terça-feira, 16 de janeiro de 2024

Tadeu: primo-amigo-irmão

No dia 14 de janeiro último, fez a sua passagem para o outro plano, João Tadeu de Paula Bicalho – João Tadeu, para mim, simplesmente, Tadeu, o meu mais longevo amigo, 42 anos de amizade. Nascemos no mesmo ano, 1974, ele mais velho do que eu quatro meses, e sempre que o dia 27 de agosto de cada ano se avizinhava, brincava:  – “É mais velho que eu”. Foi uma das poucas pessoas que, ao longo de 49 anos, jamais deixou de me parabenizar pelo meu aniversário.

Primo legitimo, filho dos tios Zeneide e Bicalho, conheci-o de forma um tanto estranha, esgueirando-se entre as pernas de minha tia, assustado, ali, com a nova situação, pois acabara de chegar do Rio de Janeiro, cidade onde nascera, motivo de pilhéria comigo. Sempre me dizia brincando­: - Nasci em Laranjeiras, no Rio, e tu, em Codó”... risos.  Na minha casa, chegou a morar durante alguns meses, até se mudar.    

Foi a minha tia que escolheu para ele a mesma escola que eu frequentava: Instituto Educacional Freitas Figueredo, na Cohab, bairro em que cresci. Todos os dias quando saímos do Freitas, como chamávamos a escola, íamos rezar na Igreja Católica de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, na Cohab, local onde será realizado a missa de 7º dia. Na mesma sala, estudamos a 3ª série do ensino fundamental, a única disputa entre nós em toda a nossa amizade, por melhores notas; depois, na 5ª, além do 1º ano do antigo ensino médio, já no Colégio Almirante Tamandaré.

Na infância, Tadeu me influenciou no universo dos quadrinhos, mundo Marvel, DC Comics. Sempre foi um leitor voraz, curioso, atento. Foi também a minha referência primeira em cinema, filmes de ação, ficção científica e, sobretudo, de terror, já que foi ele a me apresentar, por exemplo, Carry, a estranha; Fred Crugger, A Hora do Pesadelo; Sexta-feira 13; O Exorcista. O único filme de terror que eu o apresentei, já adulto – e, para ele, o melhor – foi o francês L’intérieur (2007). Sem dúvida, o meu primo era o que se poderia chamar, hoje, de um nerd. A minha única habilidade, a qual constituía um diferencial em relação a ele, era o futebol, o qual nunca gostou, de fato. Mesmo em bairros distantes, quando possível, víamo-nos e conversávamos sobre absolutamente tudo, tudo aquilo que estava no horizonte de dois adolescentes em bairros periféricos de São Luís. Como, de fato, era muito astuto e curioso, exercia em mim a vontade de, repetida e reiteradamente, sondar novos assuntos, e eu me abismava com o fato de ele, mesmo tão jovem, dispor de um leque de abrangência de interesses tão diversificados.   

Um belo dia, ele me surpreendeu ao contar que havia se convertido à Igreja do Evangelho Quadrangular. Levou-me para assistir a um culto e não tardou muito para também me congregar no mesmo templo, Rua Raimundo Correa, Monte Castelo. Depois, migrou para o do João Paulo, no qual se transformou em Presidente da Mocidade, eu, diácono e vice-Presidente de Mocidade.

Enquanto evangélicos, fundamos o Grupo Centelha, juntamente com Adilson, entre outros, na Escola Almirante Tamandaré, onde fizemos o ensino médio em contabilidade, jamais exercendo o ofício. Também adentramos o movimento estudantil. Ele não se demorou muito; já eu ingressei, depois, na militância acadêmica, quando cursava História na UFMA e nas trincheiras de PT, embora nunca tenha me filiado oficialmente.

O nosso único distanciamento, e que em nada arrefeceu a nossa ligação anímico-fraterna, foram nos anos de faculdade. Como dito, eu ingressei na UFMA, onde cursei História; ele, Letras, na UEMA. Da UFMA, fui para São Paulo, cidade de Assis, cursar o mestrado e, quando morei na capital com a minha irmã Nel, Tadeu nos visitava, com constância.

