BORRALHO, José Henrique de Paula. O (IN) ATUAL EM LITERATURA, in: SANTOS
SILVA, Joseane Maia; DOS SANTOS, Silvana Maria Pantoja (orgs). Literatura em diálogo: memória, cultura e
subjetividade. São Luís, Editora da UEMA, 2015, pp 205-240.
Para
Roberto Correa dos Santos, André Monteiro e Alberto Pucheu
O
(IN) ATUAL EM LITERATURA
José Henrique de Paula Borralho[1]
Hoje concebo a crítica como uma
forma de ativismo cultural e preciso definir o presente para poder atuar. Uso
alguns instrumentos conceituais; um deles é o que chamo de imaginação pública,
que me permite ler sem as categorias de autor e de obra, fora das divisões
entre privado, individual e social. A imaginação pública seria tudo o que
circula em forma de imagens e discursos e uma força e um trabalho coletivos que
fabricam a realidade. Posso imaginá-la também como um território real virtual
sem foras, como uma rede que tecemos e nos envolve, nos penetra e constitui. A
literatura seria um dos infinitos fios da imaginação publica.
(Josefina
Ludmer. Uma periodização literária)
Tomando como inferência o
artigo escrito por Josefina Ludmer intitulado: O que vem depois: uma periodização literária[2],
acerca das circunstâncias orbitando as perspectivas da literatura na
contemporaneidade com os seus laços e nexos possíveis tão dispares que a
premissa estabelecida por Compagnon[3]
de que a teoria literária é um campo epistemológico relativista, torna-se mais
do que nunca quase um axioma: a teoria da literatura, como toda epistemologia,
é escola de relativismo, não de pluralismo, pois não é possível deixar de
escolher (COMPAGNON, 1999, p. 262). Relativista, mas não niilista, pois que a
abertura existente dentro das fendas do fazer literário contemporaneamente há
muito ultrapassaram o âmbito das circunstancias históricas que outrora
possibilitavam identificar correntes, estilos e gêneros literários. No campo
das artes e da literatura, a questão das vanguardas deitava um modus operandis, um fazer situado como
luta, embate contra uma forma de expressão da linguagem, logo, da própria
capacidade da linguagem em dar sentido a uma compreensão sígnica da literatura.
Era possível identificar um autor, um estilo moderno em relação a uma etapa
anterior. Contemporaneamente, as entranhas do fazer literário não antagonizam
passado e presente, estilos e gêneros com outras formas de expressão porque o
próprio moderno foi encapsulado como meneio, estratégia, significação em que o
passado deixa de ser forma para ser também significação, a tal ponto que
qualquer caracterização periódica ou mesmo identitária do anterior ao
contemporâneo perde sua logicidade. No dizer de Giorgio Agambem: Pode dizer-se contemporâneo apenas
quem não se deixa cegar pelas luzes do século e consegue entrever nessas a
parte da sombra, a sua íntima obscuridade. Com isso, todavia, ainda não
responderemos a nossa pergunta. Por que conseguir perceber as trevas que provêm
da época deveria nos interessar? Não é talvez o escuro uma experiência anônima
e, por definição, impenetrável, algo que não está direcionado para nós e não
pode, por isso, nos dizer respeito? Ao contrário, o contemporâneo é aquele que
percebe o escuro do seu tempo como algo que lhe concerne e não cessa de
interpretá-lo, algo que, mais do que toda luz, dirige-se
direta e singularmente a ele. Contemporâneo é aquele que recebe em pleno rosto
o facho de trevas que provém do seu tempo (AGAMBEN, 2010, p. 64).
Josefina Ludmer arrola
uma série de tendências:
crônica (como Desubicadosde Maria Sonia Cristoff, ou o Banco da sombra, de Maria Moreno); testemunho (como Historia del Llanto. Um testemonio de Ana Pauls); biografia
(como a Biografia de Osvaldo Lamborghini
de Ricardo Straface); diários (como Intemperie
de Gabriela Massuh) (LUDMER, 2014, p. 97).
Possibilidades,
características múltiplas da literatura contemporaneamente que, vista sob uma
certa ótica, são miríades de uma crise interna, cuja epistemologia, incapaz de
definir e estabelecer suas diretrizes, podem ser vistas como generalistas,
ataraxia, mas que por outro lado podem ser encaradas também como potência da
própria literatura em continuar dizendo algo de si mesma e sobre os sentidos
construídos em torno dela e sobre ela sob múltiplos ângulos e perspectivas.
Quando mais se expandem as formas de fazer e de dizer literário, mais o
horizonte da pretensão conceitual ou da definição de seus contornos se afastam,
numa espécie de fio de Ariadne sem fim, cujo novelo nunca acaba porque o
horizonte que se apresenta não é o final do labirinto, mas o labirinto como
possibilidade de alargamento potencial.
Isto apresenta um grande
problema: se tudo é literatura então literatura não existe, pois que para sê-la
são necessários contornos de suas definições que possam diferenciá-la de outras
linguagens. A questão é que a literatura possui também a capacidade de
encapsular outras linguagens e transformá-las em discursos já prefigurado sob
uma forma metaforizada, ou seja, resignificada e devolvida ao mundo diferente
de como foi investida inicialmente, como bem disse Clarice Lispector: “a
linguagem é meu esforço humano. Por destino tenho que ir buscar e por destino
volto com as mãos vazias” (LISPECTOR, 1980, p. 101), afinal, na acepção de
Conceição Neves, citada por Gustavo Bernardo: “nós somos linguagem, e
reconhecê-lo pode ser produtivo, uma vez que se enfrenta a reificação do
cotidiano (NEVES apud BERNARDO, 2002, p. 79). Sob esse ângulo o que a princípio
poderia conotar uma debilidade constitui sua força motriz, sua força
estioladora rompendo sendas, limites, imposições, desconfianças. Quando cada
escrito ganha a cena do publicável, uma nova janela se abre, da mesma forma
como bem preconizou o escritor egípcio Edmond Jabés: “cada vez que se retira um
livro da estante para ler, outro livro, desse mesmo livro, permanece lá, para
sempre invisível, para sempre ilegível”, segundo Pucheu (2010, p. 56)”. Da
mesma forma, quando as múltiplas possibilidades de dizer sobre o mundo são
expressas em linguagem literária, novas possibilidades, dessas mesmas
possibilidades se abrem, num encadeamento infinitesimal, interconectadas,
intercambiadas pelo fio invisível que liga o desejo de ser e estar no mundo.
