domingo, 28 de maio de 2023

Excesso de passado ou gravidez de futuro?

 



Um dos grandes problemas de fazer análise em qualquer tempo, apesar de a atividade intelectual de prognóstico ser relativamente recente, remete a uma época em que a Modernidade compeliu a embaralhar o passado e causar perplexidade quanto ao futuro impreciso, cada vez mais fluído. Isso se relaciona aos tempos emblemáticos que vivemos, que além de serem mais velozes, às vezes são retroativos, confusos e de difícil previsão.

Após a pandemia, o mundo entrou em descompasso e nunca mais voltou a ser o que era. Até aí, nada de novo. Desde meados do século XIX, a Europa, em especial, passou por intensas revoluções ao longo do século XX, levando Eric Hobsbawn a nomear esse período como "a era dos extremos". Sendo assim, a pandemia funcionou como um intervalo entre dois momentos? Um colapso do sistema de saúde ambulatorial, testado ao limite pela indústria farmacêutica e sua fábrica de vírus, a lógica de controle de bilhões de vidas, por um lado, e, por outro, o esgotamento de um modelo de existência baseado no trinômio capital-industrialização-política. Isso levou Giorgio Agamben, duramente criticado por referenciar a política de recolhimento e reclusão como elemento impeditivo da disseminação do vírus COVID-19, a considerar esse controle como neofascista, pois impede exatamente a livre circulação de pessoas, deixando aos estados a decisão sobre a vida. Para ele, a vida política se realiza nas ruas. Se ninguém vai às ruas, onde poderia ocorrer a execução da política, incluindo a discussão sobre as formas de democratização das informações? Para o filósofo, o extremo controle do estado sobre a livre circulação das pessoas assemelha-se ao controle neofascista da vida pública por meio do discurso, da promoção do medo, do pânico, do terror e da manipulação das informações.

Após a pandemia, houve e ainda há outro elemento sorrateiro extremamente legitimador da concepção política: as lutas sociais pela conquista e manutenção de direitos sociais integralmente legítimos, mas que esbarram no avanço agressivo do capital em todos os setores, inclusive com a aceleração da implantação da inteligência artificial (IA) em vários aspectos da vida, desde o industrial até o educacional. No entanto, é importante ressaltar que a escola, em sua concepção moderna, foi pensada sob uma perspectiva laboral-industrial, como apontado por Vilém Flusser, deixando de ser um local de prazer (École) para se tornar uma ausência de prazer (Ascole). A escola moderna foi projetada para treinar a classe trabalhadora de acordo com os ditames industriais.

O contraponto entre a luta pela manutenção de direitos sociais e uma concepção de vida gestada nos últimos 110 anos, com o avanço do capital solapando exatamente um modelo de vida, criou uma fissura entre os analistas, tema deste ensaio, em relação a qualquer prognóstico futuro. De um lado, há os pessimistas; de outro, os otimistas. O problema de estar ao lado dos otimistas reside no receio de ser associado ao alinhamento com o grande capital, ou seja, à ideia de que qualquer mudança, mesmo que seja positiva em relação ao futuro, não elimina a existência do capital e os graves danos que ele vem causando ao planeta em sua integralidade imanente enquanto natureza a bilhões de seres humanos, excluídos do processo de consumação da produção, que se baseia cada vez mais na acumulação do capital volátil e dos não-humanos - muitos já extintos e outros milhares em vias de extinção .

A grande questão é que, de fato, estamos presenciando o colapso de um modelo de vida burguês, ou seja, um antigo modelo de vida burguês, uma concepção enraizada na confiança na reflexibilidade do Estado como garantidor de práticas sociais. Isso ocorre em meio à insegurança jurídica, cada vez mais atravessada por rearranjos interpretativos oriundos da interação entre capital e Estado, na redução de postos de trabalho, na reestruturação das condições de trabalho, na precarização das condições de vida e na transformação das cidades em grandes laboratórios experimentais da lógica industrial-tecnológica-informativa, entre outras questões.

O desânimo em relação a certas lutas para se apegar a um mundo antigo que está desaparecendo pode, de certa forma, indicar uma imprecisão na perspectiva do que está por vir, assumindo todos os riscos inerentes a qualquer prognóstico. Parece evidente que o mundo está em constante decomposição, assim como ocorreu em diversas épocas: pós-Revolução Francesa, revoluções burguesas do século XIX, Primeira e Segunda Guerras Mundiais, movimentos contraculturais das décadas de 60 e 70 do século XX, movimento feminista, movimento negro, lutas e identidades pós-coloniais, entre outros. A questão de se apegar a um antigo modelo de vida não se trata apenas de segurança, mas sim da incerteza em relação ao futuro.

