Durante trinta dias os olhos do mundo estarão voltados para o
Brasil. Depois de longos sessenta e quatros anos o país volta a sediar o
evento, sem olvidar do "maracanaço": episódio de arrogância da
seleção brasileira que comemorou a conquista antes mesmo do apito final na
partida contra o Uruguai, fruto do ufanismo brasileiro, perdendo para a celeste
por 2 X 1.
Desta vez o clima de Copa está arrefecido; não há tanto
ufanismo, pouca empolgação e se não houver nenhuma catástrofe já é para ser
comemorado. O que aconteceu no "país do futebol" que tanto se orgulha
do "maior patrimônio" cultural - embora não seja, as maiores riquezas
são a música, as danças, o sincretismo religioso, a literatura, esta última tão
esquecida nesse país? O futebol é a extensão desses outros elementos citados,
acrescidos de uma herança escravocrata que obrigava negros a se destacaram socialmente
pela falta de oportunidade, pela grande exclusão e preconceito social,
levando-os inclusive a inventar o drible, afinal, como não havia penalidade na
agressão contra os negros, foram obrigados literalmente a driblar a violência
dos brancos em campo, sem esquecer ainda de terem que se pintar de branco para
disfarçar a cor. Os ingleses reapropriaram, resignificaram o futebol, os
brasileiros inventaram a jinga, o drible desconcertante. É claro também que
isto é uma apropriação discursiva, afinal, no processo de reinvenção,
reelaboração da construção da nacionalidade brasileira na década de 30, o
varguismo, a ditadura de Getúlio Vargas, encapsulou o futebol enquanto
estratégia simbólica e politica como artefato cultural conotando a ideia de
genialidade brasileira em detrimento do desenvolvimento artístico-futebolístico
no Uruguai e Argentina.
Então, se a Argentina e Uruguai possuíam tanto talentos como
os brasileiros, porque foi construída a ideia de que o Brasil é o país do
futebol? Sem negligenciar a genialidade de jogadores como Leônidas da Silva,
Djalma Santos, Nilton Santos, Didi, Vavá, Canhoteiro, Pelé, Garrincha, dentre
outros, no Brasil, mais do que nos países vizinhos, o estado utilizou o
simbolismo futebolístico como estratégia de afirmação nacional e jogou pesado
com a calistenia da Educação Física, o folclore como instrumento de positivação
da nação e a construção do gigantismo territorial, sem falar da campanha do
petróleo, entre outras coisas.
O futebol sempre foi uma válvula de escape que os brasileiros
utilizavam para serem notados, lembrados, até mesmo ascensionados socialmente.
Na ausência de uma clareza, transparência quanto aos rumos da politica, da
definição do papel do estado, se aproveitavam dos imensos espaços vazios
urbanos para jogarem bola, já que não havia politica pública de lazer e
educação, ou eram precárias, continuam sendo. Com a aceleração do processo de
urbanização, com a profissionalização do futebol, com o controle do capital ao
esporte fazendo dele mais um instrumento mercadológico, os brasileiros
começaram a perceber que talento não era o bastante - certos empresários controlam os clubes, o
mercado da bola -, e, como diria o bom e velho Karl Marx: no capital tudo vira
mercadoria, é o fim da poesia via futebol. A ingenuidade de um Garrincha não
tem mais espaço.
O desencantamento com o futebol, o processo de inclusão
social pelas politicas públicas do governo Lula - 25 milhões de brasileiros
foram retirados da pobreza -, o acesso a informação pela inclusão digital, o avanço
dos movimentos sociais, a ampliação do número de vagas nas universidades
públicas e particulares (com todas as criticas a qualidade do ensino), o confronto
ideológico entre camadas populares e elites, gestou um elemento embrionário da
mudança social: a conscientização politica.
Quando o país foi anunciado com sede da Copa a economia
mundial navegava em outras ondas. No governo Lula, responsável por trazer a
Copa do mundo e as Olimpíadas, o Brasil vivia um momento de crescimento econômico,
chegou a ser a 5ª maior potência do mundo. Depois da grande crise de 2008, o
sistema econômico mundial arrefeceu e o sucessor de Lula iria pagar a conta
pelo aumento substancial com gastos públicos, inclusive com politicas sociais.
