Um dos
grandes problemas de fazer análise em qualquer tempo, apesar de a atividade
intelectual de prognóstico ser relativamente recente, remete a uma época em que
a Modernidade compeliu a embaralhar o passado e causar perplexidade quanto ao
futuro impreciso, cada vez mais fluído. Isso se relaciona aos tempos
emblemáticos que vivemos, que além de serem mais velozes, às vezes são
retroativos, confusos e de difícil previsão.
Após a
pandemia, o mundo entrou em descompasso e nunca mais voltou a ser o que era.
Até aí, nada de novo. Desde meados do século XIX, a Europa, em especial, passou
por intensas revoluções ao longo do século XX, levando Eric Hobsbawn a nomear
esse período como "a era dos extremos". Sendo assim, a pandemia funcionou
como um intervalo entre dois momentos? Um colapso do sistema de saúde
ambulatorial, testado ao limite pela indústria farmacêutica e sua fábrica de
vírus, a lógica de controle de bilhões de vidas, por um lado, e, por outro, o
esgotamento de um modelo de existência baseado no trinômio
capital-industrialização-política. Isso levou Giorgio Agamben, duramente
criticado por referenciar a política de recolhimento e reclusão como elemento
impeditivo da disseminação do vírus COVID-19, a considerar esse controle como
neofascista, pois impede exatamente a livre circulação de pessoas, deixando aos
estados a decisão sobre a vida. Para ele, a vida política se realiza nas ruas.
Se ninguém vai às ruas, onde poderia ocorrer a execução da política, incluindo
a discussão sobre as formas de democratização das informações? Para o filósofo,
o extremo controle do estado sobre a livre circulação das pessoas assemelha-se
ao controle neofascista da vida pública por meio do discurso, da promoção do
medo, do pânico, do terror e da manipulação das informações.
Após a
pandemia, houve e ainda há outro elemento sorrateiro extremamente legitimador
da concepção política: as lutas sociais pela conquista e manutenção de direitos
sociais integralmente legítimos, mas que esbarram no avanço agressivo do capital
em todos os setores, inclusive com a aceleração da implantação da inteligência
artificial (IA) em vários aspectos da vida, desde o industrial até o
educacional. No entanto, é importante ressaltar que a escola, em sua concepção
moderna, foi pensada sob uma perspectiva laboral-industrial, como apontado por
Vilém Flusser, deixando de ser um local de prazer (École) para se tornar uma
ausência de prazer (Ascole). A escola moderna foi projetada para treinar a
classe trabalhadora de acordo com os ditames industriais.
O contraponto entre a luta pela manutenção de direitos sociais e uma concepção de vida gestada nos últimos 110 anos, com o avanço do capital solapando exatamente um modelo de vida, criou uma fissura entre os analistas, tema deste ensaio, em relação a qualquer prognóstico futuro. De um lado, há os pessimistas; de outro, os otimistas. O problema de estar ao lado dos otimistas reside no receio de ser associado ao alinhamento com o grande capital, ou seja, à ideia de que qualquer mudança, mesmo que seja positiva em relação ao futuro, não elimina a existência do capital e os graves danos que ele vem causando ao planeta em sua integralidade imanente enquanto natureza a bilhões de seres humanos, excluídos do processo de consumação da produção, que se baseia cada vez mais na acumulação do capital volátil e dos não-humanos - muitos já extintos e outros milhares em vias de extinção .
A
grande questão é que, de fato, estamos presenciando o colapso de um modelo de
vida burguês, ou seja, um antigo modelo de vida burguês, uma concepção
enraizada na confiança na reflexibilidade do Estado como garantidor de práticas
sociais. Isso ocorre em meio à insegurança jurídica, cada vez mais atravessada
por rearranjos interpretativos oriundos da interação entre capital e Estado, na
redução de postos de trabalho, na reestruturação das condições de trabalho, na
precarização das condições de vida e na transformação das cidades em grandes
laboratórios experimentais da lógica industrial-tecnológica-informativa, entre outras questões.
O desânimo em relação a certas lutas para se apegar a um mundo antigo que
está desaparecendo pode, de certa forma, indicar uma imprecisão na perspectiva
do que está por vir, assumindo todos os riscos inerentes a qualquer
prognóstico. Parece evidente que o mundo está em constante decomposição, assim
como ocorreu em diversas épocas: pós-Revolução Francesa, revoluções burguesas
do século XIX, Primeira e Segunda Guerras Mundiais, movimentos contraculturais
das décadas de 60 e 70 do século XX, movimento feminista, movimento negro,
lutas e identidades pós-coloniais, entre outros. A questão de se apegar a um
antigo modelo de vida não se trata apenas de segurança, mas sim da incerteza em
relação ao futuro.