O que se anuncia nos próximos três anos, de 2024 a 2026, está muito distante de qualquer experiência vivida anteriormente. Todos os prenúncios estão acontecendo aqui e agora, evidenciados pelas formas de apego e resistência às mudanças, tais como o neofascismo em várias partes do mundo, aumento do feminicídio, aumento da pedofilia, do racismo e do desmatamento das florestas e extinção de biomas, ataques a grupos indígenas, povos originários e quilombolas, avanço do agronegócio contaminando solo e lençóis freáticos, um verdadeiro ecocídio (para usar uma expressão de David Kopenawa), aumento da violência de maneira geral e concentração de renda global nas mãos de apenas 10% da população, além do crescimento populacional em países mais pobres. Todos esses eventos indicam que essas mesmas formas violentas são resistências às mudanças inevitáveis, e nada irá detê-las. Não se trata de uma questão enigmática nem óbvia, mas sim de algo factível, e existem alguns sinais claros disso.

Pessoas ao redor do mundo marcham contra a homofobia LGBTQIAP+, alimentos processados e transgênicos, o avanço do agronegócio, questionam os modelos educacionais e a concepção de vida burguesa baseada na acumulação predatória. Elas também protestam contra as formas de acesso à informação, o padrão de vida centrado no consumo, relações afetivas tóxicas, padrões familiares autoimpostos, trabalhos improdutivos que geram pulsões de morte e a necropolítica. Além disso, manifestam-se contra a contaminação da água, tanto doce quanto salgada, e a acumulação de lixo plástico nos oceanos, que mata animais marinhos. Lutam por uma saúde não privatizada, contra o racismo e a associação entre o grande capital e os meios de comunicação. Descobrem a lógica da prostituição dos Estados subservientes aos interesses do grande capital e reagem, ainda que subjetivamente, enfrentando o aumento das depressões, síndromes de Burnout e a busca por validação nas redes sociais, revelando um esgotamento gestado por uma concepção antiprazer que se assemelha à própria vida. A busca por receber muitos likes nas redes sociais assemelha-se à noção grega de imortalidade ou à necessidade dos "15 minutos de fama" propagada pelo estilo de vida estadunidense, diante da impossibilidade de acesso à grande mídia ou de atender nossas necessidades em uma sociedade cada vez mais competitiva. É claro que isso não se trata de uma unanimidade, caso contrário o mundo seria diferente. No entanto, é exatamente a existência da divisão entre grupos e não apenas entre classes, com diferentes concepções de mundo, que intensifica a aceleração das mudanças. Aqueles que resistem a essas mudanças estão se tornando e serão cada vez mais minorias.

Estamos diante de uma mudança de paradigma tão profunda que colocará o mundo em um novo patamar. Após a concepção aristotélica de ciência e pensamento, uma nova forma de abordar o logos (λόγος) começou a emergir, dando consistência ao que o mundo moderno chamou de "racionalidade". Isso excluiu outras experiências e perspectivas fora do contexto europeu, estigmatizando vivências e significados que não se encaixavam nessa lógica, consolidando assim a colonialidade do poder. Conforme Walter Mignolo afirma, não há modernidade sem colonialidade, que se manifesta em todas as esferas da existência.

O que se anuncia é o fim da colonialidade, não apenas em sua manifestação moderna e europeizante, mas também da colonialidade existencial que reprimiu a plenitude da potencialidade humana em todas as suas dimensões. A luta dos povos indígenas e originários pela defesa de suas terras e modos de vida sinaliza não apenas a preservação dos biomas, mas também a essência da relação entre homem, mulher e natureza, criticada pelo paradigma do progresso e da evolução. A busca pela emancipação feminina aponta para o fim do patriarcado, que sustenta a lógica machista, e reflete na dominação do trabalho e na supremacia econômica masculina. A luta contra o racismo, cada vez mais necessária, além de destacar a origem da divisão por cor através da escravidão, demonstra como o trabalho imposto aos africanos e aos povos indígenas foi utilizado para justificar o preconceito e impor uma segregação baseada em critérios religiosos, geográficos, culturais e, acima de tudo, étnicos. A crítica e a suposta superioridade das experiências existenciais sobre as sociedades consideradas pejorativamente como "tradicionais" devido às suas práticas espiritualistas criaram uma divisão entre ciência-racionalidade, de um lado, e sensibilidade-intuição-espiritualidade, de outro.

