Sentado na cadeira de balançar todas as tardes com sua “veia”,
como costuma chamar sua esposa, sempre na porta de casa – uma antiga prática
remanescente dos moradores de bairros em São Luís –, um senhor de 85 anos
contempla a vida passar a sua frente.
Esse senhor de estatura mediana, pele alva, já marcada por
manchas de sol, sereno, plácido, sábio, não passa pela vida incólume, marcou
muitos por onde passou, mas, sobretudo, sua família; para esta, a maior
referência de ser humano.
Trabalhou desde pequeno no então terreiro do Vinhais,
Vinhais velho, lote de terra que pertencia a seu pai. Continuou
trabalhando até atingir a aposentadoria compulsória, forçada a contragosto. Foi
tratorista, motorista no antigo fomento, antiga fortificação colonial existente
até hoje no bairro do Diamante, antes de ter passado
pelo município de Codó, interior do Maranhão. Trabalho sempre foi seu
lema, quer no emprego público, quer em casa, sempre burilando algo
para fazer, mexe daqui, arruma dali, reforma a casa, pega em ferramenta, nunca,
nunca parava. Subia no telhado, o mesmo que uma criança passou boa parte de
sua infância contemplando o céu e pensando sobre o que era a
vida.
Sempre foi o mais querido da família, o centro, pois
mesmo sendo lacônico, e exatamente por isso, quando falava, todos se
calavam para ouvir. Sempre foi a referência de moralidade, de caráter, de boa
gente, de humildade, bondade, temperança, paciência, sabedoria, talvez a
palavra que melhor o defina.
Hoje, esse senhor de 85 anos, combalido pela vida,
acometido por um AVC (acidente vascular cerebral), faz fisioterapia todas as
manhãs de quinta-feira no hospital de referência de recuperação do aparelho
locomotor, Sarah Kubitschek, excelente por sinal, e que por sinal também
deveria ser ampliado para todas as capitais, ainda mais equipado, o que só
mostra o descaso com a saúde pública no Brasil.
Não lamento o estado em que ele se encontra. Soube do AVC
quando estava em Salamanca, na Espanha, em 2009. Atônito, perdido, desesperado,
fui amparado pelos amigos e colegas de Departamento sem saber o que fazer, e
eles foram fundamentais para meu controle, afinal, o Atlântico nos separava, e
a vida passou como um filme na minha frente.
Foi ali que a vida tomou uma nova direção, passei a
valorizá-la em cada minúcia, detalhe, somente pelo fato de imaginar que
jamais o veria. Tudo passou a ter mais sentido, fiquei com medo de passar pela
vida e não sorvê-la intensamente.
Todas as quintas-feiras levo esse senhor, meu pai, com uma
das minhas irmãs para a fisioterapia, ou Margô ou Nel, e lá me deparo com gente
de toda ordem de tratamento, idade e condições: crianças, jovens e adultos no
afã e desiderato de retomarem suas vidas,
ou construírem outras.
É tocante ver aquela gente se esforçando ao lado dos
parentes, não desistindo, lutando, acreditando, esperando. O lugar
é belíssimo em todos os sentidos, não só por sua localização
geográfica: as margens do rio Anil, ventilado, com o mangue por visão, como
também por ser um lugar de vida, apesar dos traumas. É sempre emocionante
compartilhar as histórias, renovar a esperança, olhar os nossos buracos e
traumas de outra forma, enxergar a beleza, apesar das dificuldades. Ali é um
lugar de renovação, do recomeçar, de olhar para as feridas e se perguntar como
essas podem ensinar a (re)valorizar algo possivelmente perdido. Definitivamente
é um lugar de esperança.
Assim, olho meu pai sendo muitíssimo bem cuidado
pela dedicação e competência de toda a equipe, e em especial, da
fisioterapeuta Luciana Nolasco Macedo: paciente, educada, atenciosa, precisa e
estimuladora. Faltam adjetivos para sua dedicação. É tocante. Fico sentado
durante as duas horas de fisioterapia vendo o esforço de meu velho, o mesmo que
teve a vida inteira. Vejo o brilho e garra nos seus olhos,
a relutância em não se entregar, e ele sem saber continua a me
ensinar.
Vejo um filme passar na minha frente, desde minha tenra
idade, quando no telhado da minha casa imaginava mundos distantes, e às vezes
ele subia para consertar alguma telha, arrumar a antena e me perguntar o que
fazia ali. Ele sempre me entendia no seu silêncio.
Do meu pai guardo o que melhor a vida pôde dar: amor,
dedicação, cumplicidade, compaixão, paciência, ternura. Jamais me bateu, jamais
gritou, embora seu olhar lancinante cortasse mais que navalha. Preferia mil
vezes apanhar de minha mãe; minha venerada, idolatrada e amada negra, gorda,
pulsante, tão visceral quanto eu, tão escorpiana quanto, qual herdei o gosto
musical, a vontade de correr mundo e o gosto pela vida, que apanhar de meu pai.
No fundo, meus pais se completam, um não vive sem o outro, e lá se vão 60 anos
de casamento. É o que se chama de simbiose.
De suas histórias cresci ouvindo sobre sua infância nas “morrarias”,
hoje chamam de Lençóis Maranhenses, das cachaças, da valentia de seu
amigo que de forma intrépida, primeiro bebia, depois escolhia alguém no bar
para pagar a conta, de como se perdeu na pequena e bucólica Primeira Cruz,
lugar que eu fiz questão de conhecer. É difícil selecionar qual
história mais me marca, a vida dele é a grande história.
