quarta-feira, 5 de agosto de 2015

O (IN) ATUAL EM LITERATURA

BORRALHO, José Henrique de Paula. O (IN) ATUAL EM LITERATURA, in: SANTOS SILVA, Joseane Maia; DOS SANTOS, Silvana Maria Pantoja (orgs). Literatura em diálogo: memória, cultura e subjetividade. São Luís, Editora da UEMA, 2015, pp 205-240.



Para Roberto Correa dos Santos, André Monteiro e Alberto Pucheu


O (IN) ATUAL EM LITERATURA

José Henrique de Paula Borralho[1]

Hoje concebo a crítica como uma forma de ativismo cultural e preciso definir o presente para poder atuar. Uso alguns instrumentos conceituais; um deles é o que chamo de imaginação pública, que me permite ler sem as categorias de autor e de obra, fora das divisões entre privado, individual e social. A imaginação pública seria tudo o que circula em forma de imagens e discursos e uma força e um trabalho coletivos que fabricam a realidade. Posso imaginá-la também como um território real virtual sem foras, como uma rede que tecemos e nos envolve, nos penetra e constitui. A literatura seria um dos infinitos fios da imaginação publica.
(Josefina Ludmer. Uma periodização literária)

Tomando como inferência o artigo escrito por Josefina Ludmer intitulado: O que vem depois: uma periodização literária[2], acerca das circunstâncias orbitando as perspectivas da literatura na contemporaneidade com os seus laços e nexos possíveis tão dispares que a premissa estabelecida por Compagnon[3] de que a teoria literária é um campo epistemológico relativista, torna-se mais do que nunca quase um axioma: a teoria da literatura, como toda epistemologia, é escola de relativismo, não de pluralismo, pois não é possível deixar de escolher (COMPAGNON, 1999, p. 262). Relativista, mas não niilista, pois que a abertura existente dentro das fendas do fazer literário contemporaneamente há muito ultrapassaram o âmbito das circunstancias históricas que outrora possibilitavam identificar correntes, estilos e gêneros literários. No campo das artes e da literatura, a questão das vanguardas deitava um modus operandis, um fazer situado como luta, embate contra uma forma de expressão da linguagem, logo, da própria capacidade da linguagem em dar sentido a uma compreensão sígnica da literatura. Era possível identificar um autor, um estilo moderno em relação a uma etapa anterior. Contemporaneamente, as entranhas do fazer literário não antagonizam passado e presente, estilos e gêneros com outras formas de expressão porque o próprio moderno foi encapsulado como meneio, estratégia, significação em que o passado deixa de ser forma para ser também significação, a tal ponto que qualquer caracterização periódica ou mesmo identitária do anterior ao contemporâneo perde sua logicidade. No dizer de Giorgio Agambem: Pode dizer-se contemporâneo apenas quem não se deixa cegar pelas luzes do século e consegue entrever nessas a parte da sombra, a sua íntima obscuridade. Com isso, todavia, ainda não responderemos a nossa pergunta. Por que conseguir perceber as trevas que provêm da época deveria nos interessar? Não é talvez o escuro uma experiência anônima e, por definição, impenetrável, algo que não está direcionado para nós e não pode, por isso, nos dizer respeito? Ao contrário, o contemporâneo é aquele que percebe o escuro do seu tempo como algo que lhe concerne e não cessa de interpretá-lo, algo que, mais do que toda luz, dirige-se direta e singularmente a ele. Contemporâneo é aquele que recebe em pleno rosto o facho de trevas que provém do seu tempo (AGAMBEN, 2010, p. 64). 
Josefina Ludmer arrola uma série de tendências:

crônica (como Desubicadosde Maria Sonia Cristoff, ou o Banco da sombra, de Maria Moreno); testemunho (como Historia del Llanto. Um testemonio de Ana Pauls); biografia (como a Biografia de Osvaldo Lamborghini de Ricardo Straface); diários (como Intemperie de Gabriela Massuh) (LUDMER, 2014, p. 97).