Longe, muito longe da arrogância ocidental ao considerar as práticas espiritualistas de povos originários, tradicionais e sociedades asiáticas, africanas e oceânicas como meramente folclóricas, mitológicas ou religiosas, não se compreendeu que tais práticas não eram atrasadas, mas sim percepções sensíveis de que a lógica do progresso implicava o abandono de uma essencialidade humana, com todos os riscos que essa concepção carrega. A racionalidade moderna fragmentou a integralidade holística do ser humano, privilegiando certos aspectos de nossa sensorialidade e estimulando determinadas áreas neurais, resultando em mutilação e afastamento cada vez maior das experiências das sociedades antigas, simplesmente por serem consideradas ideologicamente ultrapassadas. Isso foi um estratagema ao criar uma oposição entre passado e presente, e pior ainda, ao retratar a escolha como sendo entre passado e futuro, como se fosse inquestionável qualquer crítica ao nosso modelo de vida atual, e como se fosse inevitável resistir ao futuro sem uma mudança drástica e indispensável no modo de vida contemporâneo, que está alcançando limites insustentáveis.

Ainda que certas opções consideradas "utópicas" sejam nossos horizontes, elas não se resumem a questões meramente semânticas ou hermenêuticas. São resultado de longas experiências humanas testadas e comprovadas, demonstrando que a paz é melhor que a guerra, o amor é melhor que o ódio, a fraternidade é melhor que a inimizade, a colaboração é melhor que a disputa, a liberdade é melhor que a prisão, a saúde é melhor que a doença, a preservação da natureza é melhor que a poluição e a harmonia é melhor que a desarmonia.

O planeta Terra, conhecido por diversos nomes e seus princípios energéticos como Tiamat, Gaia, Pacha Camac, Abya Ayala, Sham, Urantia, está gestando um futuro brilhante, pois o modelo existencial atual se esgotou. Esse modelo não conseguiu trazer a paz prometida pelo iluminismo e, a cada dia, vemos seus recursos se esgotarem, colocando em risco a vida humana.

Uma das muitas imagens prejudiciais propagadas por um tipo de racionalidade que opôs dedução e intuição foi a noção entrópica e autorreferenciada de que a vida humana está desconectada do cosmos, como se fosse uma entidade autônoma em si mesma. Essa concepção é moderna, os antigos não acreditavam nisso. No entanto, nada poderia ser mais irreal, ilusório, ideológico e estratégico do ponto de vista da manutenção da lógica do poder e da exploração econômica. Ao afirmar que não existe uma correlação entre a Terra e o universo, reforçou-se o paradigma da imutabilidade e da crença de que outro modelo existencial é impossível. Também foi reforçada a ideia de que não temos poder em nós mesmos, de que as plantas, os animais e os minerais não estão integrados ao nosso corpo, e que somos unidades desconectadas de tudo, que não existe a unimultiplicidade, para usar uma expressão do cantor e compositor Tom Zé.

Mas não é apenas o planeta que está grávido de um novo futuro, o universo também está, pois essa é a sua dinâmica: a mudança. A aspiração e os desejos por mudanças não são meras projeções humanas, são conexões sensitivas.       

A divisão do mundo entre aqueles que desejam um mundo mais equânime e menos injusto, e aqueles que lutam pela perpetuação do status quo, define a postura daqueles que anteciparam o surgimento de um novo mundo, os otimistas, e daqueles que apostaram no "quanto pior, melhor". Para esses últimos, a história será implacável.

7 comentários:

  1. Bom convite à reflexão, o texto destaca a divisão entre aqueles que almejam um mundo mais justo e equitativo e aqueles que resistem às mudanças, enfatizando a importância de reconhecer as transformações em andamento e a inevitabilidade de um novo modelo existencial. Além disso, traz uma visão abrangente e instigante sobre os desafios e as possibilidades de mudança no cenário contemporâneo, abordando diversos aspectos sociais, políticos e existenciais.

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  2. Muito boa essa compreensão de mundo. O fluxo da vida está tão acelerado que poucas pessoas conseguem captar que essa mudança apesar de dolorida ( talvez para uns mais e outros menos) se faz necessário para a grande transformação. Que possamos também aprimorar o nosso sentir para que esse processo seja tranquilo para quem possui uma sensibilidade maior. Parabéns! Muito bom de ler.

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  3. Sou eu Ana que comentei acima e saiu como anônimo.

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