O que
se anuncia nos próximos três anos, de 2024 a 2026, está muito distante de
qualquer experiência vivida anteriormente. Todos os prenúncios estão
acontecendo aqui e agora, evidenciados pelas formas de apego e resistência às
mudanças, tais como o neofascismo em várias partes do mundo, aumento do
feminicídio, aumento da pedofilia, do racismo e do desmatamento das florestas e extinção de biomas, ataques a grupos indígenas, povos originários e quilombolas, avanço do
agronegócio contaminando solo e lençóis freáticos, um verdadeiro ecocídio (para usar uma expressão de David Kopenawa), aumento da violência de
maneira geral e concentração de renda global nas mãos de apenas 10% da
população, além do crescimento populacional em países mais pobres. Todos esses
eventos indicam que essas mesmas formas violentas são resistências às mudanças
inevitáveis, e nada irá detê-las. Não se trata de uma questão enigmática nem
óbvia, mas sim de algo factível, e existem alguns sinais claros disso.
Pessoas
ao redor do mundo marcham contra a homofobia LGBTQIAP+, alimentos processados e
transgênicos, o avanço do agronegócio, questionam os modelos educacionais e a
concepção de vida burguesa baseada na acumulação predatória. Elas também
protestam contra as formas de acesso à informação, o padrão de vida centrado no
consumo, relações afetivas tóxicas, padrões familiares autoimpostos, trabalhos
improdutivos que geram pulsões de morte e a necropolítica. Além disso,
manifestam-se contra a contaminação da água, tanto doce quanto salgada, e a
acumulação de lixo plástico nos oceanos, que mata animais marinhos. Lutam por
uma saúde não privatizada, contra o racismo e a associação entre o grande
capital e os meios de comunicação. Descobrem a lógica da prostituição dos
Estados subservientes aos interesses do grande capital e reagem, ainda que
subjetivamente, enfrentando o aumento das depressões, síndromes de Burnout e a
busca por validação nas redes sociais, revelando um esgotamento gestado por uma
concepção antiprazer que se assemelha à própria vida. A busca por receber
muitos likes nas redes sociais assemelha-se à noção grega de imortalidade ou à
necessidade dos "15 minutos de fama" propagada pelo estilo de vida estadunidense, diante da impossibilidade de acesso à grande mídia ou de atender
nossas necessidades em uma sociedade cada vez mais competitiva. É claro que
isso não se trata de uma unanimidade, caso contrário o mundo seria diferente.
No entanto, é exatamente a existência da divisão entre grupos e não apenas
entre classes, com diferentes concepções de mundo, que intensifica a aceleração
das mudanças. Aqueles que resistem a essas mudanças estão se tornando e serão
cada vez mais minorias.
Estamos
diante de uma mudança de paradigma tão profunda que colocará o mundo em um novo
patamar. Após a concepção aristotélica de ciência e pensamento, uma nova forma
de abordar o logos (λόγος) começou a emergir, dando consistência ao que o mundo
moderno chamou de "racionalidade". Isso excluiu outras experiências e
perspectivas fora do contexto europeu, estigmatizando vivências e significados
que não se encaixavam nessa lógica, consolidando assim a colonialidade do
poder. Conforme Walter Mignolo afirma, não há modernidade sem colonialidade,
que se manifesta em todas as esferas da existência.
O que
se anuncia é o fim da colonialidade, não apenas em sua manifestação moderna e
europeizante, mas também da colonialidade existencial que reprimiu a plenitude
da potencialidade humana em todas as suas dimensões. A luta dos povos indígenas
e originários pela defesa de suas terras e modos de vida sinaliza não apenas a
preservação dos biomas, mas também a essência da relação entre homem, mulher e
natureza, criticada pelo paradigma do progresso e da evolução. A busca pela
emancipação feminina aponta para o fim do patriarcado, que sustenta a lógica
machista, e reflete na dominação do trabalho e na supremacia econômica
masculina. A luta contra o racismo, cada vez mais necessária, além de destacar
a origem da divisão por cor através da escravidão, demonstra como o trabalho imposto
aos africanos e aos povos indígenas foi utilizado para justificar o preconceito
e impor uma segregação baseada em critérios religiosos, geográficos, culturais
e, acima de tudo, étnicos. A crítica e a suposta superioridade das experiências
existenciais sobre as sociedades consideradas pejorativamente como
"tradicionais" devido às suas práticas espiritualistas criaram uma
divisão entre ciência-racionalidade, de um lado, e
sensibilidade-intuição-espiritualidade, de outro.