Possibilidades, características múltiplas da literatura contemporaneamente que, vista sob uma certa ótica, são miríades de uma crise interna, cuja epistemologia, incapaz de definir e estabelecer suas diretrizes, podem ser vistas como generalistas, ataraxia, mas que por outro lado podem ser encaradas também como potência da própria literatura em continuar dizendo algo de si mesma e sobre os sentidos construídos em torno dela e sobre ela sob múltiplos ângulos e perspectivas. Quando mais se expandem as formas de fazer e de dizer literário, mais o horizonte da pretensão conceitual ou da definição de seus contornos se afastam, numa espécie de fio de Ariadne sem fim, cujo novelo nunca acaba porque o horizonte que se apresenta não é o final do labirinto, mas o labirinto como possibilidade de alargamento potencial.
Isto apresenta um grande problema: se tudo é literatura então literatura não existe, pois que para sê-la são necessários contornos de suas definições que possam diferenciá-la de outras linguagens. A questão é que a literatura possui também a capacidade de encapsular outras linguagens e transformá-las em discursos já prefigurado sob uma forma metaforizada, ou seja, resignificada e devolvida ao mundo diferente de como foi investida inicialmente, como bem disse Clarice Lispector: “a linguagem é meu esforço humano. Por destino tenho que ir buscar e por destino volto com as mãos vazias” (LISPECTOR, 1980, p. 101), afinal, na acepção de Conceição Neves, citada por Gustavo Bernardo: “nós somos linguagem, e reconhecê-lo pode ser produtivo, uma vez que se enfrenta a reificação do cotidiano (NEVES apud BERNARDO, 2002, p. 79). Sob esse ângulo o que a princípio poderia conotar uma debilidade constitui sua força motriz, sua força estioladora rompendo sendas, limites, imposições, desconfianças. Quando cada escrito ganha a cena do publicável, uma nova janela se abre, da mesma forma como bem preconizou o escritor egípcio Edmond Jabés: “cada vez que se retira um livro da estante para ler, outro livro, desse mesmo livro, permanece lá, para sempre invisível, para sempre ilegível”, segundo Pucheu (2010, p. 56)”. Da mesma forma, quando as múltiplas possibilidades de dizer sobre o mundo são expressas em linguagem literária, novas possibilidades, dessas mesmas possibilidades se abrem, num encadeamento infinitesimal, interconectadas, intercambiadas pelo fio invisível que liga o desejo de ser e estar no mundo. Por isso precisa ser pronunciado, enunciado, irmanando os mesmos fios de Ariadne, só que carregados pelas mãos de todos aqueles que sentem não a necessidade de escrever, aliás, a escrita, tal como a poesia não se encerra no plano da tessitura da linguística, da língua codificada em texto prosaico ou poético, mas em múltiplas plataformas da linguagem em busca das tantas mãos a confeccionarem a transposição do não-dito, do interdito, em algo diz dito, dito como se diz, a tal ponto que já não se sabe de quem são as mãos, se levadas pelo empuxo do desejo da linguagem que se quer anunciar ou se é uma extensão da necessidade do desejo do escrevente, se é causa ou consequência, como disse Heidegger[4]
A vontade de ser e estar no mundo na literatura - justamente esses dois verbos se comungando numa diafonia consoante de existir, ora significando uma condição, ora outra pelo deslocamento dos sentidos atribuídos porque ser é carregado do existir do ente, assim como estar é pleno do ser -, uma abertura, uma estante com e sem livros, uma janela, uma miríade, uma possibilidade premente de conotar uma condição que se abre à uma outra num encadeamento ilógico, não previsível, incontrolável, indeterminado, imprevisível. A literatura não está absorta em si mesma longe inclusive das determinações do campo acadêmico e academicista – para Vilém Flusser: “o estilo acadêmico reúne honestidade intelectual com desonestidade existencial, já que quem a ele recorre empenha o intelecto e tira o corpo” (FLUSSER  apud  BERNARDO, 2002, p.53) -, por vezes se enredando nas teias dos debates da teoria e da crítica literária, mas não se encerra nelas, ainda que estas duas se confundam com o fazer, pois muitas vezes tenciona o olhar para o entendimento do que seja literatura, a bem da verdade, durante muito tempo e até os dias de hoje, tal relação entre literatura, teoria e crítica foi marcada por disputa, tensão, imbricação, bricolagem, pelo jogo das determinações da legitimidade, dos limites, das possibilidades e impossibilidades de ser da literatura, quer dizer, muito do que será entendido enquanto tal será balizado, autorizado, permeado por suas metalinguagens, quer pela teoria, quer pela crítica[5]. Ainda assim, ao mesmo tempo que ambas ampliam o horizonte da literatura, por vezes direcionando seu olhar, às vezes são levadas a reboque sendo necessário a ampliação de seus campos conceituais, do silogismo, do solapsismo, epistemologia. É que as duas metalinguagens, ainda que não sendo sua matriz, tentam dar conta do caráter inextrincável de dizer, pronunciar o