terça-feira, 20 de outubro de 2020

O SER DAS MONTANHAS

As montanhas de Plateau de Beille, nos Pirineus, são lugares aprazíveís para atividades diversas como lazer e prática de esportes, sobretudo para quem aprecia o tour de France. Desde tempos remotos, elas são refúgios daqueles que buscam paz de espírito, respostas às suas questões internas e, hodiernamente, escapar das vicissitudes do mundo capital, do frenesi das cidades com suas luzes sedutoras, com o barulho dos carros, ofuscando as vozes pela vida agitada.  

Philipe Condorcet, sempre que pode, apruma seu equipamento de ciclismo e sobe as montanhas, não apenas para se preparar para o tour de France, bem como para respirar novos ares e alcançar o objetivo de um dia subir ao ponto mais alto da mais alta montanha de Plateau de Beille. Subir as montanhas constitui um desafio constante, um objetivo e uma meta. A cada pedalada era como se as horas rodassem para trás, sorvendo o tempo, roubando um pouco dele e se transpondo a uma atmosfera em que a medição dos minutos não fazia muito sentido.  

Depois de tirar uns dias de folga, rumou ao Plateau. Retirou sua bicicleta do carro estacionado na estação de esqui, lançou mão da jaqueta para temperatura mais amena, afinal, estava no meio do outono, quando as folhas secas caem com suas cores acinzentadas, seus tons pastéis, revolvendo-se no chão, levadas pelos ventos da estação, se transformando em solo, adubo, aptas a se transformar em lama, e serem revolvidas.    

Quando contornou uma curva, andando, solitariamente, e apreciando a paisagem, avistou ao longe um carro tombado. Dois rapazes com força hercúlea, solenemente, tentaram desvirá-lo. Philipe Condorcet de soslaio até tentou ignorar a cena como se tudo se resolvesse sem sua ajuda, em vão. A consciência salvacionista o acusara de desumanidade, ao passo que seu ego sobressaia, gritando por fazer algo que o redimisse de sua vida comezinha e autorreferenciada. Estacionou a bicicleta e saiu correndo a prestar socorro. Aproximou-se e perguntou se precisavam de ajuda. Os jovens ignoraram-no completamente, como se lá não estivesse. Ainda assim, somou suas forças a dos rapazes e, com muito ímpeto, conseguiram desvirar o veículo. Depois do feito, perceberam que os vidros dianteiros estavam quebrados. O silêncio reinou, só entrecortado pelo uivo dos ventos. Não falavam nada. Após tal façanha, Philipe Condorcet sentou-se de tão cansado e só então percebeu que estava despido da cintura para baixo, somente com uma jaqueta a cobrir suas espáduas. A seminudez, além de não ser notada, não era motivo de constrangimento aos rapazes, pois eles continuavam a ignorar a sua presença

Como se recostou próximo dos pneus traseiros, ouviu um sussurro, uma espécie de frêmito muito baixo. Era uma mulher ferida com duas crianças de colo, também parcialmente feridas. Conseguiram retirá-las, mas achou estranha a falta de preocupação dos rapazes com os possíveis ferimentos da mulher e das crianças, bem como a ausência de pedido de socorro médico. Mesmo despido, insistiu que alguém procurasse ajuda, mas ninguém se importava. Diante da insistência para que um dos rapazes as levassem ao hospital da região, um deles o agrediu com palavras ríspidas, perguntando afinal o que queria e o que fazia ali. Foi embora, mas percebeu que um deles o acompanhava, à medida em que se aproximava de sua bicicleta, como se quisesse se certificar de que não voltaria, ou, se de fato seria essa mesma a atitude a deixar a mulher e as crianças naquelas condições. Incomodado com a situação, virou-se, no intuito de agredi-lo. A reação foi a mesma do observador indômito. Quando, enfim, se encontraram frente a frente,  esbravejou que seu único desejo era ajudar aquela senhora e suas filhas. Então, o mais nervoso, gesticulando como quem galharda, pediu para que parasse de falar e fizesse alguma coisa.