Certa vez, nas tantas festas que rondavam minha casa,
cresci com barulho, muita gente, família grande, música, meus tios no
violão, às vezes minha mãe cantando e tocando, ele começou a assobiar Carolina. Aliás, ele sempre
cantarolava Carolina. Já
na faculdade, um belo dia bebendo no Bambu Bar, eu ouvi Carolina na vitrola. Despertei-me. Peguei um
disco de capa vermelha e dei conta de um cantor chamado Chico Buarque. A data
da música: 1969. Ao voltar para casa, comentei com meu velho que ouvira Carolina e que era de Chico Buarque. Ele
petardou: “Impossível, Carolina é de minha infância”, cresci
ouvindo essa música. Somente depois de mostrar-lhe a data do disco, ele se
apascentou, como sábio, ficou calado, pensativo. Mal ele sabia como
aquela possível contradição marcara minha vida.
Certo dia, ministrando aula no interior do Maranhão sobre
teorias da história, disciplina da minha vida, comecei a explanar
acerca da relação entre história e memória. Foi aí que me dei conta de por que
papai confundira Carolina com sua infância. História não é
memória, é a formalização desta, organização, didatização, criação de sentido e
ordem. Memória é espontânea, seletiva, subjetiva, as pessoas refazem e
reconstroem suas memórias a partir de seus crivos. Para ele, Carolina representava um tempo feliz,
felicidade para ele, num tempo longínquo era a infância, a partir daí
passei a encarar a história e a memória de outra forma.
De outra forma também vejo-o hoje no hospital Sarah todas
as quintas-feiras, não com tristeza melancólica, e sim com amor de filho pelo
pai, exatamente o homem que mais marcou minha vida e de meus irmãos e irmãs.
Vejo-o com os cuidados que devemos ter, afinal, dedicou a vida inteira à
mulher, sua “veia”, e aos filhos com esmero, dedicação e profundo amor.
Ele faz todos os exercícios, a fisioterapeuta Luciana
o elogia dizendo que é um aluno aplicado, às vezes faz mais do que deveria, mas
nunca reclama de nada, incansável, lutador, guerreiro, como sempre foi.
Não sei o que fiz para merecer meus pais, irmãos e irmãs,
dizem que a gente escolhe a família antes de nascer, então escolhi
bem. Escolhi por pai um homem integro do qual me orgulho e me envergonho de não
ser nem 10 por cento do que ele é, e nunca serei, já me acostumo com essa
ideia.
Quando chego ao Sarah, gostaria que as pessoas soubessem
que é meu pai, mas isso é injusto, afinal, também não sei quem são aquelas
pessoas, suas vidas, suas histórias, só sei que todos os dias, existem muitos
internos, tais pessoas também insistem em viver, pois que viver é uma dádiva,
estar vivo é a maior comprovação do amor.
Nessa mesma intensidade, vejo o Senhor Manoel dos Reis
Maia, meu pai, velho, meu querido velho, continuando a ensinar que viver é uma
arte, é uma escolha. Ele fez a dele: decidiu viver com dignidade, maestria,
placidez, serenidade e muita, muita vontade de não se entregar.
Honestamente, quando o vejo na fisioterapia me dou conta de
que continua me ensinando, sempre. A vida se renova, a dele é um bálsamo
transbordante. Enquanto eu puder vou beber dessa fonte.
Obrigado meu pai por existir.
Te amo muito. O menino do telhado cresceu... E continua te
enxergando subir na casa. Eu envelheço resguardando a criança que há dentro de
mim, a que sempre idolatrou seu pai.
Realmente, meu irmão, tu soubestes com maestria dizer o que é nosso pai. Aliás, esse sentimento é de todos nós, filhos. Nossa família é abençoada pelos pais que temos num mundo onde tudo é relativo, nós aprendemos que existem valores que devem ser preservados, isso eles nos ensinaram muito bem. Eu tenho muito orgulho da minha família e de ti, por ser o caçula e ter o entendimento tão claro desses valores que tu também procura repassar para tuas filhas (sobrinhas que eu amo). Te amo, meu irmão e parabéns por mais esta crônica maravilhosa. Margô Maia
ResponderExcluirminha amada irmã, também és uma referencia para mim, deste-me leite, literalmente, além do leite do saber. devo muito a ti. te amo, obrigado por existir em minha vida
ExcluirQ linda homenagem Henrique e que coicidência em 2009 aconteceu o mesmo com minha mae e eu tinha acabado de voltar pra Alemanha, me casado, nao pude acompanhar, mas tenho uma grande família como a sua que nessas horas faz tudo, ela tb passou pelo Sara, realmente ótimo hospital, hj ela está bem, reabilitada, mas nao como antes, esperado, ela nao é mais uma jovem, tem a questao idade, tempo e assim reconhecemos que o que importa mesmo nessa vida sao esses lacos, bjs.
ResponderExcluirminha querida qual não sei o nome, mas só o fato de também compartilhar tua história mostra tua sensibilidade para com tua mae. que bom que ela está bem, meu pai também, vai aos poucos recuperando os movimentos. obrigado pelo post.
Excluirabraços do Henrique
ain.... kii lindooo!! realmente os nossos pais são figuras ilustres! emocionei-me!! Marina
ResponderExcluirque bom priminha. beijos do henrique
ExcluirTe ter como irmão é uma dádiva! Sinto-me honrada!
ResponderExcluira honra é minha amada irmã. não sabes quanto me ensinaste e me ensinas. beijos do mano que te adora
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