que ainda, embora existente, só passa a ser preconizado depois de enunciado, portanto, em certa medida se confundem e não apenas se acercam dela. Tentam ser porque existe um diapasão, uma dissonância em se debruçar sobre aquilo que, em existindo, primeiro foi intuído, depois transformado em signo, e não apenas pode ser traduzível pelas redes sígnicas das teorizações já existentes, quer dizer, tanto a teoria quanto a crítica literária em certa escala estão envoltas nos seus elãs constitutivos de suas próprias significações. Não podem anunciar o que a literatura poderia ou deveria fazer se não houver quem o faça, pode haver uma intenção, uma sinalização, até são objetos de si mesmas, comumente o são, constituem objetos de análises, motivos de precursões, mas não podem prescindir da literatura, ainda que, conforme já sinalizado, se confundam com ela. É o caso dos ensaios-poéticos, ensaios-filosóficos que podem ser tomados enquanto escritos literários desde longa tradição, a bem da verdade, desde os pré-socráticos. Nisto se constitui mais uma das tantas ideias-forças da literatura, objeto e análise se confundem, possibilidades e limites se estreitam já se ampliando, pois quando um sinal é ativado estabelecendo sua dimensão, tal dimensão já passa a ser incorporada enquanto limite e possibilidade.
Por isso, Josefina Ludmer em seu artigo sinaliza tanta potência na contemporaneidade. Não que em outras épocas ou períodos não houvesse tal potência, sempre houve, a potência é plenipotente é em si mesma uma condição axial, mas a capacidade humana de enxergar as múltiplas possibilidades dos vários fazeres literários sempre esteve absorta em suas conjugações teoréticas, nas necessidades de expressão sobre a existência aliada às formações culturais, sociais, econômicas em cada época disposta. Por isso que o conceito de literatura foi mudando historicamente, consequentemente, o fazer dela e sobre ela. E em cada nova época, um novo estilo incorporava a genealogia da operação literária, não necessariamente eliminando a anterior, e sim, acumulando fazeres e experiências, conspurcando sentimentos e sensibilidades, aumentando a cognição e o cognitivo, aumentando a fortuna crítica, o arcabouço teórico, consequentemente, epistemológico, incorporando metodologias de outras áreas, sofrendo críticas e se defendendo, aliando-se a princípios nacionalistas, acentuando o caráter excludente da cultura quando usada enquanto signo de elevação espiritual. É o que nos diz, por exemplo, Raymond Williams, quando os prognos da literatura na Inglaterra deram ares de superioridade, por vezes referência de antagonismo entre o que era ser culto e superior do que não era: “foi apenas a certa altura do século XIX, bastante tardiamente no registro da literatura inglesa, que a maior parte da população inglesa aprendeu a ler e a escrever” (WILLIAMS, 2013, p. 4). A cada nova faceta a literatura repercutia, leia-se, sua epistemologia, consequentemente os fazedores dela, sua própria caminhada, sua operação, dobrando seu espirito por si mesma enxergando na trajetória do seu labirinto, o perfazer de suas marcas. Desta feita, seu cômputo conceitual foi se alargando como um horizonte infindo, sofrendo revezes, imiscuindo e se confundindo, por exemplo, ora com a história enquanto operação, ora com a sociologia enquanto explicação, ora com o seu próprio labor enquanto estrutura semântica e sintagmática, como no caso do Formalismo Russo, ora, tal como na contemporaneidade, no caso dos Estudos Culturais, acusada, por exemplo por Todorov, de ser relativista demais, esquecendo-se de que o operar da filosofia contribui para o fazer literário, mas a literatura não é a mesma coisa que filosofia, caso contrário, não seria necessário poetar, ainda que filosofia e poesia se misturam e se necessitam. Nesta mesma linha que os debates na contemporaneidade, por exemplo, apontam que no caso dos Estados Unidos, os livros sobre teoria literária não trazem mais o predicativo “literário”, sendo facilmente confundidos com obras de filosofia, colocando, só para fazer um trocadilho com Todorov, a “literatura em perigo”.[6]
Tal risco é necessário. Somente se arriscando, testando, incorporando, ampliando seus horizontes, a literatura pode continuar dizendo algo sobre a condição humana, sendo ela mesma uma pletora possibilidade de tal dizibilidade e visibilidade, nem privilegiada, nem inferiorizada, diferenciada, mesmo quando seu operar se confunde com outras plataformas de linguagens, como o cinema, teatro, artes em geral, a história, a sociologia, a filosofia, ainda assim, quando tal operação se processa algo é identificado nas outras linguagens enquanto literário, quer dizer, a simples consubstanciação em algo poético amplia a percepção de outras plataformas pelo predicativo literário, ampliando seu computo conceitual pela plena capacidade de ser quase tudo sendo literário. Isto acontece talvez porque há necessidade poética de transformar o que é prosaico em poesia, segundo Edgar Morin:

Poesia-prosa constituem, portanto, o tecido de nossa vida. Hölderlin afirmava: “o homem habita a terra poeticamente”. Acredito ser necessário dizer que o homem a habita, simultaneamente, poética e prosaicamente. Se não houvesse prosa, não haveria poesia, do mesmo modo que a poesia só poderia evidenciar-se em relação ao prosaísmo. Em nossas vidas, convivemos com essa dupla existência, essa dupla polaridade (MORIN, 2001, p. 36).

Ainda assim, o compreender do que seja prosa e poesia foram construções culturais porque nem tudo é poético. A vida se deslinda numa dimensão prosaica pela força do habitus, pela necessidade prática, pela aceleração das relações, pela fremência e ferocidade das urgências cotidianas, pela cultura que segmenta arte e vida, poesia e não poesia, pragmatismo e sensitismo, como numa combinação binária, opositora, como se a única capacidade de entendimento de algo seja pelo seu oposto, como disse Kant[7]. Talvez a literatura, e nisso reside sua grande contradição, uma vez que ela existe exatamente porque nem tudo é literário, logo, ela é um operar específico, conotado assim pela linguagem, tenha a pretensão de tudo transformar em literatura não pela necessidade de estar e ser tudo, mas pelo desejo de não existir pelo simples fato de que só existe enquanto necessidade, ou seja, existe para chamar a atenção de que vida prática é poesia sem brilho, sem cor, afonia, então, se tudo se transformasse em poesia, já que segundo Hordelin o homem habita na terra poeticamente, a literatura poderia se livrar de sua função porque teria atingido a condição de ser enxergada em tudo, de estar em tudo sem ser tudo. De novo a relação entre os verbos ser e estar, estar em si porque já é.
Desta feita, é que contemporaneamente seus desdobramentos aparecem em várias formas de linguagem, seus gêneros diluem suas fronteiras, a colagem, mesmo de textos puramente prosaicos, quer documentais, quer jornalísticos, podem, num processo de composição, de montagem, virar textos poéticos, crônicas, contos, ensaios, etc. Por isso que instalações artísticas, a edição de cinema, a síntese no cinema, não apenas se nutrem da literatura como usam suas ferramentas. Uma das características contemporâneas é a quebra de hierarquia entre as linguagens, o fim das gavetas e partições sobre o que é isso ou aquilo como sintoma de uma crise e enquanto necessidade premente de dizer algo sobre a condição axial de outra forma exatamente porque as antigas já não dão conta da variegada diversidade humana, a bem da verdade, nunca deram, mas durante muito tempo assim se quis acreditar porque cria-se na infalibilidade do método, na distinção entre ficção e realidade quando hoje se sabe que a verdade está disposta dentro de um conjunto signico representativo, cuja mensurabilidade só é possível mediante conjunções de análises e interpretações, fazendo da ficção tão real quanto a própria realidade, ainda que não tangível. Não se trata de uma redução relativista e niilista tal como querem alguns apologistas e signatários de uma leitura da vida sem sentido em que cada interpretação tem seu peso, e de fato vale, mas isso não implica em ausência de sentido, muito pelo contrário, e sim, em problematizar, decupar tais interpretações, vasculhando os processos originários de tais atribuições. É bem verdade que tudo o que existe só pode ser traduzível, sentido e percebido pela linguagem e pela experiência, nisto inclui, claro, o próprio conceito de existência, no entanto, problematizar as operações linguísticas com o fito de descortinar os elementos constitutivos de qualquer significado implica não na redução do sentido de existir, mas na sua ampliação. Se algo é lido de uma forma, a pergunta então recai se tal coisa poderia e pode ser compreendida de outra, logo, sua existência pode extenuar aspectos para além dos existentes. Nisto se aplica o real. Ele não é como se apresenta, ou como é lido pelas construções das linguagens, é outra coisa para além dos atribuídos a ele autorizados. Tudo o que se disse sobre qualquer coisa se se muda o aspecto, muda-se a inflexão, muda consequentemente a percepção sobre. Os gêneros literários eram até pouco tempo verdades insofismáveis, lugares estabelecidos, lugares inclusive garantidores de um espaço intocado, resguardado da literatura, nem arte, nem ciência, apenas e somente literatura. O que dizer hoje sobre o que seja literatura? Por que seus campos foram alargados? Sintomas ou causas? As duas coisas. Se a literatura conceitual entrou em perigo é porque o vórtice que conduzia a uma conceituação não suporta mais instrumentalizações que não acompanham a multiplicidade da expansão sensitiva, sensível das pessoas, quer dizer, a cognição foi ampliada tanto pela descoberta de novos canais de comunicação, de expressão, quanto pela abertura de novas inflexões da linguagem, numa relação simbiótica em que causa e consequência se confundem, se imiscuem. Foi afetada pelas transformações sociais, gerando novas formas de expressão, quanto sua expansão gerou novas demandas, novas tipologias da escrita, estilos, incorporando e sendo incorporada por novas formas de escrever.
Uma expressão que talvez denote tal inflexão é a mesma que os gregos utilizaram para designar o ato necessário e cadente de filosofar: aporia. A, do grego, não; POROS, passagem. Não passagem. Quando o pensamento encontra uma barreira, ele procura uma fenda. Assim também o é a literatura, quando uma forma de expressão esbarra na intransposição entre o sentido e o revelado, a literatura vai em busca de novos caminhos. Não perde o fio do labirinto, amplia-o, fazendo do mundo um grande jardim em novas roseiras, novos jasmins, novos lótus apareceram na trilha no mesmo instante que os fazedores literários abrem caminhos. É o que Josefina Ludmer cognominou de narratário, ou seja, a vontade de ser do SER que não se sabe enquanto tal, se saberá depois que encapsulado pela ressignificação do significante ganhando corporeidade na comunicação com as pessoas, já não sendo a mesma coisa de sua intenção inicial quando procurou o significante. À medida em que é relido pelo significante também repensa sua própria condição existente, pois ainda que exista, necessita da intermediação entre o que deseja ser comunicado, transmitido e como será relido. O narratário, ou a forma como os textos ganham vida própria para além da intenção dos autores, é aporia, quer dizer, na ausência de passagem e da vontade de se estabelecer e estar entre os seres comunicantes, encontra passagem, a linguagem ou as diversas formas de linguagens. Por isso tanta disputa em torno do que vem a ser literatura contemporaneamente, cada qual advogando a autoridade sobre este aspecto conceitual, estabelecendo balizas, princípios, regras, conceitos, discursos autorizados demarcando áreas, epistemologias, marcas. Mas até a isso ela escapa; às determinações, aos institutos, ainda que ande de mãos dadas porque também precisa de tais determinações dos institutos e das instituições.
Escapa as determinações, mas não do seu compromisso com o mundo, qualquer que seja ele, tanto que sempre foi objeto de disputa. Segundo Eagletlon:

Por que ler literatura? A resposta, em suma, era a de que tal literatura tornava as pessoas melhores. Poucas razões poderiam ter sido mais persuasivas. Quando, alguns anos depois da criação de Scrutiny, as tropas aliadas chegaram aos campos de concentração para prender comandantes que haviam passado suas horas de lazer com um volume de Goethe, tornou-se clara a necessidade de explicações. Se a leitura de obras literárias realmente tornava os homens melhores, então isso não ocorria de maneira imaginada pelos eufóricos partidários dessa teoria. Era possível explorar “a grande tradição” do romance inglês e acreditar que com isso levantam-se questões de valor fundamental – questão de uma relevância vital para a vida de homens e mulheres desperdiçadas em trabalhos infrutíferos nas fábricas do capitalismo industrial.  (EAGLETLON, 2006, p. 53)