A sucessora de Lula foi a Dilma e nos seus primeiros dois
anos de governo bateu incrivelmente os índices de aprovação do seu antecessor.
Os problemas começaram quando a economia do Brasil começou a dar sinais de
enfraquecimento: a inflação voltou, os investimentos públicos, como o PAC por
exemplo, foram suspensos, obras como refinarias idem e a gestão autocentrada da
presidente desagradando aliados entornaram o caldo. Começavam as criticas a
sucessora de Lula.
Por que os brasileiros não protestaram quando o país foi
anunciado como sede da Copa? Porque o clima à época era de total otimismo e
confiança no país, afinal, as condições econômicas eram extremamente
favoráveis. A primeira manifestação eclodiu em São Paulo após o aumento de
passagens de ônibus, sintoma da crise econômica e do processo não de
empobrecimento nacional, mas da falta de um crescimento vertiginoso em anos
anteriores. Para completar o clima de indignação, a truculência da Policia
Militar paulista reprimindo os manifestantes de forma violenta e covarde.
Pronto. Os ingredientes, aliado ao fato do desencantamento com a politica e a
falência do modelo representativo dos partidos políticos brasileiros
completaram o quadro (sobre a falência do modelo representativo politico
brasileiro e as manifestações, escrevi quatro ensaios neste blog).
Mas não apenas isso. A substituição da gestão presidencial, a
corrupção e os gastos com a Copa catapultaram a indignação nacional. O
presidente Lula, imerso em problema de corrupção do PT, priorizou a Copa do
Mundo, Dilma não. Ela atrasou a liberação dos recursos do BNDES para as obras
dos estádios e da infraestrutura urbana por não concordar com as condições,
acordos, projetos estabelecidos entre o governo do seu sucessor e a FIFA. Além
disso, houve sérios problemas de projetos e execução por parte dos governos
estaduais quanto as obras de infraestrutura urbana.
O custo total dos estádios ficou em 4,5 bilhões de reais.
Estádios como Mané Garrincha, em Brasília, cidade sem expressividade futebolística,
cujo custo atingiu 1,200 milhões de reais revoltaram o país, escolha de Cuiabá
e Manaus como sedes, além de terem 12 sedes ao invés de 08 também colocaram em
xeque a organização do evento, sem contar a conta politica por parte do PT de
se beneficiar da Copa como estratégia de perpetuação politica. Aliás, o PT
fracassou no projeto de projeção e propaganda politica usando os dois megaeventos.
A Copa é quase um fiasco, as Olimpíadas tendem a ser pior.
Só existe um coro entoado por parte da oposição ao PT e pelos
manifestantes com desvio de foco: o de que o Brasil não deveria sediar por
possuir outras prioridades. Errado. O problema não é sediar, nunca houve
problemas de recursos financeiros, tanto que os estádios foram superfaturados e
sim, não existir investimento em tão elevado custo com educação, saúde,
segurança.
O Brasil deveria sim sediar a Copa e os legados são
inevitáveis; já chegaram ao Brasil 800 mil turistas que vão gastar 2,5 bilhões
de dólares, exatamente o valor que o país gastou para construir os estádios; foram criados 700 mil empregos diretos e indiretos; infraestrutura urbana
deficiente recebeu vultosos investimentos, tais como: aeroportos, mobilidade
urbana (metros, vias de acesso, estradas); hotéis estão com 80% de suas
ocupações; o setor turístico foi impulsionado pela divulgação de áreas
completamente desconhecidas do cenário internacional. O problema foi a
corrupção, projetos, planejamento, fiscalização, execução.
Mas, o maior legado é politico. Pela primeira vez os
brasileiros não tiveram vergonha de expor suas contradições e reivindicar
mundialmente que estão insatisfeitos com a politica. Curiosamente esse processo
se deu exatamente por aquilo que os orgulham: o futebol. Se não fosse a
incompetência da organização do mundial de futebol e tudo tivesse dado certo o
mundo e o Brasil ficariam com a sensação de que por aqui as coisas estão
ótimas, quando não estão.
