Um incenso aceso sobre o birô, a capa do último cd sobre a mesa; tom cinza, escondendo
seu talento, meio blasé,
mas quando se abre o encarte é colorido, cada faixa musical tem uma cor,
revelando a multiplicidade dos olhares sobre as letras, nome do disco simples,
o do próprio autor, um notebook,
a última edição da revista Rolling
Stones trazendo na capa um homem bonito, olhos cor de ardósia, cigarro
na mão esquerda e um paletó vermelho estranho, imagem nada autorreferenciada,
desfocada, como se debochasse de uma imagem de homem culto, referência, icônica,
sua veste não diz quem verdadeiramente o é, se bem que a camisa está
entreaberta, ou seja, não é bem um paletó sério, – só vestiu paletó apenas duas
vezes na vida, segundo ele próprio, pode ser que para a capa dessa revista
tenha sido a terceira vez... Esse foi o cenário que criei para escrever este
artigo que há tempos adormece em mim envelhecendo como um vinho,
talvez não tão bom, mas por mim aguardado.
Refiro-me, neste artigo, sobre o que é para mim e para os
editores da revista Rolling
Stones o maior compositor brasileiro vivo: simplesmente Francisco Buarque
de Hollanda, o Chico Buarque, o Chico, codinome do seu último cd, e é sobre ele que irei me
deter.
Antes, porém, talvez seja desnecessário explicitar as
razões do porquê de escrever um artigo sobre o último trabalho dele, mas já
alguns anos tenho alimentado o medo de ser o último. Cabe aqui minha pequena
homenagem a esse homem que sempre homenageou a literatura, o teatro, e
sobretudo, a música brasileira a partir das construções melódicas de fino
trato, bem cuidado, casando a versatilidade da língua portuguesa camoniana-cabralina-bandeira-viniciusniana com o soar de
uma tonicidade tão rica do cancioneiro popular, apesar das constantes
críticas do seu impopulismo.
Ele me foi apresentado ainda em fase de infância, entre
luaradas, boemias familiares que minhas irmãs mais velhas que eu, cantarolaram
músicas de um tal de Chico Buarque, nada popular entre os da minha geração,
referência de pessoas mais velhas. Antes porém de minhas irmãs cantarolarem,
meu pai, hoje com 84 anos de idade, vez por outra assobiava a melodia de Carolina. Cresci ouvindo meu
pai cantar tal música. Certa vez, quando eu bebia no Bambu Bar, referência para
os universitários da UFMA, alguém colocou na vitrola, ainda era
vitrola, tal música, corri para saber de quem era, visto que me remetia à tenra
infância. Deparei-me com o Chico. Quando de novo em festa de família, meu pai
cantarolou Carolina, perguntei-lhe
de quem era tal composição e então bradou que não se lembrava, já se
tratava de sua infância. Aquela indistinção temporal marcou minha concepção
sobre a relação espaço-tempo e foi aí que entendi que não existe um único
tempo, mas tempos; os das lembranças, dos afetos, das felicidades não obedecem à
cronologia dos tempos modernos, cartesianos e rígidos. O tempo ou a
memória podem ir tanto para frente quanto para trás. Carolina era para meu pai o tempo da
felicidade, pois era a memória sentimental que tal música remetia, e felicidade
para ele era a infância.
Ainda na faculdade travei a amizade eterna com Alan Kardec
que me "reapresentou" Chico, agora numa vertente mais apaixonada,
típica de um homem até então com seus 38 anos de idade, vivido e com “tantos
sentimentos” constelados por suas vivências. No meu caso, era a fase da
descoberta do amor, da escolha das melhores palavras, a procura do melhor
piropo, do melhor verso e poema para agradar uma mulher. E nisso Chico me
ajudou, mas não só.
Começava a época da descoberta do mundo não
pelas pegadas das viagens mundo afora – eu não era Cicero que pensava com os
pés – e sim, das leituras dos autores de história e sociologia, de filosofia e
antropologia. Chico me abriu a vida como um leque, e eu mergulhava na
historicidade deste país tentando decifrar suas idiossincrasias através de suas
músicas. Aprendi em parte história do Brasil ouvindo-o. Depois, já como
professor de história do Brasil, dava-me o direito de ministrar aulas com tais
melodias. Era uma construção fácil, poética, metafórica, rica em
significados e possibilidades. Era sempre melhor que as outras aulas.