A questão da contemporaneidade, a princípio, pode ser entendida como mero solipsismo, retórica, heurística, jogo semântico, variações da linguagem, mas não é. Mais do que nunca, num mundo eivado de jogos simbólicos e reais antipoéticos, da crueza do capital, da dureza da exclusão e da indiferença, do hiperindividualismo, do fascismo de mercado e político, da intolerância religiosa, do fundamentalismo e suas variações, a literatura contemporânea ocupa uma posição crucial a serviço da vida, ainda que tal noção gire em torno de significados atribuídos. Como já frisado, não existe significado sem experiência e a experiência da ficção a serviço da contribuição de um melhor não é mera idealização, é uma necessidade. Acusações contra a variegada forma de se fazer literatura contemporaneamente, inclusive de que se transformou em quase tudo: “grafitagem”, “colagem”, “edição cinemática” “instalações”, “bricolagens”, “questões políticas pós-coloniais”, etc, em nada encerram o sentido poético de poetizar, de colocar a literatura a serviço de uma causa, a saber, revolucionária, como bem frisou Guy Debord: “não se trata de colocar a poesia a serviço da revolução, mas sim de colocar a revolução a serviço da poesia[8]”. Exatamente! Eis aí uma das questões centrais na contemporaneidade literária: quando tudo caminha para a desilusão, para o ceticismo, para o fim, inclusive de qualquer significado:

A poesia é cada vez mais claramente, enquanto lugar vazio, a antimatéria da sociedade de consumo, porque ela não é uma matéria consumível (segundo os critérios modernos do objeto consumível: equivalente para uma massa passiva de consumidores isolados). A poesia não é nada quando ela é citada, ela pode somente ser desviada (détournée), recolocada em jogo (DEBORD APUD AQUINO, s/d).

            Colocar a poesia a serviço da revolução significa retomar os fios de Ariadne, no labirinto que, ainda que seja o mesmo, já não é, passa a ser o labirinto de Kakfa, aberto, ainda com o Minotauro, mas não no centro, e sim em todo lugar constituindo novos labirintos e em todos eles a busca de sentidos, abrindo quimeras, ruelas e vielas, sendas.
            Uma dessas buscas e como demonstração de revolução, inclusive social, temos a diversidade de publicação no facebook, o que se enquadraria naquilo que Josefina Ludmer cognominou enquanto imaginação pública. Com a imensa capacidade de replicação de informações, de repetição de ideias, colagens, simultaneidades, constitui um espaço aberto a novos e inusitados escritores, formas difusas de criação, capacidade de reprodução de informações sem autoria declarada, tornando lugar comum, o que de fato se coaduna com a ideia de imaginação pública, ou seja, não há autor, há autores, a bem da verdade, “a morte de autores”, pois as ideias estão em todas as gentes ao mesmo tempo, quase que simultaneamente, quer dizer, quando alguém pensa em algo, todos automaticamente pelo inconsciente tomam parte nesses pensamentos, além da capacidade iconoclasta de todos se sentirem um pouco poetas pela difusão de uma publicação mais livre, sem as amarras de uma revisão academicista ou autorizada, como por exemplo: o poema Kafka 1, de autoria do poeta Roberto Correa dos Santos[9], publicado em homenagem a outros dois poetas, Alberto Pucheu[10] e André Monteiro[11], mesmo sendo os três consagrados na academia e na crítica literária brasileira, por vezes utilizam desse espaço para dar vazão aos seus pensamentos, lutar revolucionariamente pelo uso da poesia por um país não fascista, não autoritário e libertário, acreditando os três no caráter discricionário deste instrumento contemporâneo, notadamente contemporâneo de divulgação e propagação de manifestos.   
Kafka 1. 
Impede a si Ulisses qualquer som; julga, pois, tornar inócuas as sereias, que de súbito silenciaram: era o silêncio a arma, a mais exata arma, em cantos embutida; e se não dominaram as sereias as orelhas de Ulisses certas estiveram de o terem feito com os olhos, com os olhos perplexos e em êxtase de Ulisses[12].
Ulisses se auto impõe o impedimento de qualquer som, qualquer um que na propalada grafofagia das cenas cotidianas não soam nada, é, pois o silêncio, este sim a grande arma, não por não ter nada a dizer e sim, como desdito do que as sereias cantam; alaridos, vozes, barulhos altíssonos que ressoam como uma orquestra desafinada, não como contravenção à música conceitual, estilizada, mas a palavra que salta sem dizer coisa alguma, logo no chão, caído, já que coisa é caído, não cai porque não sobe, não flutua, não desperta, a tal ponto de precisaram dominarem os olhos, posto que os ouvidos do herói, no caso, os heróis, o Ulisses sendo dois, Alberto Pucheu e André Monteiro, propositadamente correlacionando também com aquele a quem emprestou o título ao poema, Kakfa, logo ele, escritor solitário, incompreendido por saber que suas palavras, embora pronunciadas, muitas vezes silenciadas, se fez de surdo para não cair no lugar comum. Então, tanto o herói do passado, Ulisses, quanto o anti-herói contemporâneo, Kafka, tomam lugar dos poetas Alberto Pucheu e André Monteiro, igualmente iconoclastas, revolucionários, solitários aos seus modos, às vezes em êxtase, assim como Ulisses quando seus olhos, os dos dois poetas, ficam perplexos diante da necessidade do silêncio em meio a um mundo cheio de ruído, de cantos das sereias, desumanizado, cheio de palavras distorcidas, usadas para ferir, maltratar, sangrar, perpetuar. Por outro lado, qual é o lugar do (s) herói (s)?. Os heróis são aqueles que se entregam primeiro, são os que, conforme Yung assumem os arquétipos coletivos em prol de uma causa, são os que se fazem necessário quando tudo parece desnecessário, irrelevante, quando a esperança se esvai, quando o absurdo se banaliza, se naturaliza, deixando assim de ser eventual para ser corriqueiro. Os heróis são os que calam quando todos atônitos e desesperados gritam; os que não se deixam seduzir por qualquer encanto; os que desconfiam da facilidade da entrega do adversário; os que desconfiam das artimanhas das sereias, que levando para as profundezas das águas eliminam os que poderiam pelos olhos saber de suas intenções, já que seus ouvidos estão rotos, fechados, autoimune aos cantos embutidos. 
A literatura nesse poema de Roberto Correa dos Santos assume uma função mediadora entre a consciência, única, e a mente, dual, no caso, a mente no singular assumindo uma posição de representação de todas as mentes humanas, sempre duais em si mesmas. Ulisses como herói seria o que de mais próximo se aproximaria de uma consciência ulterior, superior às mentes dos homens e das mulheres, turvadas pela ilusão do que veem, ouvem, percebem, tomando aprioristicamente o todo pela parte, deixando-se levar pelos cantos repletos de falsas promessas e que mergulhadas, metaforicamente usada como o fundo do mar das sereias, mergulharia num profundo abismo. Textos publicados no facebook constituem por vezes cantos da sereia? Sim, mas isso não elimina o próprio meio enquanto capacidade de, por esse mesmo meio utilizar-se exatamente das palavras para combater outras palavras. Trata-se de uma mera questão heurística, de disputa de jogos linguísticos? Não necessariamente. Pode quem sabe mais, mas pode também quem convence mais e acredita na força da experiência do vivido utilizando da linguagem como forma de transmissibilidade de valores. Por isso, Roberto Correa dos Santos faz uso de Ulisses, nem deus, nem homem comum, um médium, quer dizer, um meio a serviço da consciência, da ligação entre aquilo que vê o que outros não enxergam, exatamente como a literatura faz; liga, imana, estabelece um interregno entre o poético e o não poético, entre a vida “real”, tomada como sentença e a vida sensível, escondida na ficção. A mente é dual porque acredita no que escuta às vezes sem o crivo da desconfiança dos olhos, acredita no que vê às vezes sem a distância dos ouvidos, além de, por não conhecer a verdade, portanto a consciência, só pode tomar como inferência aquilo que sabe, quer dizer, aprendeu, compilou, processou. Quando se depara com uma informação, a mente se encontra num labirinto de possibilidades tendo à sua frente miríades, caminhos a serem escolhidos dependendo dos graus de formações, interesses, crenças. Entra em conflito pela necessidade de saber qual o caminho a percorrer, ainda que saiba que uma das formas de saber é experimentando. Então se dualiza entre aquilo que intui e os sentidos sorvem. Os sentidos ocupam um papel importante no ato de saber, intuir, por isso Roberto Correa dos Santos, e mais precisamente as sereias, precisavam se não pelas orelhas, então pelos olhos deixarem o herói perplexo, seduzido. 
Um dos heróis perplexos de Roberto Correa, a quem ele dedica o poema Kafka 1, Alberto Pucheu, através de novo do facebook em um poema intitulado A testemunha[13], atesta, frente a frente, testa a testa, e protesta uma constrangedora cena, utilizando o meio como forma de denúnciada prisão de um de seus alunos acusados exatamente de ter usado o facebook depois liderado passeatas durantes as manifestações das jornadas de junho e julho de 2013. O facebook desta feita como forma de sensibilização e mobilização diante do processo criminalizadore o avanço retrógrado que o pais passa, altercando aquilo que Guy Debord atestou sobre a revolução a serviço da poesia.  