Por isso precisa ser pronunciado, enunciado, irmanando os mesmos fios de
Ariadne, só que carregados pelas mãos de todos aqueles que sentem não a
necessidade de escrever, aliás, a escrita, tal como a poesia não se encerra no
plano da tessitura da linguística, da língua codificada em texto prosaico ou
poético, mas em múltiplas plataformas da linguagem em busca das tantas mãos a
confeccionarem a transposição do não-dito, do interdito, em algo diz dito, dito
como se diz, a tal ponto que já não se sabe de quem são as mãos, se levadas
pelo empuxo do desejo da linguagem que se quer anunciar ou se é uma extensão da
necessidade do desejo do escrevente, se é causa ou consequência, como disse
Heidegger[4].
A vontade de ser e estar
no mundo na literatura - justamente esses dois verbos se comungando numa
diafonia consoante de existir, ora significando uma condição, ora outra pelo
deslocamento dos sentidos atribuídos porque ser é carregado do existir do ente,
assim como estar é pleno do ser -, uma abertura, uma estante com e sem livros,
uma janela, uma miríade, uma possibilidade premente de conotar uma condição que
se abre à uma outra num encadeamento ilógico, não previsível, incontrolável,
indeterminado, imprevisível. A literatura não está absorta em si mesma longe
inclusive das determinações do campo acadêmico e academicista – para Vilém Flusser:
“o estilo acadêmico reúne honestidade intelectual com desonestidade
existencial, já que quem a ele recorre empenha o intelecto e tira o corpo”
(FLUSSER apud BERNARDO, 2002, p.53)
-, por vezes se enredando nas teias dos debates da teoria e da crítica
literária, mas não se encerra nelas, ainda que estas duas se confundam com o
fazer, pois muitas vezes tenciona o olhar para o entendimento do que seja
literatura, a bem da verdade, durante muito tempo e até os dias de hoje, tal
relação entre literatura, teoria e crítica foi marcada por disputa, tensão,
imbricação, bricolagem, pelo jogo das determinações da legitimidade, dos
limites, das possibilidades e impossibilidades de ser da literatura, quer
dizer, muito do que será entendido enquanto tal será balizado, autorizado,
permeado por suas metalinguagens, quer pela teoria, quer pela crítica[5].
Ainda assim, ao mesmo tempo que ambas ampliam o horizonte da literatura, por
vezes direcionando seu olhar, às vezes são levadas a reboque sendo necessário a
ampliação de seus campos conceituais, do silogismo, do solapsismo,
epistemologia. É que as duas metalinguagens, ainda que não sendo sua matriz,
tentam dar conta do caráter inextrincável de dizer, pronunciar o que ainda,
embora existente, só passa a ser preconizado depois de enunciado, portanto, em
certa medida se confundem e não apenas se acercam dela. Tentam ser porque
existe um diapasão, uma dissonância em se debruçar sobre aquilo que, em
existindo, primeiro foi intuído, depois transformado em signo, e não apenas pode
ser traduzível pelas redes sígnicas das teorizações já existentes, quer dizer,
tanto a teoria quanto a crítica literária em certa escala estão envoltas nos
seus elãs constitutivos de suas próprias significações. Não podem anunciar o
que a literatura poderia ou deveria fazer se não houver quem o faça, pode haver
uma intenção, uma sinalização, até são objetos de si mesmas, comumente o são,
constituem objetos de análises, motivos de precursões, mas não podem prescindir
da literatura, ainda que, conforme já sinalizado, se confundam com ela. É o
caso dos ensaios-poéticos, ensaios-filosóficos que podem ser tomados enquanto
escritos literários desde longa tradição, a bem da verdade, desde os
pré-socráticos. Nisto se constitui mais uma das tantas ideias-forças da
literatura, objeto e análise se confundem, possibilidades e limites se
estreitam já se ampliando, pois quando um sinal é ativado estabelecendo sua
dimensão, tal dimensão já passa a ser incorporada enquanto limite e
possibilidade.