Depois veio a fase da descoberta semântica e
sintagmática de suas letras. Foi aí que a paixão desbundou de vez, e foi
eterna. A riqueza de detalhes linguísticos, a versatilidade compósita em
canções que escondiam a riqueza metafórica se mostrava como um labirinto onde
me obrigava a entender a delicadeza da profusão de uma língua que
escondia de si mesma o próprio sentido, como se diante de um espelho, ela,
a língua, perguntasse para si própria o significado do que havia
tentado dizer, e toda vez que respondia aparecia um novo espelho com novas
possibilidades interpretativas.
Foi assim que me empenhei em ter a coleção completa de sua
obra, levei exatos 10 anos, um dos orgulhos da minha vida, além de ser pai de
Lucía e Milene. Cada vez que novo cd era anunciado, a ansiedade se igualava
ao receio de saber quando seria o próximo depois desse. E assim, da música
passei para os textos literários. Li todos os romances, quase toda a fortuna
crítica sobre sua produção, e uma coleção quase completa de tudo que se falou e
se publicou sobre ele. Ainda assim, não me julgo especialista ou conhecedor,
apenas me intitulo “chicolátra”.
Entretanto, como devoto do Chico, percebi uma mudança
musical nos seus últimos discos. A força de evocação de suas composições mudam
disco a disco. Foi se tornando minimalista, ainda mais cuidadoso, sintético,
musicalmente mais refinado, portanto, menos afeito a grandes sucessos, ainda
que nunca tenha sido um campeão de vendas. Segundo ele, a fonte não seca, mas a
motivação sim. Parte desse minimalismo musical, penso eu,
advém da interferência literária, cada vez faz música como
escreve, embora ele advogue que quando faz uma coisa não pense na outra. Para
mim há sinestesia. Portanto, se ele ler este artigo, discordará; ele nunca vai
ler, pelas mesmas razões que John e Paul talvez nunca tenham tido contato com a
música do Milton, Para Lennon
e McCartney.
Confesso que a cada novo, disco desde As Cidades, é
preciso ouvir várias vezes as músicas para ter familiaridade com elas, foi
assim com Carioca, mas
como nos outros discos, esse último, à medida que ouço, adentro
nas filigranas da composição e passo a gostar cada vez mais. Ele
talvez tenha deixado pra trás versos palíndromos, proparoxismos de letras
como em Construção,
simbiose linguística das línguas portuguesa e francesa como em Joana Francesa, rasgação de
amores como em Atrás da porta, Olhos nos olhos, mas continua
enigmático como em Querido
Diário, cujo verso amar uma mulher sem orifício foi
duramente criticado sendo chamado de apelação e que, segundo o próprio Chico,
significa amar uma mulher casta, santa, sem possibilidades de relação
sexual.
O disco Chico tem 10 músicas e verdadeiras pérolas.
Particularmente gosto mais das faixas: 01 - Querido
Diário, 03 - Essa pequena,
5- Se eu soubesse, 7 - Sou eu, 9- Barafunda e 10 - Sinhá. A faixa Sou eu caiu nas graças da mídia por conta do
estrondoso cantor Diogo Nogueira, e a música executada em demasia na rádio
é Pequeno Diário. Mas
chamo a atenção para a faixa 10 - Sinhá. A história se passa numa
senzala onde um escravo é acusado de perscrutar a sinhá tomando banho, e esta
como punição manda cegar os olhos de quem supostamente a olhava, sendo
enfeitiçada pelo escravo. A força da batida do bumbo, o choro de
dores inexprimíveis do escravo, a lamentação e a vingança retomam um
velho Chico das raízes mais profundas da matriz cultural brasileira.
O bom e velho Chico se reinventa.
Viva a sua vitalidade e capacidade criativa, mesmo que suas
composições se modifiquem disco a disco. Que bom!!! Assim, enquanto ele compor
e cantar, teremos a grata satisfação de decifrar suas canções, boas e
amadurecidas como um bom vinho, um vinho buarqueano.
O incenso acabou... O cheiro e a melodia compuseram um belo
cenário eivado de uma trilha sonora do nosso maior compositor brasileiro
vivo... e que perdure sua existência, não se apagando como o incenso
que acendi para escrever este artigo. A força de sua criação dura bem mais que
isso!!!! Ele continuará enxergando, mesmo que uma sinhá mandasse cegá-lo.