segunda-feira, 15 de junho de 2015

O idealista e sua viagem interna




O idealista em última estância está sempre em dívida consigo mesmo. Sua busca incessante por um mundo melhor encobre uma dívida com sua consciência, mas isso não faz dele um pérfido ególatra, no máximo, um altruísta em busca de reparação pela sua falta de doação. É uma espécie de casuísmo, uma procura frenética pela reflexão travestida no olhar de outrem, um corroborador de suas angústias, um cumplice para o fim da sentença de culpa. Culpa quando oprime bloqueia a capacidade de mobilização, quando é um estampido, uma sinalização do caminho errado, é demonstração de humanidade. Sem algum tipo de culpa nos tornamos monstros, pois quando não há alteridade e compaixão isso se torna um sintoma de ausência de humanidade. Quando a humanidade escapa nos tornamos sombras de nós mesmos, espectros de nossas projeções. O que faz de nos humanos é a nossa imensa capacidade de nos tornamos assim pelo desejo de assim o sermos. Sem isso, tudo se torna fulgural, espásmico, fugidio, simulacro, como se a linguagem conotasse o sentido de ser, quando o signo assume o lugar do significante, sem o significante, ainda assim já sendo o significado. É como se a linguagem fosse a única redenção para um mundo sem sentido, e sem sentido, ela passa a significar qualquer coisa, inclusive a inapropriação de qualquer sentido. A linguagem nesse aspecto nem é necessidade de dizer, expressar algo, enquanto força de pensamento sem um aporte, nem um instrumento onde o pensamento deita sua logicidade esclarecendo, através da linguagem, qualquer possibilidade cognitiva do mundo, e sim, um elemento que, já tendo sido criação e criatura, voltando a reverberar a capacidade de entendimento de tudo, passa a simplesmente a existir dentro de uma esfera autoreferenciada, que mesmo ligado ao pensamento já não depende mais dele, é autômata, tem vida própria, nem mesmo necessidade de comunicar algo sobre o que é humano. Foi dentro desta lógica que os sistemas operacionais se tornaram autômatos, independentes da necessidade inicial, qual seja: a de ser, enquanto expressão da inteligência humana, extensão dela. O idealista em algum lugar dentro sabe disso, pois que no fundo ele em alguma instância contribui para um mundo sem sentido quando desleixado de sua condição pletora de mudança, se colocou como um apátrida, um pária de sua intenção inicial, sobretudo porque sabia que tinha condições de contribuir para uma ideia melhor de humanidade. Ao não fazer tornou-se um errante de si mesmo, vagueando pelos mundos exteriores em busca de justificação para o abandono daquilo que um dia foi sua missão, qual seja: pela linguagem, sempre ela, ajudar enquanto intentio para a codificação de um mundo inteligível e melhor. Ao contrário, ao fugir desse caminho, buscou, também pela linguagem, recursos legitimantes autoreferenciados, uma espécie de signo deslocado da apropriação inicial, livrando-se da culpa por não ter que prestar contas a si mesmo. Mas aí, começa a crise de consciência por saber em algum lugar dentro dele mais cedo ou mais cedo terá que retomar o caminho de volta, sem o qual o exercício frenético de uma linguagem distante, ainda que seja uma ideia construída de humanidade, uma idealização, uma utopia, o retira do olimpo, do lugar sacralizado dos que contribuíram para um mundo melhor. Assim começa a trajetória de todo idealista, uma espécie de retorno da ilha de Ítaca, sem fuga, com tempestades, sem possibilidade de abandono do barco. Enquanto isso não fizer, estará sempre em dívida consigo e, para ele, com os outros, já que não existe um eu sem um outro.              

terça-feira, 2 de junho de 2015

O medo como artefato da indústria da violência


Medo. Conjunto de ações e ou circunstâncias que levam os indivíduos às situações de riscos, de impotência, suscitando sensações de paúra, de uma momentânea ou duradoura percepção de não controle, de incapacidade de reação, inconstância e debilidade psicológica.

Violência. Conjunto de ações e ou circunstâncias que levam os indivíduos a uma percepção e sensação real de agressão às suas integridades físicas e psicológicas; conjunto de caracteres que ameaçam o equilíbrio de pessoas em suas reais e costumeiras situações de bem-estar. 