Por isso, Josefina Ludmer
em seu artigo sinaliza tanta potência na contemporaneidade. Não que em outras
épocas ou períodos não houvesse tal potência, sempre houve, a potência é
plenipotente é em si mesma uma condição axial, mas a capacidade humana de
enxergar as múltiplas possibilidades dos vários fazeres literários sempre
esteve absorta em suas conjugações teoréticas, nas necessidades de expressão
sobre a existência aliada às formações culturais, sociais, econômicas em cada
época disposta. Por isso que o conceito de literatura foi mudando
historicamente, consequentemente, o fazer dela e sobre ela. E em cada nova
época, um novo estilo incorporava a genealogia da operação literária, não
necessariamente eliminando a anterior, e sim, acumulando fazeres e
experiências, conspurcando sentimentos e sensibilidades, aumentando a cognição
e o cognitivo, aumentando a fortuna crítica, o arcabouço teórico,
consequentemente, epistemológico, incorporando metodologias de outras áreas,
sofrendo críticas e se defendendo, aliando-se a princípios nacionalistas,
acentuando o caráter excludente da cultura quando usada enquanto signo de
elevação espiritual. É o que nos diz, por exemplo, Raymond Williams, quando os
prognos da literatura na Inglaterra deram ares de superioridade, por vezes
referência de antagonismo entre o que era ser culto e superior do que não era:
“foi apenas a certa altura do século XIX, bastante tardiamente no registro da
literatura inglesa, que a maior parte da população inglesa aprendeu a ler e a
escrever” (WILLIAMS, 2013, p. 4). A cada nova faceta a literatura repercutia,
leia-se, sua epistemologia, consequentemente os fazedores dela, sua própria
caminhada, sua operação, dobrando seu espirito por si mesma enxergando na
trajetória do seu labirinto, o perfazer de suas marcas. Desta feita, seu
cômputo conceitual foi se alargando como um horizonte infindo, sofrendo
revezes, imiscuindo e se confundindo, por exemplo, ora com a história enquanto
operação, ora com a sociologia enquanto explicação, ora com o seu próprio labor
enquanto estrutura semântica e sintagmática, como no caso do Formalismo Russo,
ora, tal como na contemporaneidade, no caso dos Estudos Culturais, acusada, por
exemplo por Todorov, de ser relativista demais, esquecendo-se de que o operar
da filosofia contribui para o fazer literário, mas a literatura não é a mesma
coisa que filosofia, caso contrário, não seria necessário poetar, ainda que
filosofia e poesia se misturam e se necessitam. Nesta mesma linha que os
debates na contemporaneidade, por exemplo, apontam que no caso dos Estados
Unidos, os livros sobre teoria literária não trazem mais o predicativo
“literário”, sendo facilmente confundidos com obras de filosofia, colocando, só
para fazer um trocadilho com Todorov, a “literatura em perigo”.[6]
Tal risco é necessário.
Somente se arriscando, testando, incorporando, ampliando seus horizontes, a
literatura pode continuar dizendo algo sobre a condição humana, sendo ela mesma
uma pletora possibilidade de tal dizibilidade e visibilidade, nem privilegiada,
nem inferiorizada, diferenciada, mesmo quando seu operar se confunde com outras
plataformas de linguagens, como o cinema, teatro, artes em geral, a história, a
sociologia, a filosofia, ainda assim, quando tal operação se processa algo é
identificado nas outras linguagens enquanto literário, quer dizer, a simples
consubstanciação em algo poético amplia a percepção de outras plataformas pelo
predicativo literário, ampliando seu computo conceitual pela plena capacidade
de ser quase tudo sendo literário. Isto acontece talvez porque há necessidade
poética de transformar o que é prosaico em poesia, segundo Edgar Morin:
Poesia-prosa constituem, portanto,
o tecido de nossa vida. Hölderlin afirmava: “o homem habita a terra
poeticamente”. Acredito ser necessário dizer que o homem a habita, simultaneamente,
poética e prosaicamente. Se não houvesse prosa, não haveria poesia, do mesmo
modo que a poesia só poderia evidenciar-se em relação ao prosaísmo. Em nossas
vidas, convivemos com essa dupla existência, essa dupla polaridade (MORIN, 2001,
p. 36).
Ainda assim, o
compreender do que seja prosa e poesia foram construções culturais porque nem
tudo é poético. A vida se deslinda numa dimensão prosaica pela força do habitus, pela necessidade prática, pela
aceleração das relações, pela fremência e ferocidade das urgências cotidianas,
pela cultura que segmenta arte e vida, poesia e não poesia, pragmatismo e
sensitismo, como numa combinação binária, opositora, como se a única capacidade
de entendimento de algo seja pelo seu oposto, como disse Kant[7].
Talvez a literatura, e nisso reside sua grande contradição, uma vez que ela
existe exatamente porque nem tudo é literário, logo, ela é um operar
específico, conotado assim pela linguagem, tenha a pretensão de tudo
transformar em literatura não pela necessidade de estar e ser tudo, mas pelo
desejo de não existir pelo simples fato de que só existe enquanto necessidade,
ou seja, existe para chamar a atenção de que vida prática é poesia sem brilho,
sem cor, afonia, então, se tudo se transformasse em poesia, já que segundo
Hordelin o homem habita na terra poeticamente, a literatura poderia se livrar
de sua função porque teria atingido a condição de ser enxergada em tudo, de
estar em tudo sem ser tudo. De novo a relação entre os verbos ser e estar,
estar em si porque já é.
Desta feita, é que
contemporaneamente seus desdobramentos aparecem em várias formas de linguagem,
seus gêneros diluem suas fronteiras, a colagem, mesmo de textos puramente
prosaicos, quer documentais, quer jornalísticos, podem, num processo de composição,
de montagem, virar textos poéticos, crônicas, contos, ensaios, etc. Por isso
que instalações artísticas, a edição de cinema, a síntese no cinema, não apenas
se nutrem da literatura como usam suas ferramentas. Uma das características
contemporâneas é a quebra de hierarquia entre as linguagens, o fim das gavetas
e partições sobre o que é isso ou aquilo como sintoma de uma crise e enquanto
necessidade premente de dizer algo sobre a condição axial de outra forma
exatamente porque as antigas já não dão conta da variegada diversidade humana,
a bem da verdade, nunca deram, mas durante muito tempo assim se quis acreditar
porque cria-se na infalibilidade do método, na distinção entre ficção e
realidade quando hoje se sabe que a verdade está disposta dentro de um conjunto
signico representativo, cuja mensurabilidade só é possível mediante conjunções
de análises e interpretações, fazendo da ficção tão real quanto a própria
realidade, ainda que não tangível. Não se trata de uma redução relativista e
niilista tal como querem alguns apologistas e signatários de uma leitura da
vida sem sentido em que cada interpretação tem seu peso, e de fato vale, mas
isso não implica em ausência de sentido, muito pelo contrário, e sim, em
problematizar, decupar tais interpretações, vasculhando os processos
originários de tais atribuições. É bem verdade que tudo o que existe só pode
ser traduzível, sentido e percebido pela linguagem e pela experiência, nisto
inclui, claro, o próprio conceito de existência, no entanto, problematizar as operações
linguísticas com o fito de descortinar os elementos constitutivos de qualquer
significado implica não na redução do sentido de existir, mas na sua ampliação.