Quando ambos voltaram ao local do acidente, a mulher e as crianças estavam já recuperadas, mesmo diante de tamanho trauma. Havia se formado uma pequena aglomeração e todos que lá estavam, alegremente, comentavam que tanto Philipe Condorcet quanto o mais indômito dos rapazes havia, enfim, feito as pazes, como se já se conhecessem.

Foi, então, que Philipe percebeu, na pequena aglomeração, uma mulher a lhe observar candidamente. Com passos lentos, tentava perceber sua silhueta, os traços do seu rosto, em meio aos braços e pernas das pessoas a turvarem sua visão, completamente obnubilada. Como um déjà vu, sentia que conhecia aquele rosto de algum lugar, mesmo sem identificar de quem se tratava. Somente quando não havia ninguém entre eles, percebeu que se tratava de sua mãe, já falecida. Seu rosto resplandecia, seu sorriso era cândido, como quem, pós-morte, apascentara seu espírito atormentado por uma vida de angústia. Transmitia paz. Olhou para os lados e se deu conta de que somente ele a via, mais ninguém. Absolutamente, ninguém percebera sua presença, como se ali não estivesse. Coçou seus olhos, sua boca seca aumentava a glote à procura de água, seu coração disparou, suas mãos ficaram gélidas e pensou estar louco. Ela continuava a olhá-lo com mais ternura à medida em que se aproximava. Quando, enfim, estavam frente a frente, ela lhe disse: - Filho, a minha preocupação não é o que falam de ti, mas o que pensas de ti mesmo! Condorcet abaixou a cabeça, como quem reconhecia internamente o sentido da mensagem. Quando levantou o rosto, sua mãe não estava mais lá.

Lentamente, caminhou em direção à bicicleta. Já estava vestido da cintura para baixo. Começou a pedalar, refletindo sobre o sentido disso tudo e, até mesmo, se estava alucinado, se havia sofrido algum acidente e batido a cabeça e não se lembrara. Pedalou por horas, quando avistou a montanha mais alta do Plateau de Beille, exatamente, aquela que sempre desejara subir, desde a mais tenra infância. Saiu da estrada e rumou por um caminho de terra até o sopé da montanha. Não tinha equipamento adequado para a subida, sobretudo, roupa para o frio. Olhou a estrada ao longe, avistou o cume da montanha, fechou os olhos, respirou fundo e começou a subida. À medida em que subia, as dores nas pernas, o cansaço, os detritos de pedra que ofuscavam sua vista e a distância a ser percorrida lhe pesavam como quem carregasse o mundo nas costas. Tudo compelia para sua desistência. Recobrava seu fôlego e continuava sua escalada. Suas mãos sangravam de tanto esforço fixando-se nas frestas das pedras, mas nada o fazia parar. Depois de horas de tal escalada, avistou um plateau bem próximo do ponto mais alto e lá havia uma pessoa em posição de lotus, de costas para onde se encontrava, avistando uma outra parte da cadeia montanhosa. Ele se perguntou como alguém poderia estar ali e o que fazia. Quando enfim alcançou o plateau, caminhou lentamente até a pessoa. Era um homem. Seus passos lentos, sobre os detritos do solo arenoso eram abafados pelo uivo dos ventos. O silencio só era interrompido pela onomatopeia das montanhas ao usarem os uivos como palavras para se comunicarem. Deu-se conta de que as montanhas conversavam e guardavam os segredos e toda a história do que se passara naquele lugar, como velhos guardiões do tempo. O tempo era aliado delas e se sentava à mesa para falar da visão finita, sobretudo, das pessoas. Ao chegar bem próximo do homem, tocou em seus ombros e, lentamente, virou-se para olhar quem o tocara, era ele próprio.          

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