Além disso, a responsável pelo evento, a FIFA, foi esgarçada,
exposta mundialmente pela corrupção, pela sua ingerência, por sua sanha por
lucro, por usar o futebol como objeto de arrecadação de dinheiro, pelo seu
conservadorismo em excluir a população pobre do evento. A FIFA é a própria cara
do futebol atual: corrupto, vide a lavagem de dinheiro na Inglaterra e França,
excludente, sem alma e vibração.
O país do futebol, que seria a cereja do bolo do PT e da FIFA
enquanto instrumento politico de perpetuação de seus mandatários, está sendo
usado exatamente para pedir a saída de seus representantes: Joseph Blatter e
Dilma Roussef.
O xingamento a que a presidente Dilma foi submetida na
abertura da Copa em São Paulo e Minas Gerais mandando ela tomar no cu revelam
não só a falta de educação dos brasileiros, como o conservadorismo da elite
brasileira, sobretudo porque tais lugares são redutos do PSDB, principal
oposição do PT. O PSDB, assim como outras oposições torceram contra a Copa na
esperança e afã de um vexame mundial.
Apesar de todos os problema de organização, furtos já
registrados, confronto com a polícia, o evento mostra ao mundo como o capital,
representado pela FIFA, não pode pausterizar os costumes, eliminar as
diferenças, evitar as questões étnicas e regionais. A seleção inglesa foi
vaiada em Manaus em represália ao seu técnico ter dito que não gostaria de
jogar na selva, além disso, os jogadores tomaram vacina contra a Malária,
prepotência inglesa; Balotelli, negro, naturalizado italiano, foi ovacionado
neste jogo; Didier Drogba, da Costa do Marfim, disse se sentir em casa depois
da recepção em Recife no jogo contra o Japão; Colombianos tomaram conta de Belo
Horizonte e os brasileiros torceram contra os gregos nesta partida e até os
argentinos foram extremamente bem-recebidos.
A África do Sul usou a competição para aplacar anos de apartheid, o Brasil está sendo um laboratório
de mudanças sociais. A forma tíbia como o estado brasileiro subjugou-se a
entidade FIFA é vergonhosa, inclusive abrindo mão da arrecadação fiscal. Na
Alemanha, em 2006, a entidade tentou alterar o estádio de Munique, sem sucesso,
no Brasil, o Maracanã, tombado pelo patrimônio histórico nacional, foi
violentamente modificado. Os ganhos da FIFA são astronômicos, o evento como a
Copa é o momento de maior arrecadação da entidade. Ainda assim, questões
politicas perpassam o futebol. A federação argentina será punida por exibir o
cartaz com os dizeres: “As malvinas são da Argentina”; Bósnia e Croácia tentam
pelo futebol superar os horrores da guerra que deixou tantas feridas.
Estamos assistindo no Brasil a dessacralização do futebol,
exatamente por estarmos sediando o evento. Quanto acontece em outro país o
sentimento contagiante de se sentir representado pela seleção brasileira é
igualado pelo simbolismo pátrio, ou seja, os brasileiros dizem no futebol o que
não conseguem dizer nas questões sociais que causam tanta vergonha. Dessa vez é
o contrário, as nossas vísceras estão expostas.
Que bom.
Estamos assistindo o nascimento de uma nova nação, mais uma
vez. Os legados são notórios. Estamos dizendo ao mundo a nossa forma de fazer e
de viver. Aqui não é a Europa. No Brasil os jogadores europeus reclamam e fazem
muitas exigências: do calor, de aranha no quarto, de formiga, de quase tudo. Comportam-se
como se fossem o centro do universo, numa atitude extremamente eurocêntrica.