Se algo é lido de uma forma, a pergunta então recai se tal coisa poderia e pode
ser compreendida de outra, logo, sua existência pode extenuar aspectos para
além dos existentes. Nisto se aplica o real. Ele não é como se apresenta, ou
como é lido pelas construções das linguagens, é outra coisa para além dos
atribuídos a ele autorizados. Tudo o que se disse sobre qualquer coisa se se
muda o aspecto, muda-se a inflexão, muda consequentemente a percepção sobre. Os
gêneros literários eram até pouco tempo verdades insofismáveis, lugares
estabelecidos, lugares inclusive garantidores de um espaço intocado,
resguardado da literatura, nem arte, nem ciência, apenas e somente literatura.
O que dizer hoje sobre o que seja literatura? Por que seus campos foram
alargados? Sintomas ou causas? As duas coisas. Se a literatura conceitual
entrou em perigo é porque o vórtice que conduzia a uma conceituação não suporta
mais instrumentalizações que não acompanham a multiplicidade da expansão
sensitiva, sensível das pessoas, quer dizer, a cognição foi ampliada tanto pela
descoberta de novos canais de comunicação, de expressão, quanto pela abertura
de novas inflexões da linguagem, numa relação simbiótica em que causa e
consequência se confundem, se imiscuem. Foi afetada pelas transformações
sociais, gerando novas formas de expressão, quanto sua expansão gerou novas
demandas, novas tipologias da escrita, estilos, incorporando e sendo
incorporada por novas formas de escrever.
Uma expressão que talvez
denote tal inflexão é a mesma que os gregos utilizaram para designar o ato
necessário e cadente de filosofar: aporia. A, do grego, não; POROS, passagem.
Não passagem. Quando o pensamento encontra uma barreira, ele procura uma fenda.
Assim também o é a literatura, quando uma forma de expressão esbarra na
intransposição entre o sentido e o revelado, a literatura vai em busca de novos
caminhos. Não perde o fio do labirinto, amplia-o, fazendo do mundo um grande
jardim em novas roseiras, novos jasmins, novos lótus apareceram na trilha no
mesmo instante que os fazedores literários abrem caminhos. É o que Josefina
Ludmer cognominou de narratário, ou seja, a vontade de ser do SER que não se
sabe enquanto tal, se saberá depois que encapsulado pela ressignificação do
significante ganhando corporeidade na comunicação com as pessoas, já não sendo
a mesma coisa de sua intenção inicial quando procurou o significante. À medida
em que é relido pelo significante também repensa sua própria condição
existente, pois ainda que exista, necessita da intermediação entre o que deseja
ser comunicado, transmitido e como será relido. O narratário, ou a forma como
os textos ganham vida própria para além da intenção dos autores, é aporia, quer
dizer, na ausência de passagem e da vontade de se estabelecer e estar entre os
seres comunicantes, encontra passagem, a linguagem ou as diversas formas de
linguagens. Por isso tanta disputa em torno do que vem a ser literatura
contemporaneamente, cada qual advogando a autoridade sobre este aspecto
conceitual, estabelecendo balizas, princípios, regras, conceitos, discursos
autorizados demarcando áreas, epistemologias, marcas. Mas até a isso ela
escapa; às determinações, aos institutos, ainda que ande de mãos dadas porque
também precisa de tais determinações dos institutos e das instituições.
Escapa as determinações,
mas não do seu compromisso com o mundo, qualquer que seja ele, tanto que sempre
foi objeto de disputa. Segundo Eagletlon:
Por que
ler literatura? A resposta, em suma, era a de que tal literatura tornava as
pessoas melhores. Poucas razões poderiam ter sido mais persuasivas. Quando,
alguns anos depois da criação de Scrutiny, as tropas aliadas chegaram aos
campos de concentração para prender comandantes que haviam passado suas horas
de lazer com um volume de Goethe, tornou-se clara a necessidade de explicações.
Se a leitura de obras literárias realmente tornava os homens melhores, então
isso não ocorria de maneira imaginada pelos eufóricos partidários dessa teoria.