A violência por vezes é dividida, grosso modo, em três características: a física, a psicológica e a simbólica.

Entre o medo e a violência existe um entremeio, visto que por vezes se constitui em simbiose; o medo pode ser decorrência da violência, assim como a violência é municiada pelo medo ou é acionada por ela.

A questão é que na contemporaneidade esses dois elementos estão permeados de ações e estratégias de ocultamento de práticas políticas, de estratagemas da indústria do armamento, de grupos classistas que vociferam discursos empreendedores do medo e alimentadores da violência, de ideologias competitivas que sublimam a precariedade do estado e conspurcam o favorecimento de classes e setores da sociedade, da publicidade capitalista que idealiza modelos de sociabilidades excludentes em detrimento de grandes parcelas pobres distantes do consumo, dentre outras coisas.

A violência contemporânea, que tem a capacidade de ocultar sua própria estratégia de permanência e sobrevivência, dirigiu nossos olhares para as novas configurações sobre a violência, fazendo-nos não enxergar o quanto a existência social é altamente violenta. Aprendemos a nos acostumar com a pobreza, como se ela não fosse uma circunstância social e sim um dado da natureza. Aprendemos a admitir a existência do estado, suas ausências, suas omissões, gerando inclusive atitudes violentas de indivíduos como se eles fossem os grandes responsáveis pelos desequilíbrios sociais e não o estado.

Acostumamo-nos a apreciar os noticiários sensacionalistas de jornais à procura de sangue, por vezes esbravejando que “bandido bom é bandido morto”. Também estamos cauterizados com ações abruptas dos aparelhos repressores do estado, como a polícia, em situações de reivindicação social sob a alegação de perturbação social.

A publicidade, com viés machista e sexista, abusa do uso sensual das mulheres tratando-os como objetos de desejo e consumo. Sem esquecer do caráter desejante do fetiche da mercadoria catapultando as frustrações coletivas como impulso ao mercado, ou seja, ir às compras “garante empoderamento àqueles que podem usufruir do poder de ir às lojas”, sublimando as frustrações, já transformadas em fantasia.

Também são formas de violência: o discurso homofóbico, racista e preconceituoso, a intolerância religiosa, a corrupção do estado, das empresas e dos partidos políticos, a péssima distribuição de renda, o péssimo retorno social do que se paga de imposto, o assédio sexual, em qualquer esfera, o assédio psicológico, o caráter ideológico da imprensa ocultando os interesses partidários e empresariais, o aparelhamento do judiciário e suas ações ultra corporativistas, as ofensas nas redes sociais virtuais, a fome, a miséria, a usurpação de terras indígenas, seu confisco e apropriação, a legislação contra terras quilombolas e o conjunto quase infindável de ações.

Então, por que a violência física, aquela que se deita sua ação em assaltos, mortes, tiroteios, facadas, roubos, etc, chamam mais a atenção levando paúra aos moradores brasileiros? Antes de qualquer coisa, porque de fato a integridade física é a último espaço de resguardo da condição ôntica do indivíduo. Segundo, porque os dados da violência no Brasil se assemelham aos de uma guerra, sem estarmos em guerra com outra nação, a não ser a interna. No entanto, existe uma profunda correlação entre os dados estatísticos, a forma como são tratados, a exploração cultural desses dados e a insurgência de uma indústria da violência.

A indústria da violência se nutre do medo perpetuado cotidianamente no Brasil. Ela se alimenta no aumento de pedidos e vendas de carros blindados, de condomínios fechados, de grades de segurança, de câmaras de vigilância, de seguranças privados, de coletes a prova de balas, do aumento do número de armas de fogo, do panopticismo das grandes cidades vigiando e controlando toda gente, da instauração do direito do estado de invadir a privacidade dos seus cidadãos, da ideia de considerar possíveis inimigos do estado, da campanha pela redução da maioridade penal ocultando os interesses de setores do corpo burocrático do estado a serviço do capital, em construção de presídios de segurança máxima privatizados, consequentemente, no aumento da força de trabalho em decorrência também do aumento da população carcerária.