Aqui não é Europa. A atitude preconceituosa dos europeus se expressa na forma
como olham o país. Nos seus jornais de origem estampam fotos de bundas de
mulheres brasileiras, fazendo alusão a ideia de que mulher brasileira é puta,
expectam reverencia e servilismo dos brasileiros. O perfil dos turistas da Copa
é de 80% de homens entre 25 e 40 anos, ou seja, quando foi anunciado que o
Brasil sediaria o evento vários jornais da Europa postaram fotos de mulheres
brasileiras. Muitos espanhóis após a derrota para a Holanda por 5 x 1 chamaram
os brasileiros de macacos e que passam fome o restante do ano por terem sido
vaiados. Ainda assim, os europeus foram recebidos calorosamente, fora dos
campos. Essa mistura de recepção e hostilização denotam a confusão entre baixa autoestima
e sentimento de vingança contra os países mais ricos, o problema é que esse
sentimento de inferioridade e o pretexto de sermos pobres não cabe mais,
afinal, somos a 7ª economia do mundo. O padrão rede Globo de idiotização e
alienação não convence mais, as manifestações e as ações dos Black Blocks expõem a violência do
estado, apesar dos equívocos na forma de contestação, a falta de educação nos
estádios e fora deles, e, sobretudo, a falta de energia em convencer o mundo de
que somos bons é a maior exemplificação de mudança social. Orgulho da nação não
é sinônimo de ufanismo, torcer pela seleção não é negligenciar outras dimensões
da vida. Definitivamente estamos assistindo a uma mudança de postura.
Como se não bastasse, ficou claro para os brasileiros que futebol
não é apenas futebol. Nessa arena, iranianos podem se vingar de estadunidenses,
argentinos podem vencer os ingleses, africanos não são colonizados por
europeus, bósnios podem bradar ao mundo suas feridas. No caso dos brasileiros,
ficou claro que a estratégia de utilização politica pelo PT esbarrou nas
imensas complexidades geográficas, culturais, de estratégia e planejamento,
inclusive que é preciso avançar quanto ao amadorismo, ao "jeitinho
brasileiro" de fazer as coisas, ao improviso, tão laureado por nós, mas
que no fundo é ausência de metodologia, de gestão, além de ser uma estratégia
para a corrupção, afinal, na eminencia de uma catástrofe e em nome da urgência
aumentam-se os valores, triplicando orçamentos iniciais.
Futebol não é apenas futebol. A ridícula cerimônia de
abertura da Copa enfatizando um conjunto de estereótipos culturais do Brasil
revela a necessidade de revisitarmos a forma como nos enxergamos e somos
enxergados. A opção pela forma e estética da cerimônia denota como estamos
presos a modelos conceituais sobre a brasilidade, tão desgastadas e sem
reflexão, sequer foi dado prioridade ao exoesqueleto, invenção de cientistas brasileiros no auxilio do desenvolvimento motor dos paraplégicos, usando a força do pensamento para se movimentar. Até os estrangeiros já sabem quem nos somos e de nossas riquezas, só
os brasileiros não.
Enfim, as contradições ideológicas afloram nesse período.
Esta Copa do mundo, independentemente do Brasil vencer ou não, já demonstra
seus desdobramentos. As coisas não serão as mesmas. O recado que os brasileiros
deixam é: sabemos que dentro das quatro linhas todo adversário é um Zé,
rodopiando, ziguezagueando a procura do Ballet torto das pernas não de um Fred
Aster, mas de um Garrincha, acontece que o mundo mudou, não existem mais
Garrinchas e nem romantismo, a lógica do capital devorou a ingenuidade, a
simplicidade e quando fomos imersos na disputa transnacional do mercado pelo poder
do peso econômico, driblar apenas não satisfaz, hoje jogadores brasileiros
desfilam com seus Audis, não são mais pobres, ganham salários aviltantes e
astronômicos, o pobre não pode mais assistir aos jogos, nem em pé, nem com
bandeira, nem instrumentos. Por essas e outras razões que o futebol não
satisfaz mais, não é mais um patrimônio nacional, já que se joga hoje feio e
nossos adversários é que jogam bonito.
Quando esta Copa acabar e os visitantes voltarem para suas
casas, estaremos diante de nós mesmos com o dever de assumirmos nossas
responsabilidades, sem vitimização. Começamos com o gol contra, o de Marcelo
contra a Croácia e acusados de beneficiados pela arbitragem. Espero que façamos
gols a favor.... do povo brasileiro.
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