Era possível explorar “a grande tradição” do romance inglês e acreditar que com
isso levantam-se questões de valor fundamental – questão de uma relevância vital
para a vida de homens e mulheres desperdiçadas em trabalhos infrutíferos nas
fábricas do capitalismo industrial. (EAGLETLON, 2006, p. 53)
A questão da
contemporaneidade, a princípio, pode ser entendida como mero solipsismo,
retórica, heurística, jogo semântico, variações da linguagem, mas não é. Mais
do que nunca, num mundo eivado de jogos simbólicos e reais antipoéticos, da
crueza do capital, da dureza da exclusão e da indiferença, do
hiperindividualismo, do fascismo de mercado e político, da intolerância
religiosa, do fundamentalismo e suas variações, a literatura contemporânea
ocupa uma posição crucial a serviço da vida, ainda que tal noção gire em torno
de significados atribuídos. Como já frisado, não existe significado sem
experiência e a experiência da ficção a serviço da contribuição de um melhor
não é mera idealização, é uma necessidade. Acusações contra a variegada forma
de se fazer literatura contemporaneamente, inclusive de que se transformou em
quase tudo: “grafitagem”, “colagem”, “edição cinemática” “instalações”,
“bricolagens”, “questões políticas pós-coloniais”, etc, em nada encerram o
sentido poético de poetizar, de colocar a literatura a serviço de uma causa, a
saber, revolucionária, como bem frisou Guy Debord: “não se trata de colocar a
poesia a serviço da revolução, mas sim de colocar a revolução a serviço da
poesia[8]”.
Exatamente! Eis aí uma das questões centrais na contemporaneidade literária:
quando tudo caminha para a desilusão, para o ceticismo, para o fim, inclusive
de qualquer significado:
A poesia é cada vez mais
claramente, enquanto lugar vazio, a antimatéria da sociedade de consumo, porque
ela não é uma matéria consumível (segundo os critérios modernos do objeto
consumível: equivalente para uma massa passiva de consumidores isolados). A
poesia não é nada quando ela é citada, ela pode somente ser desviada (détournée),
recolocada em jogo (DEBORD APUD AQUINO, s/d).
Colocar
a poesia a serviço da revolução significa retomar os fios de Ariadne, no
labirinto que, ainda que seja o mesmo, já não é, passa a ser o labirinto de
Kakfa, aberto, ainda com o Minotauro, mas não no centro, e sim em todo lugar
constituindo novos labirintos e em todos eles a busca de sentidos, abrindo
quimeras, ruelas e vielas, sendas.
Uma
dessas buscas e como demonstração de revolução, inclusive social, temos a
diversidade de publicação no facebook,
o que se enquadraria naquilo que Josefina Ludmer cognominou enquanto imaginação
pública. Com a imensa capacidade de replicação de informações, de repetição de
ideias, colagens, simultaneidades, constitui um espaço aberto a novos e
inusitados escritores, formas difusas de criação, capacidade de reprodução de
informações sem autoria declarada, tornando lugar comum, o que de fato se
coaduna com a ideia de imaginação pública, ou seja, não há autor, há autores, a
bem da verdade, “a morte de autores”, pois as ideias estão em todas as gentes
ao mesmo tempo, quase que simultaneamente, quer dizer, quando alguém pensa em
algo, todos automaticamente pelo inconsciente tomam parte nesses pensamentos,
além da capacidade iconoclasta de todos se sentirem um pouco poetas pela
difusão de uma publicação mais livre, sem as amarras de uma revisão
academicista ou autorizada, como por exemplo: o poema Kafka 1, de autoria do poeta Roberto Correa dos Santos[9],
publicado em homenagem a outros dois poetas, Alberto Pucheu[10]
e André Monteiro[11],
mesmo sendo os três consagrados na academia e na crítica literária brasileira,
por vezes utilizam desse espaço para dar vazão aos seus pensamentos, lutar
revolucionariamente pelo uso da poesia por um país não fascista, não
autoritário e libertário, acreditando os três no caráter discricionário deste
instrumento contemporâneo, notadamente contemporâneo de divulgação e propagação
de manifestos.
Kafka 1.
Impede
a si Ulisses qualquer som; julga, pois, tornar inócuas as sereias, que de
súbito silenciaram: era o silêncio a arma, a mais exata arma, em cantos
embutida; e se não dominaram as sereias as orelhas de Ulisses certas estiveram
de o terem feito com os olhos, com os olhos perplexos e em êxtase de Ulisses[12].
Ulisses se auto impõe o
impedimento de qualquer som, qualquer um que na propalada grafofagia das cenas
cotidianas não soam nada, é, pois o silêncio, este sim a grande arma, não por
não ter nada a dizer e sim, como desdito do que as sereias cantam; alaridos,
vozes, barulhos altíssonos que ressoam como uma orquestra desafinada, não como
contravenção à música conceitual, estilizada, mas a palavra que salta sem dizer
coisa alguma, logo no chão, caído, já que coisa é caído, não cai porque não
sobe, não flutua, não desperta, a tal ponto de precisaram dominarem os olhos,
posto que os ouvidos do herói, no caso, os heróis, o Ulisses sendo dois,
Alberto Pucheu e André Monteiro, propositadamente correlacionando também com
aquele a quem emprestou o título ao poema, Kakfa, logo ele, escritor solitário,
incompreendido por saber que suas palavras, embora pronunciadas, muitas vezes
silenciadas, se fez de surdo para não cair no lugar comum. Então, tanto o herói
do passado, Ulisses, quanto o anti-herói contemporâneo, Kafka, tomam lugar dos
poetas Alberto Pucheu e André Monteiro, igualmente iconoclastas,
revolucionários, solitários aos seus modos, às vezes em êxtase, assim como
Ulisses quando seus olhos, os dos dois poetas, ficam perplexos diante da
necessidade do silêncio em meio a um mundo cheio de ruído, de cantos das
sereias, desumanizado, cheio de palavras distorcidas, usadas para ferir,
maltratar, sangrar, perpetuar. Por outro lado, qual é o lugar do (s) herói
(s)?. Os heróis são aqueles que se entregam primeiro, são os que, conforme Yung
assumem os arquétipos coletivos em prol de uma causa, são os que se fazem
necessário quando tudo parece desnecessário, irrelevante, quando a esperança se
esvai, quando o absurdo se banaliza, se naturaliza, deixando assim de ser
eventual para ser corriqueiro. Os heróis são os que calam quando todos atônitos
e desesperados gritam; os que não se deixam seduzir por qualquer encanto; os
que desconfiam da facilidade da entrega do adversário; os que desconfiam das
artimanhas das sereias, que levando para as profundezas das águas eliminam os
que poderiam pelos olhos saber de suas intenções, já que seus ouvidos estão
rotos, fechados, autoimune aos cantos embutidos.