Amadurecemos juntos. Desde a tenra idade, inscrevemo-nos, um no outro, como confidentes. Há coisas dele que só eu sabia, e vice-versa. Quando entrei em depressão, em 2012, o meu primo-irmão foi absurdamente essencial na minha vida, amparando-me, irrestritamente, em todos os momentos. Igualmente, estive, do seu lado, em situações delicadas. Lembro-me de uma ocasião em que eu, à época espírita – dessa vez, fui eu a levá-lo para outra religião, a qual frequentou comigo durante um tempo, no caso, o centro espírita Paulo de Tarso, na Maioba, estrada de Ribamar – no apartamento em que morava, alugado de meu amigo Frank, no Parque dos Nobres, ouvi a voz da minha tia falecida Zeneide, que assim me alertou:  - “Zeca (como eu sou chamado na família), agora que sabes que a morte não existe, é apenas uma passagem, peço-te que envies uma mensagem a Tadeu. Diga que estou deveras preocupada com o que ele está passando!”. Prometi que o faria. Liguei e combinamos um encontro no bar do Léo, no Vinhais. Assim que ele chegou, pedimos uma cerveja e, de imediato, falei-lhe: - Não precisas acreditar em mim e absorva somente o que te faz sentido. Tia Zeneide entrou em contato comigo e pediu que eu lhe transmitisse que está deveras preocupada com o que está passando contigo. Queres falar sobre”? Ele afastou o copo de cerveja, abaixou a cabeça, chorou copiosamente durante um bom tempo. Depois, enxugou as lágrimas e disse: - “Eu nunca te escondi nada, mas sobre isso eu não quero falar, tudo bem?” Respeitei, assenti e passamos a divagar sobre outros assuntos.

Sempre desconfiei que a nossa ligação não era dessa encarnação. Já não era mais espírita, quando em tratamento terapêutico de hipnose regressiva, em 2014, experienciei uma situação deveras emblemática. Em tal sessão, eu estava na Europa do século XVII, voltando para a minha casa, no caso, uma cabana... Ao sair dessa consulta, tive a vontade súbita de correr até o Tadeu para contar o que havia transcorrido. Mal comecei a relatar, e ele, transtornado, pediu para que eu não falasse mais nada. Silêncio… Narrei somente até a cena da cabana, e ele descreveu, exata e literalmente, o que somente eu e o médico e hipnólogo sabíamos. Assim complementou o relato: - “Tu estavas voltando para a tua casa, uma cabana, (descreveu-a) perto de um pequeno lago, depois de cruzar um bosque, passar por uma ponte de madeira e chegar a uma pequena aldeia onde uma mulher estava sendo apedrejada e morta”... Fiquei pasmo, atônito, sem saber o que dizer porque fora exatamente isso que havia sido passado na sessão. Ele concluiu: - “A mulher sendo apedrejada era eu. Eu tenho esse sonho recorrente há anos e nunca contei a ninguém. Tu és a primeira pessoa a saber disso”.

Tadeu era um tipo raro de amigo: fiel, honesto, companheiro e, igualmente, chato, reservado, de personalidade muito forte, exclusivista, restritivo, irreverente, iconoclasta, embora transparente até alma – daí nunca ter declinado de uma virtude de difícil aceitação: o chamado “sincericídio”, o que tornava-o uma pessoa de poucos amigos, por vezes, visto, até, como antipática. E eu era uma das poucas pessoas que dispunha de passe livre para visitá-lo em sua casa sem avisar. Ele deixava isso bem claro.   

Ao longo de 42 anos de amizade, ­é-me muito difícil descrever a profundidade dessa irmandade. Foi a única pessoa com a qual eu conversei sobre “absolutamente tudo”, e sem reservas: Jesus, religiosidade, espiritualidade, ufologia, Bíblia, mundos paralelos, extraterrestres, entrelaçamento quântico, Cabala, física quântica, astrologia, telepatia, teletransporte, telesinese, chakras, literatura, música, filmes, séries, política, relacionamentos, amizades, sonhos, dinheiro, frustrações, ressentimentos, etc.

Ainda no campo inaugural, a minha primeira viagem internacional foi com ele e com o Borba, o seu companheiro à época, e Lúcia, a minha então esposa. Fomos para Buenos Aires e Montevideo. Indescritível. No meu casamento foi ele a apanhar o buquê de flores. Advogado, professor de Inglês – por sinal, exímio e fluente –, pois, nessa viagem, podemos desfrutar de sua interlocução em situações em que o idioma espanhol não se fazia possível. Dono de uma inteligência rara e de um humor ácido, era de tiradas velocíssimas em situações irônicas, o que, invariavelmente, levava-nos a gargalhadas da mais incontidas. Estar ao lado dele era a certeza de boas risadas, mas também de pequenos estresses, suscitados por um bom e metódico virginiano. Reservado, discreto, coerente com as suas convicções, dedicava-se a embates em torno dos seus ideais, o que acabava por agregar pessoas, que, por gostarem dele, não renunciavam da sua companhia.