Qual é a maior população carcerária do mundo? Os USA. País rico, industrializado, insigne defensor da pena de morte, ainda que se constate que quem mais caminha pelos corredores da morte são pobres e negros. Em outras palavras, não é de se considerar que a violência não existe, e sim, como ela é tratada e alimentada pelo capital e pelo estado. O maior beneficiário da existência da violência é a indústria da violência, a mais rentável do mundo.

Por que a violência, ainda que alimentada pela indústria e pelo capital, é estrategicamente combatida pela política de bem-estar social, amparada pelo próprio capital? Em parte, porque a violência afronta o princípio liberal de bem-estar burguês, ou seja, é uma afronta as conquistas da livre concorrência. Quer dizer, com uma mão a indústria da violência fatura milhões com a venda de produtos antiviolência, com a outra, reclama da perda do gozo adquirido pelos cidadãos que não podem desfrutar de tais conquistas por conta do medo de serem atacados.

Em tempos de crise econômica afloram discursos e práticas pautadas na intolerância e no ódio social. O medo sempre foi o combustível para discursos inflamados e intervenção autoritária do estado. Exemplos: ascensão de Napoleão Bonaparte, ascensão do nazi-fascismo na Europa, combate as plantações de cânhamo nos USA e insurgência de um discurso demonizador da Canabis e seus usuários, ainda que no século XIX o Sul dos USA em parte se pautou em tal produção, intervenções militares na América Latina para combate ao comunismo, Guerra do Vietnã sob o mesmo pretexto.

O contrário também é verdadeiro, uso da violência para garantia da livre concorrência e implementação de uma sociedade de mercado, casos de New York no século XIX, tomada por gangues que aterrorizavam a periferia da cidade e nas décadas de 70 e 80 do século XX com a política de pacificação das ruas da cidade e “limpeza” da violência. Contraditório, vez que a freeway rasgou o Bronx desalojando milhares de pessoas gerando mais violência.

Até a indústria cinematográfica se nutre da violência constituindo a estética da violência, quando aquilo que foge ao um padrão burguês de normalidade, de relação conjugal, de família, até mesmo do american way of life passa a ser consumido enquanto estética.

A estética da violência difere um pouco da violência enquanto estética, casos da exploração desse repertório não em função da arte, como no cinema, mas sim na consumação em larga escala de uma estética encharcada de sangue, como nos jornais sensacionalistas. Neste caso não prevalece uma estética a serviço da arte, mas da publicidade jornalística.

Um terceiro vetor é da ética da violência, sobejamente presente nos ritos de passagem da puberdade para a fase adulta, sobretudo nos homens, na prática de dominação masculina sobre a condição sexual das mulheres, no contentamento no porte de arma e na ideia de uso indevido dela todas as vezes que a moral masculina for alvejada, atingida, ferida, aviltada.

No Brasil estamos assistindo a uma esquizofrenia coletiva por conta da escalada da violência e de elementos subjacentes na cultura violenta da sociedade brasileira, psicanaliticamente ocultada pela teoria da cordialidade. Uma sociedade historicamente escravocrata, a penúltima a abolir a escravidão nas Américas, acostumou-se em foi gestada na violência cotidiana da escravidão, depois acostumada com o surgimento das favelas, das transferências migratórias entre as regiões, do êxodo rural e da ação opressiva do estado, optou por se auto proclamar cordial e imersa numa democracia racial. Agora, soçobram discursos pedindo a volta da ditadura militar, pela redução da maioridade penal, contra os direitos humanos sob o argumento de que só defendem bandidos, pela anulação do plebiscito que retirou dos brasileiros o direito de portar armas, pela necessidade de construção de mais presídios, mais ação do estado, mais intervenção militar, mais confronto, mais polícia, mais tudo.

É um ciclo vicioso: o estado não cumpre seu papel, fica à mercê do grande capital que pauta suas políticas públicas, que se nutre da violência vendendo seus produtos e afirmando a existência do próprio estado, ainda que ineficiente, sobretudo por ser caudatário, que pressiona o estado para debelar a violência porque suas conquistas são atingidas, que cria uma comoção e um discurso social alicerçado no medo, que volta a retroalimentar a indústria da violência.
        

          

                 

Entrevista com Arton, de Sirius. Parte II

  Entrevista realizada no dia 14 de fevereiro de 2024, às 20:00, com duração de 1': 32'', gravada em um aparelho Motorola one zo...