A literatura nesse poema
de Roberto Correa dos Santos assume uma função mediadora entre a consciência,
única, e a mente, dual, no caso, a mente no singular assumindo uma posição de
representação de todas as mentes humanas, sempre duais em si mesmas. Ulisses
como herói seria o que de mais próximo se aproximaria de uma consciência
ulterior, superior às mentes dos homens e das mulheres, turvadas pela ilusão do
que veem, ouvem, percebem, tomando aprioristicamente o todo pela parte,
deixando-se levar pelos cantos repletos de falsas promessas e que mergulhadas,
metaforicamente usada como o fundo do mar das sereias, mergulharia num profundo
abismo. Textos publicados no facebook constituem
por vezes cantos da sereia? Sim, mas isso não elimina o próprio meio enquanto
capacidade de, por esse mesmo meio utilizar-se exatamente das palavras para
combater outras palavras. Trata-se de uma mera questão heurística, de disputa
de jogos linguísticos? Não necessariamente. Pode quem sabe mais, mas pode
também quem convence mais e acredita na força da experiência do vivido
utilizando da linguagem como forma de transmissibilidade de valores. Por isso,
Roberto Correa dos Santos faz uso de Ulisses, nem deus, nem homem comum, um médium,
quer dizer, um meio a serviço da consciência, da ligação entre aquilo que vê o
que outros não enxergam, exatamente como a literatura faz; liga, imana,
estabelece um interregno entre o poético e o não poético, entre a vida “real”,
tomada como sentença e a vida sensível, escondida na ficção. A mente é dual
porque acredita no que escuta às vezes sem o crivo da desconfiança dos olhos,
acredita no que vê às vezes sem a distância dos ouvidos, além de, por não
conhecer a verdade, portanto a consciência, só pode tomar como inferência
aquilo que sabe, quer dizer, aprendeu, compilou, processou. Quando se depara
com uma informação, a mente se encontra num labirinto de possibilidades tendo à
sua frente miríades, caminhos a serem escolhidos dependendo dos graus de
formações, interesses, crenças. Entra em conflito pela necessidade de saber
qual o caminho a percorrer, ainda que saiba que uma das formas de saber é
experimentando. Então se dualiza entre aquilo que intui e os sentidos sorvem.
Os sentidos ocupam um papel importante no ato de saber, intuir, por isso
Roberto Correa dos Santos, e mais precisamente as sereias, precisavam se não
pelas orelhas, então pelos olhos deixarem o herói perplexo, seduzido.
Um dos heróis perplexos
de Roberto Correa, a quem ele dedica o poema Kafka 1, Alberto Pucheu, através
de novo do facebook em um poema
intitulado A testemunha[13],
atesta, frente a frente, testa a testa, e protesta uma constrangedora cena,
utilizando o meio como forma de denúnciada prisão de um de seus alunos acusados
exatamente de ter usado o facebook
depois liderado passeatas durantes as manifestações das jornadas de junho e
julho de 2013. O facebook desta feita
como forma de sensibilização e mobilização diante do processo criminalizadore o
avanço retrógrado que o pais passa, altercando aquilo que Guy Debord atestou
sobre a revolução a serviço da poesia.
A TESTEMUNHA
Quando me
sentaram na cadeira
com a
pequena mesa sobre a qual se erguia um microfone,
imediatamente
em frente ao meu olhar,
para que
eu não tivesse como não o ver
(apesar
de ele não ter cruzado seus olhos com os meus
por
nenhum segundo),
mais
alto, entretanto, do que o lugar em que eu me encontrava,
de
maneira que, para olhar para ele,
eu tinha
de erguer os olhos,
como se
ergue os olhos em uma igreja
para ver
o púlpito,
ainda que
ele não rebaixasse seu olhar
para
olhar o meu,
ele com
beca ao centro da mesa imponente,
à sua
direita, a promotora e, de seu outro lado,
o
escrevente manuseando por vezes um computador,
eu,
também ao centro, mas abaixo dele,
abaixo
deles, de frente para ele, cara a cara com ele
e, com
leve movimento lateral que eu fazia da cabeça,
com ela,
a promotora, e, pelo outro lado,
com o
escrevente, que não me chamava tanta atenção,
vi que,
ao centro, acima dele,
no ângulo
reto que a parede
fazia com
o teto, uma câmera me filmava
e que,
abaixo dela, também ao centro,
em uma
altura intermediária entre ela
e a
cabeça dele, uma televisão mostrava
o que a
câmera filmava, eu, no primeiro plano, ao centro,
atrás de
mim a sala grande, cheia, os réus,
seus
familiares, seus amigos, seus advogados
e outros
curiosos que ali se encontravam,
a
televisão mostrava todos nós,
mas não o
mostrava, como se também dele
não se
pudesse haver imagem, como se a imagem
dele
fosse interditada, ele, o sem imagem
dentro do
que a câmera filmava
e a
televisão mostrava, eu tenso,
sem saber
do tempo que passava,
escuto a
voz dele soando pela primeira vez
pelas
caixas de som, adentrando o meu ouvido,
como se
fosse uma voz soando sem sentido,
ou melhor,
como se, do sentido do que ele dizia,
eu
guardasse apenas a palavra “juramento”,
achando
que eu deveria então jurar
que diria
a verdade, apenas a verdade,
nada mais
do que a verdade, foi quando
eu disse
“sim”, mas, então,
com certo
constrangimento, dei-me conta,
pelo
burburinho, de que não era para ter dito “sim”
nem
“juro” (que evitei dizer por não acreditar em Deus,
ao menos,
no que se entende por Deus
de modo
geral e nessas horas de juramento),
e, ao me
dar conta do impasse em que caíra
achando que
eu teria de jurar, achei-me ingênuo
– como se
ele, logo ele, acima de mim,
tivesse
de ter, de mim, a confirmação
de meu
juramento, claro que não,
claro que
ele não estava me perguntando nada,
ao
contrário, estava apenas me avisando
de que
eu, querendo ou não, dizendo “sim”
ou não,
dizendo “juro” ou não,
já estava
sob juramento, diante dele
ao
centro, acima de mim, diante da câmera
ao
centro, acima de mim, diante da televisão
ao
centro, acima de mim – diante de meu impasse,
sem saber
o que fazer para me livrar dele,
escuto
uma outra voz falando pelo microfone,
de modo
que girei meu tronco e minha cabeça
para a
lateral direita, em uma linha oblíqua a mim,
olhando
nos olhos de quem descobri então ser
o
advogado de defesa que também me olhava
e me perguntava,
fazendo-me falar
ao
microfone à minha frente, meio torto,
olhando
para ele, respondendo como podia
às suas
perguntas, de maneira que,
a partir
de então, não olhei mais para aquele
que,
diante de mim, ao centro, acima de mim,
não me
olhara por nenhum segundo.