              A TESTEMUNHA

Quando me sentaram na cadeira
com a pequena mesa sobre a qual se erguia um microfone,
imediatamente em frente ao meu olhar,
para que eu não tivesse como não o ver
(apesar de ele não ter cruzado seus olhos com os meus
por nenhum segundo),
mais alto, entretanto, do que o lugar em que eu me encontrava,
de maneira que, para olhar para ele,
eu tinha de erguer os olhos,
como se ergue os olhos em uma igreja
para ver o púlpito,
ainda que ele não rebaixasse seu olhar
para olhar o meu,
ele com beca ao centro da mesa imponente,
à sua direita, a promotora e, de seu outro lado,
o escrevente manuseando por vezes um computador,
eu, também ao centro, mas abaixo dele,
abaixo deles, de frente para ele, cara a cara com ele
e, com leve movimento lateral que eu fazia da cabeça,
com ela, a promotora, e, pelo outro lado,
com o escrevente, que não me chamava tanta atenção,
vi que, ao centro, acima dele,
no ângulo reto que a parede
fazia com o teto, uma câmera me filmava
e que, abaixo dela, também ao centro,
em uma altura intermediária entre ela
e a cabeça dele, uma televisão mostrava
o que a câmera filmava, eu, no primeiro plano, ao centro,
atrás de mim a sala grande, cheia, os réus,
seus familiares, seus amigos, seus advogados
e outros curiosos que ali se encontravam,
a televisão mostrava todos nós,
mas não o mostrava, como se também dele
não se pudesse haver imagem, como se a imagem
dele fosse interditada, ele, o sem imagem
dentro do que a câmera filmava
e a televisão mostrava, eu tenso,
sem saber do tempo que passava,
escuto a voz dele soando pela primeira vez
pelas caixas de som, adentrando o meu ouvido,
como se fosse uma voz soando sem sentido,
ou melhor, como se, do sentido do que ele dizia,
eu guardasse apenas a palavra “juramento”,
achando que eu deveria então jurar
que diria a verdade, apenas a verdade,
nada mais do que a verdade, foi quando
eu disse “sim”, mas, então,
com certo constrangimento, dei-me conta,
pelo burburinho, de que não era para ter dito “sim”
nem “juro” (que evitei dizer por não acreditar em Deus,
ao menos, no que se entende por Deus
de modo geral e nessas horas de juramento),
e, ao me dar conta do impasse em que caíra
achando que eu teria de jurar, achei-me ingênuo
– como se ele, logo ele, acima de mim,
tivesse de ter, de mim, a confirmação
de meu juramento, claro que não,
claro que ele não estava me perguntando nada,
ao contrário, estava apenas me avisando
de que eu, querendo ou não, dizendo “sim”
ou não, dizendo “juro” ou não,
já estava sob juramento, diante dele
ao centro, acima de mim, diante da câmera
ao centro, acima de mim, diante da televisão
ao centro, acima de mim – diante de meu impasse,
sem saber o que fazer para me livrar dele,
escuto uma outra voz falando pelo microfone,
de modo que girei meu tronco e minha cabeça
para a lateral direita, em uma linha oblíqua a mim,
olhando nos olhos de quem descobri então ser
o advogado de defesa que também me olhava
e me perguntava, fazendo-me falar
ao microfone à minha frente, meio torto,
olhando para ele, respondendo como podia
às suas perguntas, de maneira que,
a partir de então, não olhei mais para aquele
que, diante de mim, ao centro, acima de mim,
não me olhara por nenhum segundo.