Quando a sua cachorra Dalila teve de ser sacrificada, em 20 de agosto de 2023 – por coincidência, o aniversário de sua mãe –, Tadeu parou de comer, tamanha a consternação. E de tristeza se isolou. Foi ficando cada vez mais fraco até ser acometido de uma insuficiência respiratória e falecer.

Em um momento-limite, dos mais agudos e dramáticos, Eu fui a última pessoa próxima a vê-lo na UTI. E ele me fez um pedido, o qual não atendi. Foi este o seu clamor: - “Me tira daqui, quero morrer em casa”. Eu disse:  - “Não vais lutar pela vida e vai entregar o jogo? Vai desistir, mesmo?” E me fitando, olhando-me seriamente, como sempre: - “Não tem mais jeito, eu estou muito fraco e não vou aguentar”.  Comuniquei a Socorro, que cuidou dele nos últimos meses, irmã dele e minha de minha criação, a Homell, irmão dele e, do mesmo modo, meu de criação, solicitando que se despedissem, pois sabia que não voltaria. E, assim, tentaram vê-lo no dia 14 de janeiro, na UTI, às 11 da manhã. Tarde demais, tinha acabado de partir, pouco antes das visitas.   

Pois eu vi partir um primo-irmão-amigo. Uma sensação estranha e de difícil elaboração, mas não pela ideia de morte, a qual não me assusta nem um pouco, aliás, na UTI quando me pediu para que eu o tirasse de lá, eu lhe indaguei: - “Já preparaste teu espirito”? Ele respondeu: - “Já, estou pronto”. Um dos grandes temas que atravessaram as nossas conversas, ao longo de 42 anos, desenrolava-se, naquele momento, de forma muito serena. A estranheza, contudo, fica por conta da falta maiúscula que ele fará, Falávamo-nos quase toda semana por Whatsapp, com instigantes trocas de reels e de vídeos engraçados, seguidos de “kkkkkkkkkkkkkk.  Era quase um ritual. 

Quase sempre que saía da UEMA, Campus Central, no São Cristóvão, passava por sua casa, no IPEM São Cristóvão. Atualizávamo-nos das novidades, tomávamos um café, e eu seguia, nutrido de sua inteligência e afeto, rumo à minha casa.

Em 27 de agosto deste ano, pela primeira vez, não enviarei mensagem de aniversário, sem a esperada zombaria por ele estar mais velho que eu. Aliás, seria uma data especial, uma efeméride, faríamos 50 anos de idade. Quando eu o fizer, em 10 de novembro, será diferente. Impossível não me lembrar dele ouvindo, em sua playlist, Peter Cetera, que tanto adorava, além de Elton John e Phil Collins, e, ainda, colocar uma máscara, seja a trazida por mim para ele de Veneza, seja a de Cabo Verde, que adorava igualmente. Agradeço a Deus, criador do Universo, pela oportunidade de ter estado com ele nessa jornada – para mim, indubitavelmente, mais do que uma sorte, uma honra, mas, sim, uma dádiva.

Este texto-homenagem de mim se deslinda como uma forma de agradecimento ao Universo por sua existência. A maneira que encontro de expressar, minimamente, a tentativa de significação de sua indelével presença para em minha vida, e tentar processar essa perda empírica, é escrevendo, reelaborando. Trata-se de uma forma de prosseguir com os nossos diálogos, porque o nosso contato não cessará. Encerrou-se, tão somente, nesse plano físico, mas continua na indelével dimensão astral.

Pois o Tadeu, agora, terá a oportunidade de me contar como é do outro lado do véu, como vem passando, vivendo, aprendendo, por onde tem andado, bem como de suas reveladoras descobertas. Amigos-irmãos como ele não abandonam os seus, e não será dessa vez. Passamos 42 anos tentando desvelar o que separa a matéria do espírito. Como sempre foi precoce em tudo, mais uma vez ele irá descobrir primeiro.

Hoje, pela manhã, acordei e, de súbito, quis compor esta crônica. Um aroma agradável de rosa preencheu todo o quarto, um cheiro inconfundível. Era ele. Sim, e já fazendo contato. Está aqui no que sinto e pressinto.

A ti, meu primo-amigo-irmão, que eu tanto amo, um até breve. Até breve não, vou ficar neste plano por mais uns 40 anos, não pretendo partir agora… risos. No entanto, como no mundo espiritual o tempo é outro, está inscrito na 3ª dimensão de modo muito distinto do nosso tempo-relógio-calendário, daqui, aproveita e tira as tuas conclusões a partir de nossas conversas e me conta se o que sentíamos e sabíamos era fantasia, delírio, intuição, imaginação, ou já, em algum nível, a forma mais aguda e iluminada de percepção.      

Minha gratidão à Luciana Barreto pela revisão e intervenção no texto                              

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