O que fazer diante dos aparelhos repressivos
do estado? Quais mecanismos de protesto e uso, dessa vez de vozes e alaridos,
de cantos, gritos, para que os outros ouçam, vejam o que somente a testemunha,
vigiada pela televisão, as testemunhas, a família do réu, o réu, o advogado e a
promotora presenciaram? Um dos heróis de Roberto Correa dos Santos desta vez se
encontra em uma outra posição, não precisando do silêncio, ao contrário, dele
querendo se livrar porque nesta situação o silêncio é a arma do opressor.
Quanto menos pessoas souberem do que se passa no processo – Pucheu assim como
Kafka irá posteriormente poetizar sobre um processo, transformando uma
linguagem administrativa, jurídica, burocrática em poesia –, a serviço da
continuidade da revolução. É a poesia como arma, a mesma que Roberto Correa
utilizou para falar do silêncio de Ulisses. Um dos seus Ulisses se encontra
enquanto testemunha entre a coação, a solidariedade ao aluno, a indignação, a
revolta, o constrangimento e a vontade de usar o canto da Sereia, o mesmo que
foi utilizado como justificativa para prender manifestantes em passeatas sob o
pretexto de segurança à ordem pública, para denotar o quanto de ridículo é tal
sonoridade. Usar do mesmo estratagema, o ruído, o barulho já resignificado sob
a forma poética, da liberdade que a linguagem escriturária não se permite,
tanto que o escrevente à sua frente fazia uso da palavra de forma atonal,
ríspida como a própria cena. Palavras cuidadosamente grafadas e gravadas pelo
vídeo para servir de prova, documento, do latim documentarie, testemunho, comprovação podendo ser usada contra ele.
Na passagem da medievalidade para a modernidade, com
o advento da imprensa de Gutemberg, com a necessidade de popularização da
Bíblia para a expansão do protestantismo de Martinho Lutero, com o processo de
aburguesamento europeu e, com a criação dos estados nacionais, cujo princípio
se baseou, dentre outros; na racionalização daquilo que Michel Foucault
cognominou enquanto o surgimento da economia política; na burocratização do
estado moderno; no princípio da laicização do estado; na passagem da
transcendência para a imanência; no desencantamento do mundo; na nova
reengenharia social - qual Maquiavel foi signatário, profético, demonstrando
como o estado moderno deitava sua lógica na separação entre religião e estado
-, na política como nova esfera humana, cujas sociabilidades transmutavam para
a confecção de uma estância exclusivista dos jogos da política, enquanto
artefato, a escrita passou a ocupar um papel primordial porque deslocou o
caráter da confiança na palavra oral, elã da relações entre as pessoas, pois
começou a irmanar os princípios de confiança, segurança e reflexibilidade
naquilo que Norbet Elias (1993) denominou de lento processo de domesticação da
violência, da passagem da violência privada para as mãos do estado, culminando
na “racionalização da vida moderna”, no processo civilizador. O surgimento da
imprensa colocou a palavra oral, as tradições, deslindando-as para o mesmo
plano da ascese divina, da suspensão, da alegoria, da crença em uma humanidade
cada vez mais distante, naquilo que Hannah Arendt classificou enquanto
“desencantamento do mundo”, do fim da magia em nome da logicidade do aparato
burocrático dos estados modernos em ascensão. Sem a escrita não haveria o
direito moderno, a política moderna, a economia moderna porque o imaginário
passou a não crer mais na palavra oral, aquela que no passado estabelecia os
princípios de autoridade e direitos coesitudinários, regia a propriedade, os
limites territoriais, de honra, costumes. Aliás, como bem frisou Raymond
Williams: “nas sociedades industriais modernas, a escrita foi naturalizada”
(WILLIAMS, 2014, p. 01). A palavra escrita ganhara a importância de documento
jurídico, de comprovação, como dito, do latim documentarie, comprovação, logo, atestado de certeza pela crença
nos novos aparatos que aos poucos modificaram o estatuto da percepção humana,
de tal monta que o tribunal do Santo Oficio utilizou o dispositivo do
documento, comprovação, para condenar os acusados de heresia, ou seja, a
confissão dos acusados perdia o seu grau de importância ante a ascensão dos
documentos escritos.
