Os olhos atentos do anjo das pernas tortas
vagueiam perscrutando o lado direito por onde ele jogava. Acha estranho um
homem forte, robusto, encorpado, tomar conta de um setor outrora dominado por
ele e que se chama por um nome de um personagem em quadrinhos.
Procura seus antigos parceiros ou quem
mais possa se aproximar daquela antiga forma de jogar, mas só encontra marcação
forte, passos rápidos, necessidade de força física acima da técnica, muito
estranho esse novo jeito de jogar.
Atenta para um esquálido de mechas
loiradas, estilo pica-pau, tatuado, talentoso, que acaricia a bola com uma
intimidade típica dos antigos deuses do futebol. As atenções se voltam para
ele, às esperanças também. Não reconhece sua antiga casa; está diferente,
menor, todo mundo sentado, não há bandeirolas ou bandeirões, instrumentos
musicais, muita gente de amarelo entoando sempre o mesmo canto ufanista, sem
criatividade, mas freneticamente cantado como se fosse o décimo segundo
jogador. Isso não mudou.
De tanto tentar se reconhecer nessa que já
foi sua morada não atenta para o adversário vestido de azul e branco, um antigo
oponente, sempre difícil, rival, lutador, combatente, guerreiro, habilidoso.
Não desistem nunca, bravejam, vociferam, não querem perder, sobretudo para o
seu arquirrival.
Será uma final de Copa América? Não, há
muitos jornalistas estrangeiros e gente engravatada, cartolas, televisões,
flashes, ansiedades, clima de guerra no ar. Então, do que se trata? Por que há
tanta gente no entorno do estadio e a sensação de que o país parou para essa
partida? Não, não pode ser... Será de fato que está acontecendo o que ele
imagina? É isso, o improvável aconteceu? Uma final de Copa do Mundo no Brasil
entre a seleção canarinho e a Argentina.
Os letreiros eletrônicos ao derredor do
gramado mostram como as coisas mudaram. Há muito dinheiro envolvido, a
ingenuidade se perdeu, já não é mais um espetáculo romântico, e sim um evento a
serviço do capital, cuja bola, outrora amada, agora virou panaceia mercantil de uma entidade gananciosa, empresarial que faz do futebol seu objeto
de produção e circulação de consumo. Os torcedores que dantes habitavam esse
templo foram limados da possibilidade de assistir esse estranho espetáculo
agora feito para os que acumularam o vil metal. Veem-se ao longe as luzes
cintilantes das casas do morro da Mangueira mais parecendo o céu no chão
salpicado de estrelas onde nada distraídos seus moradores não piscam e nem
desgrudam dos televisores. Estranho! Tão perto tão longe do estádio.
Os convidados tentam estragar a festa. Há
um branquinho, franzino, cuja bola não desgruda de seu pé esquerdo independentemente
da velocidade que entona. Raro de se ver. A cada lance de perigo ouve-se o
uhhhh!!!! Seguido de cantigas empolgantes, provocadoras, estimulantes o tempo
inteiro, mesmo se a jogada oferece perigo de gol a eles.
De repente pára para ouvir o que a torcida
adversária entoa, pois um nome conhecido é reconhecido por ele: Maradona es más grande que Pelé. Que
ousadia!! Ele não sabe quem é esse tal de Maradona, mas certamente não pode ter
sido melhor que seu antigo parceiro da bola. Com ele ganhou duas Copas e foi o
personagem central depois que Pelé se machucou na de 1962, no Chile.
O jogo está empatado. Se encaminhando para
o final. É tenso. Vai para a prorrogação.
De repente, o magrinho com a amarelinha
pega a bola no meio do campo, dribla um, dois, três adversários, toca para o
homem forte que ocupa sua antiga posição, ele devolve na frente de dois
zagueiros e num lance genial ao invés de chutar dribla também o goleiro e só
não entra com bola e tudo porque teve humildade.
O Brasil é campeão, na verdade hexa.
Choro, comoção, delírio e um cântico ensurdecedor ecoando: é campeão, é campeão,
é campeão! Alguns empaletozados se sentem aliviados afrouxando os nós das gravatas,
afinal, se o Brasil não ganha o titulo não se sabe como seria a reação do público,
aliás, ele não entende como algumas pessoas vestidos de preto marcham e
enfrentam a policia protestando contra a copa do mundo. Mas como? O Brasil é o país
do futebol e como pode haver pessoas contra? Ele não entende nada. De fato
muita coisa mudou, o que não mudou foi o delírio fremente e entorpecedor da
massa altaneira e feliz pelo titulo esquecendo-se inclusive dos augúrios da
vida, de como será o dia seguinte, agora não importa. Por mais quatro anos o
brasileiro pode erguer a cabeça e sentir-se o rei do mundo, pelo menos no futebol.
E alguma mais importa que isso? Nas dimensões daquelas quatro linhas são deuses
imaginados pairando numa atmosfera em que sofreguidões não existem, pelo menos
por 90 minutos.
Mas se existe um vencedor existe também um
perdedor. Eles estão chorando, alguns fitam os olhos na comemoração dos
brasileiros percorrendo o campo, se aproximando da torcida efusivamente. De
repente os jogadores brasileiros tomam uma decisão inusitada: se aproximam dos hermanos
e pedem para trocar de camisas. Sobem os degraus que levam em direção à taca do
mundo vestidos de azul e branco listrados, a equipagem dos adversários. O
estádio inteiro chora não de tristeza, mas de comoção. Dão-se as mãos torcidas
rivais, se abraçam por um instante se esquecendo das disputas regionais e de
como o futebol por vezes é válvula de escape de tantas frustrações e canalização
de projeção, por isso sua magia. Somente nesse espaço argentinos e brasileiros
podem se unir olvidando passado e presente de controle econômico e politico da
região, da tentativa de sobrepujar um ao outro, abortando inclusive o projeto pan-americano
de construção de uma identidade latino-americana.
Por um instante as diferenças se apagam e
o mundo abismado se comove perguntando como um histórico de tantas rivalidades
pode dar espaço a um sentimento de ilação tantas vezes frustrado de ambos os
lados. A magia do futebol contagia o mundo e antigos adversários se abraçam. É apenas
um esporte, apenas uma competição cujo poder atrativo unifica o discurso pela
técnica, não pelo poder bélico.
Foi isso que o anjo das pernas tortas
sempre pensou. Foi isso que tantas vezes vicejou. Lentamente ele vai caminhando
para o vestiário enquanto o estádio explode em alegria com os olhos marejados. Todo mundo à sua época queria
que ele levasse a coisa a sério, mas se esqueceram de que era a alegria do povo
exatamente por não levar aquilo a sério, e sim, por brincar, ziguezagueando com
os zés, sempre pro mesmo lado.
Enquanto os campões iriam posar de estrelas,
ganhar milhões, ele simplesmente iria voltar para a sua pequena cidade, longe
dos holofotes, do glamour e continuar a fazer o que mais gostava: jogar bola, ou
seja, ser feliz, simplesmente.
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