sexta-feira, 22 de junho de 2012

velho, meu querido velho

 Sentado na cadeira de balançar todas as tardes com sua “veia”, como costuma chamar sua esposa, sempre na porta de casa – uma antiga prática remanescente dos moradores de bairros em São Luís –, um senhor de 85 anos contempla a vida passar a sua frente.

Esse senhor de estatura mediana, pele alva, já marcada por manchas de sol, sereno, plácido, sábio, não passa pela vida incólume, marcou muitos por onde passou, mas, sobretudo, sua família; para esta, a maior referência de ser humano.

Trabalhou desde pequeno no então terreiro do Vinhais, Vinhais velho, lote de terra que pertencia a seu pai. Continuou trabalhando até atingir a aposentadoria compulsória, forçada a contragosto. Foi tratorista, motorista no antigo fomento, antiga fortificação colonial existente até hoje no bairro do Diamante, antes de ter passado pelo município de Codó, interior do Maranhão. Trabalho sempre foi seu lema, quer no emprego público, quer em casa, sempre burilando algo para fazer, mexe daqui, arruma dali, reforma a casa, pega em ferramenta, nunca, nunca parava. Subia no telhado, o mesmo que uma criança passou boa parte de sua infância contemplando o céu e pensando sobre o que era a vida. 

Sempre foi o mais querido da família, o centro, pois mesmo sendo lacônico, e exatamente por isso, quando falava, todos se calavam para ouvir. Sempre foi a referência de moralidade, de caráter, de boa gente, de humildade, bondade, temperança, paciência, sabedoria, talvez a palavra que melhor o defina. 

Hoje, esse senhor de 85 anos, combalido pela vida, acometido por um AVC (acidente vascular cerebral), faz fisioterapia todas as manhãs de quinta-feira no hospital de referência de recuperação do aparelho locomotor, Sarah Kubitschek, excelente por sinal, e que por sinal também deveria ser ampliado para todas as capitais, ainda mais equipado, o que só mostra o descaso com a saúde pública no Brasil.

Não lamento o estado em que ele se encontra. Soube do AVC quando estava em Salamanca, na Espanha, em 2009. Atônito, perdido, desesperado, fui amparado pelos amigos e colegas de Departamento sem saber o que fazer, e eles foram fundamentais para meu controle, afinal, o Atlântico nos separava, e a vida passou como um filme na minha frente.

Foi ali que a vida tomou uma nova direção, passei a valorizá-la em cada minúcia, detalhe, somente pelo fato de imaginar que jamais o veria. Tudo passou a ter mais sentido, fiquei com medo de passar pela vida e não sorvê-la intensamente.

Todas as quintas-feiras levo esse senhor, meu pai, com uma das minhas irmãs para a fisioterapia, ou Margô ou Nel, e lá me deparo com gente de toda ordem de tratamento, idade e condições: crianças, jovens e adultos no afã e desiderato de retomarem suas vidas, ou construírem outras. 

É tocante ver aquela gente se esforçando ao lado dos parentes, não desistindo, lutando, acreditando, esperando. O lugar é belíssimo em todos os sentidos, não só por sua localização geográfica: as margens do rio Anil, ventilado, com o mangue por visão, como também por ser um lugar de vida, apesar dos traumas. É sempre emocionante compartilhar as histórias, renovar a esperança, olhar os nossos buracos e traumas de outra forma, enxergar a beleza, apesar das dificuldades. Ali é um lugar de renovação, do recomeçar, de olhar para as feridas e se perguntar como essas podem ensinar a (re)valorizar algo possivelmente perdido. Definitivamente é um lugar de esperança.

Assim, olho meu pai sendo muitíssimo bem cuidado pela dedicação e competência de toda a equipe, e em especial, da fisioterapeuta Luciana Nolasco Macedo: paciente, educada, atenciosa, precisa e estimuladora. Faltam adjetivos para sua dedicação. É tocante. Fico sentado durante as duas horas de fisioterapia vendo o esforço de meu velho, o mesmo que teve a vida inteira. Vejo o brilho e garra nos seus olhos, a relutância em não se entregar, e ele sem saber continua a me ensinar. 

Vejo um filme passar na minha frente, desde minha tenra idade, quando no telhado da minha casa imaginava mundos distantes, e às vezes ele subia para consertar alguma telha, arrumar a antena e me perguntar o que fazia ali. Ele sempre me entendia no seu silêncio. 

Do meu pai guardo o que melhor a vida pôde dar: amor, dedicação, cumplicidade, compaixão, paciência, ternura. Jamais me bateu, jamais gritou, embora seu olhar lancinante cortasse mais que navalha. Preferia mil vezes apanhar de minha mãe; minha venerada, idolatrada e amada negra, gorda, pulsante, tão visceral quanto eu, tão escorpiana quanto, qual herdei o gosto musical, a vontade de correr mundo e o gosto pela vida, que apanhar de meu pai. No fundo, meus pais se completam, um não vive sem o outro, e lá se vão 60 anos de casamento. É o que se chama de simbiose.

De suas histórias cresci ouvindo sobre sua infância nas “morrarias”, hoje chamam de Lençóis Maranhenses, das cachaças, da valentia de seu amigo que de forma intrépida, primeiro bebia, depois escolhia alguém no bar para pagar a conta, de como se perdeu na pequena e bucólica Primeira Cruz, lugar que eu fiz questão de conhecer. É difícil selecionar qual história mais me marca, a vida dele é a grande história.