Essa mesma escrita burocrática, jurídica, é apontada
no processo de acusação contra o aluno de Alberto Pucheu, e contra essa escrita
é que o poema A Testemunha é
utilizado; palavra contra palavra, texto contra texto, um para averiguar,
atestar, aferir, outra para defender, testemunhar a favor de, em função de,
como forma de gritar contra o um mundo desencantado que prometeu pelas
estâncias do estado burocrático de direito assegurar a liberdade de expressão,
mas atacou exatamente os gritos dos manifestantes, encarcerando-os, ou seja,
privando-os do direito de, nas ruas, bradar contra os desmandos exatamente do
mesmo estado que prometeu, desde o seu surgimento moderno, a paz, o progresso,
a felicidade. Era exatamente o princípio da revolução a serviço da poesia que
Pucheu estava conclamando; levar os leitores da poesia a não se calarem, a não
fecharem os ouvidos, já que os manifestantes estavam encarcerados, então pelo
menos, como Ulisses, indignarem com os olhos. É ele, Pucheu, o Ulisses-Kafkiano
num processo a serviço daqueles que despossuídos dos dispositivos de poder
poderia usar de sua condição de professor universitário, figura pública, poeta,
utilizar da literatura, das palavras contra as palavras-argumento de um
tribunal com o poder de condenar ou absorver. A descrição minuciosa da cena, a
tensão, a vigilância das câmeras, tal como o panopticismo descrito por
Foucault, o vigiar e punir estampado na situação relatada, tão bem poetizada
pelas hierarquias sociais estabelecidas, “em cima”, por exemplo, não poderiam
ser quebradas pela poeticidade da TESTEMUNHA, pois o sentido foi exatamente
testemunhar contra o ato em si, ou seja, reverter a condição de poder
simbolizada pela justiça brasileira com a força da crueza do poema. Neste
sentido o poema ganha a força do Minotauro, pois que o sentindo da busca
encontra seu propósito ao colocar a literatura a serviço da vida, contra a crueza,
contra a antivida, o antipoema. É o poema duro, de pilha cheia, bateria
carregada, munição até os dentes, força contra força, palavra contra palavra,
dureza e dureza, ouvidos e ouvidos, olhos nos olhos, canto contra canto, de
sereia contra Minotauro. E assim, num dispositivo contemporâneo, o facebook, a literatura reverbera novos
sentidos, novas formas de se colocar diante do mundo, já que se tomou
conhecimento do que aconteceu naquela sala repercutindo e levando mais pessoas
a se posicionarem, criando novos versos, experimentando novas formas de
linguagens, possibilitando com que a imaginação pública encontre novos ecos,
novos poetares, novos poetas, num processo ad
infinitum, porque enquanto houver desejo e vontade, sentimento e expressão,
linguagem e forma, arte e vida, estética e ética, consciência e mente, dual e
unívoco, uno e múltiplo, prosa e poesia, sempre haverá literatura, atual e (in)
atual, engajada e descomprometida, arcaica e moderna, usual e anti-usual,
conceitual e livre, contemporânea e pós-contemporânea, pois o que existe hoje é
preambulo para o que virá amanhã.
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[1] Doutor
em Ciência da Literatura, pelo Programa de Pós-Graduação em Ciência da
Literatura da UFRJ. Professor do Departamento de História e Geografia da UEMA,
Campus São Luís. Coordenador do Núcleo de Pesquisa NEHISLIN: Núcleo de estudos de
historiografia e linguagens.
[2]
LUDMER, Josefina (2014).
[4]HEIDEGGER,
Martin (2012).
[6] Sobre essa questão,
ver dentre outros, TODOROV (2009).
[7] KANT, Emanuel (2003).
[8]“Este texto, publicado
na revista Internacional Situacionista (nº 8, janeiro de 1963,
p. 29-33) sem assinatura, sua autoria se deve, muito possivelmente, a Guy
Debord, que, enquanto diretor da revista, a redigia em sua maior parte. (Esta
tradução foi feita com base na seguinte edição: InternationaleSituationniste
1958-1969. Texteintégraldes 12 numéros de larévue. Editionaugmentée. Paris:
LibrairieArthèmeFayard, 1997). Tradução: Emiliano Aquino (agradeço a revisão e
sugestões de SybilSafdieDouek), segundo: João Emiliano Fortaleza de Aqui em seu
blog: poiesis, trabalho e cultura (Disponível em: http://emilianoaquino.blogspot.com.br/2008/01/all-kings-men.html).
[9]
Prof
Dr. Roberto Correa dos
Santos, Departamento de Literatura da Universidade Estadual do Rio de Janeiro,
UERJ. Facebook:
https://www.facebook.com/robertocorreadossantosangotti?fref=ts
[10]PROFºDrº Alberto Pucheu
Neto. Professor do Departamento de Letras e do Programa de Pós-Graduação em
Ciências da Literatura da UFRJ. Facebook:
https://www.facebook.com/alberto.pucheu?fref=ts
[11]ProfºDrºAndré Monteiro
Guimarães Dias Pires, do Departamento de Letras e do Programa de Pós-Graduação
em Teoria Literária da Universidade Federal de Juiz de Fora, UFJF.
Disponível em: https://www.facebook.com/robertocorreadossantosangotti/posts/1607615476122819?pnref=story
[13]
A TESTEMUNHA, 26 de janeiro de 2015. Disponível em: https://www.facebook.com/alberto.pucheu/posts/10203595991759661?pnref=story
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