Longe,
muito longe da arrogância ocidental ao considerar as práticas espiritualistas
de povos originários, tradicionais e sociedades asiáticas, africanas e
oceânicas como meramente folclóricas, mitológicas ou religiosas, não se
compreendeu que tais práticas não eram atrasadas, mas sim percepções sensíveis
de que a lógica do progresso implicava o abandono de uma essencialidade humana,
com todos os riscos que essa concepção carrega. A racionalidade moderna
fragmentou a integralidade holística do ser humano, privilegiando certos
aspectos de nossa sensorialidade e estimulando determinadas áreas neurais,
resultando em mutilação e afastamento cada vez maior das experiências das sociedades
antigas, simplesmente por serem consideradas ideologicamente ultrapassadas.
Isso foi um estratagema ao criar uma oposição entre passado e presente, e pior
ainda, ao retratar a escolha como sendo entre passado e futuro, como se fosse
inquestionável qualquer crítica ao nosso modelo de vida atual, e como se fosse
inevitável resistir ao futuro sem uma mudança drástica e indispensável no modo
de vida contemporâneo, que está alcançando limites insustentáveis.
Ainda
que certas opções consideradas "utópicas" sejam nossos horizontes,
elas não se resumem a questões meramente semânticas ou hermenêuticas. São
resultado de longas experiências humanas testadas e comprovadas, demonstrando
que a paz é melhor que a guerra, o amor é melhor que o ódio, a fraternidade é
melhor que a inimizade, a colaboração é melhor que a disputa, a liberdade é
melhor que a prisão, a saúde é melhor que a doença, a preservação da natureza é
melhor que a poluição e a harmonia é melhor que a desarmonia.
O
planeta Terra, conhecido por diversos nomes e seus princípios energéticos como Tiamat, Gaia, Pacha Camac,
Abya Ayala, Sham, Urantia, está gestando um futuro brilhante, pois o modelo
existencial atual se esgotou. Esse modelo não conseguiu trazer a paz prometida
pelo iluminismo e, a cada dia, vemos seus recursos se esgotarem, colocando em
risco a vida humana.
Uma das
muitas imagens prejudiciais propagadas por um tipo de racionalidade que opôs
dedução e intuição foi a noção entrópica e autorreferenciada de que a vida
humana está desconectada do cosmos, como se fosse uma entidade autônoma em si
mesma. Essa concepção é moderna, os antigos não acreditavam nisso. No entanto,
nada poderia ser mais irreal, ilusório, ideológico e estratégico do ponto de
vista da manutenção da lógica do poder e da exploração econômica. Ao afirmar
que não existe uma correlação entre a Terra e o universo, reforçou-se o
paradigma da imutabilidade e da crença de que outro modelo existencial é
impossível. Também foi reforçada a ideia de que não temos poder em nós mesmos,
de que as plantas, os animais e os minerais não estão integrados ao nosso
corpo, e que somos unidades desconectadas de tudo, que não existe a unimultiplicidade, para usar uma expressão do cantor e compositor Tom Zé.
Mas não
é apenas o planeta que está grávido de um novo futuro, o universo também está,
pois essa é a sua dinâmica: a mudança. A aspiração e os desejos por mudanças
não são meras projeções humanas, são conexões sensitivas.
A
divisão do mundo entre aqueles que desejam um mundo mais equânime e menos
injusto, e aqueles que lutam pela perpetuação do status quo, define a postura
daqueles que anteciparam o surgimento de um novo mundo, os otimistas, e
daqueles que apostaram no "quanto pior, melhor". Para esses últimos,
a história será implacável.
Valeu, mano!!!
ResponderExcluirvaleu
ExcluirBom convite à reflexão, o texto destaca a divisão entre aqueles que almejam um mundo mais justo e equitativo e aqueles que resistem às mudanças, enfatizando a importância de reconhecer as transformações em andamento e a inevitabilidade de um novo modelo existencial. Além disso, traz uma visão abrangente e instigante sobre os desafios e as possibilidades de mudança no cenário contemporâneo, abordando diversos aspectos sociais, políticos e existenciais.
ResponderExcluirobrigado. que bom que gostaste.
ExcluirMuito boa essa compreensão de mundo. O fluxo da vida está tão acelerado que poucas pessoas conseguem captar que essa mudança apesar de dolorida ( talvez para uns mais e outros menos) se faz necessário para a grande transformação. Que possamos também aprimorar o nosso sentir para que esse processo seja tranquilo para quem possui uma sensibilidade maior. Parabéns! Muito bom de ler.
ResponderExcluirque bom que gostaste. abraços
ExcluirSou eu Ana que comentei acima e saiu como anônimo.
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