             O que fazer diante dos aparelhos repressivos do estado? Quais mecanismos de protesto e uso, dessa vez de vozes e alaridos, de cantos, gritos, para que os outros ouçam, vejam o que somente a testemunha, vigiada pela televisão, as testemunhas, a família do réu, o réu, o advogado e a promotora presenciaram? Um dos heróis de Roberto Correa dos Santos desta vez se encontra em uma outra posição, não precisando do silêncio, ao contrário, dele querendo se livrar porque nesta situação o silêncio é a arma do opressor. Quanto menos pessoas souberem do que se passa no processo – Pucheu assim como Kafka irá posteriormente poetizar sobre um processo, transformando uma linguagem administrativa, jurídica, burocrática em poesia –, a serviço da continuidade da revolução. É a poesia como arma, a mesma que Roberto Correa utilizou para falar do silêncio de Ulisses. Um dos seus Ulisses se encontra enquanto testemunha entre a coação, a solidariedade ao aluno, a indignação, a revolta, o constrangimento e a vontade de usar o canto da Sereia, o mesmo que foi utilizado como justificativa para prender manifestantes em passeatas sob o pretexto de segurança à ordem pública, para denotar o quanto de ridículo é tal sonoridade. Usar do mesmo estratagema, o ruído, o barulho já resignificado sob a forma poética, da liberdade que a linguagem escriturária não se permite, tanto que o escrevente à sua frente fazia uso da palavra de forma atonal, ríspida como a própria cena. Palavras cuidadosamente grafadas e gravadas pelo vídeo para servir de prova, documento, do latim documentarie, testemunho, comprovação podendo ser usada contra ele.
Na passagem da medievalidade para a modernidade, com o advento da imprensa de Gutemberg, com a necessidade de popularização da Bíblia para a expansão do protestantismo de Martinho Lutero, com o processo de aburguesamento europeu e, com a criação dos estados nacionais, cujo princípio se baseou, dentre outros; na racionalização daquilo que Michel Foucault cognominou enquanto o surgimento da economia política; na burocratização do estado moderno; no princípio da laicização do estado; na passagem da transcendência para a imanência; no desencantamento do mundo; na nova reengenharia social - qual Maquiavel foi signatário, profético, demonstrando como o estado moderno deitava sua lógica na separação entre religião e estado -, na política como nova esfera humana, cujas sociabilidades transmutavam para a confecção de uma estância exclusivista dos jogos da política, enquanto artefato, a escrita passou a ocupar um papel primordial porque deslocou o caráter da confiança na palavra oral, elã da relações entre as pessoas, pois começou a irmanar os princípios de confiança, segurança e reflexibilidade naquilo que Norbet Elias (1993) denominou de lento processo de domesticação da violência, da passagem da violência privada para as mãos do estado, culminando na “racionalização da vida moderna”, no processo civilizador. O surgimento da imprensa colocou a palavra oral, as tradições, deslindando-as para o mesmo plano da ascese divina, da suspensão, da alegoria, da crença em uma humanidade cada vez mais distante, naquilo que Hannah Arendt classificou enquanto “desencantamento do mundo”, do fim da magia em nome da logicidade do aparato burocrático dos estados modernos em ascensão. Sem a escrita não haveria o direito moderno, a política moderna, a economia moderna porque o imaginário passou a não crer mais na palavra oral, aquela que no passado estabelecia os princípios de autoridade e direitos coesitudinários, regia a propriedade, os limites territoriais, de honra, costumes. Aliás, como bem frisou Raymond Williams: “nas sociedades industriais modernas, a escrita foi naturalizada” (WILLIAMS, 2014, p. 01). A palavra escrita ganhara a importância de documento jurídico, de comprovação, como dito, do latim documentarie, comprovação, logo, atestado de certeza pela crença nos novos aparatos que aos poucos modificaram o estatuto da percepção humana, de tal monta que o tribunal do Santo Oficio utilizou o dispositivo do documento, comprovação, para condenar os acusados de heresia, ou seja, a confissão dos acusados perdia o seu grau de importância ante a ascensão dos documentos escritos.
Essa mesma escrita burocrática, jurídica, é apontada no processo de acusação contra o aluno de Alberto Pucheu, e contra essa escrita é que o poema A Testemunha é utilizado; palavra contra palavra, texto contra texto, um para averiguar, atestar, aferir, outra para defender, testemunhar a favor de, em função de, como forma de gritar contra o um mundo desencantado que prometeu pelas estâncias do estado burocrático de direito assegurar a liberdade de expressão, mas atacou exatamente os gritos dos manifestantes, encarcerando-os, ou seja, privando-os do direito de, nas ruas, bradar contra os desmandos exatamente do mesmo estado que prometeu, desde o seu surgimento moderno, a paz, o progresso, a felicidade. Era exatamente o princípio da revolução a serviço da poesia que Pucheu estava conclamando; levar os leitores da poesia a não se calarem, a não fecharem os ouvidos, já que os manifestantes estavam encarcerados, então pelo menos, como Ulisses, indignarem com os olhos. É ele, Pucheu, o Ulisses-Kafkiano num processo a serviço daqueles que despossuídos dos dispositivos de poder poderia usar de sua condição de professor universitário, figura pública, poeta, utilizar da literatura, das palavras contra as palavras-argumento de um tribunal com o poder de condenar ou absorver. A descrição minuciosa da cena, a tensão, a vigilância das câmeras, tal como o panopticismo descrito por Foucault, o vigiar e punir estampado na situação relatada, tão bem poetizada pelas hierarquias sociais estabelecidas, “em cima”, por exemplo, não poderiam ser quebradas pela poeticidade da TESTEMUNHA, pois o sentido foi exatamente testemunhar contra o ato em si, ou seja, reverter a condição de poder simbolizada pela justiça brasileira com a força da crueza do poema. Neste sentido o poema ganha a força do Minotauro, pois que o sentindo da busca encontra seu propósito ao colocar a literatura a serviço da vida, contra a crueza, contra a antivida, o antipoema. É o poema duro, de pilha cheia, bateria carregada, munição até os dentes, força contra força, palavra contra palavra, dureza e dureza, ouvidos e ouvidos, olhos nos olhos, canto contra canto, de sereia contra Minotauro. E assim, num dispositivo contemporâneo, o facebook, a literatura reverbera novos sentidos, novas formas de se colocar diante do mundo, já que se tomou conhecimento do que aconteceu naquela sala repercutindo e levando mais pessoas a se posicionarem, criando novos versos, experimentando novas formas de linguagens, possibilitando com que a imaginação pública encontre novos ecos, novos poetares, novos poetas, num processo ad infinitum, porque enquanto houver desejo e vontade, sentimento e expressão, linguagem e forma, arte e vida, estética e ética, consciência e mente, dual e unívoco, uno e múltiplo, prosa e poesia, sempre haverá literatura, atual e (in) atual, engajada e descomprometida, arcaica e moderna, usual e anti-usual, conceitual e livre, contemporânea e pós-contemporânea, pois o que existe hoje é preambulo para o que virá amanhã.  