Certa vez, nas tantas festas que rondavam minha casa, cresci com barulho, muita gente, família grande, música, meus tios no violão, às vezes minha mãe cantando e tocando, ele começou a assobiar Carolina. Aliás, ele sempre cantarolava Carolina. Já na faculdade, um belo dia bebendo no Bambu Bar, eu ouvi Carolina na vitrola. Despertei-me. Peguei um disco de capa vermelha e dei conta de um cantor chamado Chico Buarque. A data da música: 1969. Ao voltar para casa, comentei com meu velho que ouvira Carolina e que era de Chico Buarque. Ele petardou: “Impossível, Carolina é de minha infância”, cresci ouvindo essa música. Somente depois de mostrar-lhe a data do disco, ele se apascentou, como sábio, ficou calado, pensativo. Mal ele sabia como aquela possível contradição marcara minha vida.

Certo dia, ministrando aula no interior do Maranhão sobre teorias da história, disciplina da minha vida, comecei a explanar acerca da relação entre história e memória. Foi aí que me dei conta de por que papai confundira Carolina com sua infância. História não é memória, é a formalização desta, organização, didatização, criação de sentido e ordem. Memória é espontânea, seletiva, subjetiva, as pessoas refazem e reconstroem suas memórias a partir de seus crivos. Para ele, Carolina representava um tempo feliz, felicidade para ele, num tempo longínquo era a infância, a partir daí passei a encarar a história e a memória de outra forma.

De outra forma também vejo-o hoje no hospital Sarah todas as quintas-feiras, não com tristeza melancólica, e sim com amor de filho pelo pai, exatamente o homem que mais marcou minha vida e de meus irmãos e irmãs. Vejo-o com os cuidados que devemos ter, afinal, dedicou a vida inteira à mulher, sua “veia”, e aos filhos com esmero, dedicação e profundo amor.

Ele faz todos os exercícios, a fisioterapeuta Luciana o elogia dizendo que é um aluno aplicado, às vezes faz mais do que deveria, mas nunca reclama de nada, incansável, lutador, guerreiro, como sempre foi.

Não sei o que fiz para merecer meus pais, irmãos e irmãs, dizem que a gente escolhe a família antes de nascer, então escolhi bem. Escolhi por pai um homem integro do qual me orgulho e me envergonho de não ser nem 10 por cento do que ele é, e nunca serei, já me acostumo com essa ideia.

Quando chego ao Sarah, gostaria que as pessoas soubessem que é meu pai, mas isso é injusto, afinal, também não sei quem são aquelas pessoas, suas vidas, suas histórias, só sei que todos os dias, existem muitos internos, tais pessoas também insistem em viver, pois que viver é uma dádiva, estar vivo é a maior comprovação do amor.

Nessa mesma intensidade, vejo o Senhor Manoel dos Reis Maia, meu pai, velho, meu querido velho, continuando a ensinar que viver é uma arte, é uma escolha. Ele fez a dele: decidiu viver com dignidade, maestria, placidez, serenidade e muita, muita vontade de não se entregar.

Honestamente, quando o vejo na fisioterapia me dou conta de que continua me ensinando, sempre. A vida se renova, a dele é um bálsamo transbordante. Enquanto eu puder vou beber dessa fonte.

Obrigado meu pai por existir.

Te amo muito. O menino do telhado cresceu... E continua te enxergando subir na casa. Eu envelheço resguardando a criança que há dentro de mim, a que sempre idolatrou seu pai.                             












  

8 comentários:

  1. Realmente, meu irmão, tu soubestes com maestria dizer o que é nosso pai. Aliás, esse sentimento é de todos nós, filhos. Nossa família é abençoada pelos pais que temos num mundo onde tudo é relativo, nós aprendemos que existem valores que devem ser preservados, isso eles nos ensinaram muito bem. Eu tenho muito orgulho da minha família e de ti, por ser o caçula e ter o entendimento tão claro desses valores que tu também procura repassar para tuas filhas (sobrinhas que eu amo). Te amo, meu irmão e parabéns por mais esta crônica maravilhosa. Margô Maia

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    1. minha amada irmã, também és uma referencia para mim, deste-me leite, literalmente, além do leite do saber. devo muito a ti. te amo, obrigado por existir em minha vida

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  2. Q linda homenagem Henrique e que coicidência em 2009 aconteceu o mesmo com minha mae e eu tinha acabado de voltar pra Alemanha, me casado, nao pude acompanhar, mas tenho uma grande família como a sua que nessas horas faz tudo, ela tb passou pelo Sara, realmente ótimo hospital, hj ela está bem, reabilitada, mas nao como antes, esperado, ela nao é mais uma jovem, tem a questao idade, tempo e assim reconhecemos que o que importa mesmo nessa vida sao esses lacos, bjs.

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    1. minha querida qual não sei o nome, mas só o fato de também compartilhar tua história mostra tua sensibilidade para com tua mae. que bom que ela está bem, meu pai também, vai aos poucos recuperando os movimentos. obrigado pelo post.

      abraços do Henrique

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  3. ain.... kii lindooo!! realmente os nossos pais são figuras ilustres! emocionei-me!! Marina

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  4. Te ter como irmão é uma dádiva! Sinto-me honrada!

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    1. a honra é minha amada irmã. não sabes quanto me ensinaste e me ensinas. beijos do mano que te adora

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