Um corpinho à beira da praia. Parece dormindo ou recostando seus pequenos ouvidos na areia como se ouvisse o barulho do mar dentro de uma concha. As ondas cuidadosamente o trouxeram para que as profundas do oceano não o perdessem, para resguardá-lo de virar comida de peixe grande, e também para mostrar que seu verdadeiro lugar seria brincando, exatamente ali, onde as ondas, já minúsculas marolas, não poderiam fazer-lhe mal. Mas o mar já havia feito. O pequeno Aylan Kurdi, sírio-curdo, de apenas 03 anos, morreu no átimo de desespero de seu pai, que, vendo o filho e a esposa caírem ao mar, tentou desesperadamente salvá-los, em vão. Morreram. E, agora, o mundo assiste estarrecido à sua imagem de morto na beira de uma praia turca.
O que estamos assistindo é apenas mais um episódio de mais um capítulo, de mais um dentre tantos êxodos humanos. A marcha da humanidade sempre foi vagar de um lado para o outro, às vezes com requintes de crueldade, muita crueldade – por exemplo, quando da transladação de 350 milhões de africanos trazidos para a América durante a implantação do sistema colonial dos trópicos.
O que estamos assistindo é também a consequência da malfadada criação do estado de Israel, que contou com o apoio das potências ocidentais, dentre elas, a maior responsável, a Inglaterra, colaborando para a demarcação dos territórios, prejudicando os povos palestinos que lá viviam.
O que estamos assistindo é também consequência de um desequilíbrio entre forças econômicas, seccionando o mundo entre hemisfério norte e sul, mundo ocidental e oriental, em que parte da riqueza do planeta se concentra em apenas 10% da população.
O que estamos assistindo é, sim, diretamente, fruto da insanidade da formação e operação em marcha do estado islâmico em sua sina e sanha de impor pelo terror sua concepção mais que teocrática, danosa e nefasta de religião, mas que, no entanto, por não possuir fábricas de armas, nem Iraque, nem Síria, contam com a venda direta e clandestina das mesmas potências ocidentais, que se quedam chocadas com a migração de mais de 100 mil sírios para os países europeus.
A Europa começa a receber a conta do processo de colonização, neocolonização, das intervenções políticas, militares e econômicas ao redor do mundo, sobretudo América, África e, não menos incipientemente, a Ásia, Oriente Médio. Toda forma de intervenção, que garantiu o processo e modelo de desenvolvimento do sistema capitalista e trocas desiguais entre produtos e mercadorias, gerou um coeficiente de pobreza e exclusão social, tornando o planeta Terra um barril de pólvora.
Não adianta mirar apenas no estado islâmico como se fosse o único responsável pela insana marcha dos refugiados à procura de sobrevivência, como se no fundo a própria formação do estado islâmico não fosse em si uma resposta ao processo de interferência na região, ainda que seja vendendo armas.
O que estamos assistindo é um esgotamento de um modelo de concepção política, de distribuição de renda, de relações diplomáticas e um escancaramento de um cinismo ocidental, perplexo diante de tal brutalidade, como estratagema para esconder suas próprias brutalidades, lançando seu olhar sobre o outro como se no ocidente já estivéssemos livres disso, ou como se, no fundo, não tivéssemos uma grande parcela de responsabilidade sobre.
E temos. Quantas guerras, ataques, mortes, ações militares os jornais no mundo inteiro não noticiam desde a fundação do estado de Israel? Qual, efetivamente, consistente e eficaz medida foi tomada com o fito de acabar com os conflitos na região? Sabem por quê? Israel é o principal aliado das grandes potências ocidentais e é em si uma grande potência militar, sua predominância na região deita raiz na lógica de preponderância ocidental na região.
Não se trata de omitir as responsabilidades dos estados asiáticos, Oriente Médio, na incapacidade de sanar e resolver seus problemas, acontece que os problemas não possuem uma única origem, não são isolados e não existe uma solução unilateral.
Ademais, a fuga em massa de pessoas, fugindo do estado islâmico, deixou de ser um problema da região para ser um problema humanitário global. Não é de hoje que a Itália recebe todos os dias refugiados na África sem que efetivamente os governos no mundo inteiro tomem providências para sanar o problema. A pergunta insistente é: não temos capacidade de resolver ou não há interesse efetivo? Resposta: não existe capitalismo sem exclusão e a guerra ou as guerras são um negócio altamente rentável e lucrativo.
Por detrás de toda essa insana matança, existem lucros exorbitantes de fabricantes de armas, de medicamentos, de construtoras de imóveis e, pasmem, de ajuda humanitária em que a consciência ocidental se sente aliviada por se sentir menos culpada pela chaga que ajudou a criar. É lógico que existem grupos sérios e muito comprometidos, a questão é que a ajuda ameniza, mas efetivamente não resolve, muitas vezes são ações isoladas e servem como escopo para não se tocar na ferida: o modelo econômico global.
O chocante da cena do menino morto Aylan Kurdi, ainda que seja uma cena produzida também para esse tipo de comoção – desviar o foco para a religião enquanto uma anátema humano, um ópio da raça humana- , não é o fato de ser isolada, todos os dias no Brasil milhares de crianças são mortas pela violência, pelas drogas, pelo abandono, por uma série de fatores, mas sim pelo fato das cenas ad náusea terem sido repetidas dia a dia, numa espécie de morte anunciada, num ato de desespero de milhões de pessoas que perderam absolutamente tudo em busca de uma vida melhor, longe exatamente da violência e perseguição do estado islâmico.
As pessoas se acostumaram e banalizaram a violência no Brasil a tal ponto de não se incomodarem mais com morte de crianças? Sim, mas no Brasil 100 mil pessoas não fogem da violência no ato desesperado e morrendo em balsas superlotadas. Portanto, o que choca na cena do menino é a escala. O que choca é o pedido de socorro, às vezes em vão. O que choca é o deslocamento populacional tornando a Síria um pais quase que inabitável, no fundo já é.
Algumas ações estão sendo tomadas, como os moradores da Islândia que abriram suas portas, mas a pergunta persiste: até quando essa marcha vai continuar? O que nos diz a morte do garoto Aylan Kurdi na praia turca em viagem à Grécia? Será mais uma morte como tantas outras?
Sabe o que mais choca na cena de Aylan Kurdi? É que se trata de uma criança que, no ato desesperado de fuga, morre afogada, indefesa, junto com sua mãe, tendo sua mão escapado à do pai em que ele porfiava confiança e que fez de tudo, inclusive se jogar ao mar, para tentar salvá-lo, em vão. Imaginem o desespero do pai que fugiu da Síria para sobreviver e agora terá que voltar para enterrar quem mais ele amava?
Ele vai fazer o movimento contrário das ondas, que vão e vêm, trazendo à beira da praia aquilo que caiu ao mar. As mesmas ondas que trouxeram o menino Aylan Kurdi serão as mesmas que terá que navegar no caminho de volta. Só que dessa vez ela não voltará à praia turca, não faz mais sentido, tudo o que ele mais amava as ondas se encarregaram de deixar na areia, não ouvindo a concha do mar, nem brincando com as marolas, dormindo, como um anjo.
Pequeno Aylan Kurdi, onde quer que estejas, com certeza no lugar melhor que esse mundo insano e incoerente, que sua morte e imagem não sejam em vão.
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