será passado, deixando de ser presente, exatamente quando a porta estiver aberta e deixar de ser presentificado tal passado. Basta uma imagem captada pelo corpo, ainda pura, depois transformada em lembrança por um ato simbolizado pelos sentidos enquanto referencial, para se constituir uma memória monumental. A vida, então, passa a ser o sentido da reatualização daquela lembrança ou do desejo de reificá-la. Se o presente não for prenhe de seu sentido, então, a porta do passado continuará fechada, isso constitui o que chamamos de morte: a certeza de que aquilo vivido e interpretado enquanto referencial não se repete, ou pelo menos da mesma forma. Começam a luta e as construções das idealizações, sempre à procura da repetição daquilo que o corpo, depois a percepção, nominou como referência. As outras possibilidades soam como estanques, estranhas, alhures. Embora a vida seja um mosaico, prenhe de quaisquer significados que possam ser atribuídos a ela, é a vocalização, a direção do olhar, obnubilados pelos sentidos e as percepções que tangenciam e direcionam como a vida deve ou deveria ser sorvida. É a percepção que, conotada pelos sentidos que assumem o lugar da existência, passa a ser compreendida enquanto tal. Damos vida a tudo que atribuímos peso, importância, força e sentido. Nada é arbitrário, tudo é construído, tudo é referenciado. A mudança de percepção altera as significações. Somos os deuses de nós mesmos. Somos os guias de nossas próprias vidas. Somos os autores do que cognominamos de vida. A morte não é antitética à vida, é a sensação de que aquilo que referenciamos enquanto primordial não pode ser repetido. A nossa luta contra a morte se torna menos hercúlea ou mais hercúlea se fazemos da vida um cabedal chamado de obra. A obra, então, é a monumentalização, a lembrança-imagem congelada, o instante fugaz em que o sentido do que fizemos se imortaliza. O balanço mnemônico da existência é colocado na balança de Anubis. A existência não se interpõe nesse julgamento, e sim, a percepção de que a matéria da vida, apoiada na memória, na hora da morte, pendeu de forma menos heroica Não há ninguém lá fora nos julgando a não ser nós mesmos. E todo esse julgamento nasce no processo de composição das imagens puras e depois imagens-lembranças ou lembranças-imagens, depois percepção.

O corpo, o primeiro a captar as imagens, passa a sofrer com as percepções dos sentidos. Os órgãos internos somatizam o que a matéria-memória edita. A mente intensifica o que ela mesma projetou.  

Um instante perceptivo se emoldura na memória. A busca pela reedição da matéria se constitui numa luta fremente de potência. A pulsão mobiliza. Os sentidos elaboram e reelaboram. A mente aprisiona ou liberta. O corpo deseja. O coração sente. O estômago distribui as sensações e comanda outros órgãos provocando ou uma eubiose ou desbiose, dependendo de como as três mentes: uma localizada no cérebro; outra, no coração e a outra; no estomago, as prefiguram. Corpo e mente formam um compósito amálgama de locução de percepções.

A memória é a edição da matéria. Os mesmos gestos são perseguidos, os mesmos ângulos, as mesmas sensações, as mesmas palavras, interpretações, tudo passa a ser uma condição obsequiosa de repetição. Por isso, as lembranças puras já não importam, e sim, as sensações que elas carregam. Tudo o que não lembre ou não se aproxime de uma situação-monumento passa a ter menos importância, muitas vezes sequer percebida. Assim, o enredo do vivido não é a totalidade da ação, é um filtro da ação.  

Do que é a lembrança? O que é a lembrança? Perguntou Paul Ricoeur.  O que constitui as lembranças? O que os sentidos ritualizam? Como diria Bergson, não se trata de entender como as sensações nascem, mas como são elaboradas. Como os sentidos são atribuídos e por quê?           

              

Entrevista com Arton, de Sirius. Parte II

  Entrevista realizada no dia 14 de fevereiro de 2024, às 20:00, com duração de 1': 32'', gravada em um aparelho Motorola one zo...