REFERÊNCIAS

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[1] Doutor em Ciência da Literatura, pelo Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura da UFRJ. Professor do Departamento de História e Geografia da UEMA, Campus São Luís. Coordenador do Núcleo de Pesquisa NEHISLIN: Núcleo de estudos de historiografia e linguagens.
[2] LUDMER, Josefina (2014).
[3] COMPAGNON, Antonie (1999).
[4]HEIDEGGER, Martin (2012).
[5]Sobre esse debate, ver: dentre outros, TODOROV (2009); BAKHTIN (2011), BORRALHO (2013).
[6] Sobre essa questão, ver dentre outros, TODOROV (2009).
[7] KANT, Emanuel (2003).
[8]“Este texto, publicado na revista Internacional Situacionista (nº 8, janeiro de 1963, p. 29-33) sem assinatura, sua autoria se deve, muito possivelmente, a Guy Debord, que, enquanto diretor da revista, a redigia em sua maior parte. (Esta tradução foi feita com base na seguinte edição: InternationaleSituationniste 1958-1969. Texteintégraldes 12 numéros de larévue. Editionaugmentée. Paris: LibrairieArthèmeFayard, 1997). Tradução: Emiliano Aquino (agradeço a revisão e sugestões de SybilSafdieDouek), segundo: João Emiliano Fortaleza de Aqui em seu blog: poiesis, trabalho e cultura (Disponível em: http://emilianoaquino.blogspot.com.br/2008/01/all-kings-men.html). 
[9] Prof Dr. Roberto Correa dos Santos, Departamento de Literatura da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, UERJ. Facebook:  https://www.facebook.com/robertocorreadossantosangotti?fref=ts
[10]PROFºDrº Alberto Pucheu Neto. Professor do Departamento de Letras e do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Literatura da UFRJ. Facebook: https://www.facebook.com/alberto.pucheu?fref=ts
[11]ProfºDrºAndré Monteiro Guimarães Dias Pires, do Departamento de Letras e do Programa de Pós-Graduação em Teoria Literária da Universidade Federal de Juiz de Fora, UFJF.
[12] Publicado em 05 de junho de 2015, as 10:00 h:
Disponível em: https://www.facebook.com/robertocorreadossantosangotti/posts/1607615476122819?pnref=story
[13]  A TESTEMUNHA, 26 de janeiro de 2015. Disponível em: https://www.facebook.com/alberto.pucheu/posts/10203595991759661?pnref=story

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