Para minha irmã Nel
Quanto eu tinha 16 anos, em 1991, minha escola, Almirante
Tamandaré, entrou em greve. Aproveitei então para realizar um grande sonho:
visitar minha irmã Nel e conhecer Sampa. Obstinadamente decidi ir, mesmo sem
meus pais terem condições financeiras para aquele momento específico. Assim
compraram a passagem. Fui. Logo na rodoviária, minha mãe, receosa, perguntou ao
motorista se menores de idade não precisavam de autorização judicial. Eu era um
jovem de 1,80 m, forte e musculoso, teria passado despercebido numa boa. Aí,
atrasei a viagem, o motorista não me permitiu embarcar sem a permissão do Juizado
de menores. Era a minha primeira viagem de desbravamento de mundos. Eu sempre
sonhara em colocar as mochilas nas costas e percorrer o desconhecido. Agradeço
aos meus pais por terem me permitido isso.
Sem dinheiro, meus pais cuidadosamente compraram uma
marmita térmica e dentro, arroz, frango e farofa. Assim fui nessa aventura de
cruzar parte do Brasil. Eu nunca havia saído do Maranhão. Quando a fome bateu,
me dei conta de que minha mãe jamais me permitiria viajar desguarnecido. Havia
trucidado a galinha ainda no Estado de Tocantins, e procurei a marmita
desesperado em busca de algo para comer. Dei-me conta de que a galinha estava
no compartimento de cima, embaixo, arroz, molho, e no terceiro, farofa. O arroz
já cheirava mal. Separei o que ainda prestava, comi. Em Goiânia, já no
segundo dia, desprevenido do clima, senti pela primeira vez o que era frio,
isso depois de cruzar o Maranhão, Tocantins, a cognominada Belém-Brasilia. Fui
até um orelhão mais próximo na rodoviária. De camiseta, liguei para os meus
pais despreocupando-os. Sentia-me um adolescente rompendo os grilhões para a
maturidade. Meus pais entenderam isso perfeitamente.
Quando cheguei a Pirassununga, de manhã cedo, era
preciso tomar banho. Ao abrir a janela do Itapemirim amarelo, saiu fumaça pela
minha boca. Eu nada entendi e pensei estar tuberculoso. Depois, já no banheiro,
ao tentar tirar minha roupa, escorreguei e bati de bunda num mármore mais que
gelado, e de pronto, subi apressadamente.
Dentro do ônibus já conhecia quase todo mundo. Já nem me
postava mais no meu assento e compartilhava histórias de vida. Mas que
experiência de vida eu tinha para compartilhar? Quá!!!! Eu sorvia aquelas
histórias com um desejo fremente de um dia poder também contá-las. Mal sabia
que minha viagem me renderia futuramente um artigo neste blog.
Lembro-me bem de um maranhense que há anos morava em São
Paulo e que passava férias no Maranhão, ele me deu muita atenção e ao saber que
viajava sozinho, sorriu de soslaio. Tinha também um chamado de "BB":
Barbosa Boçal. Era como os amigos de Bauru, cidade onde morava, “carinhosamente”
o apelidaram. Não entendi!!!.. Só porque ele falava muito alto, gargalhava
feito uma gralha, roncava e não deixava ninguém dormir, comia muito e de boca
aberta!? Ele era afetuoso, boa gente, era muito querido pelos amigos paulistas.
Já estava lá havia 18 anos e dizia ser absurdamente feliz.
Nunca mais reencontrei qualquer um daqueles viajantes, mas
sou capaz de lembrar dos rostos de alguns. Naquele pau-de-arara do Itapemirim amarelo,
vidas se cruzaram para nunca mais se verem. Como diria Milton Nascimento:
"todos os dias é um vai-e-vem, tem que gente que chega para ficar, tem
gente sorri e a chorar. e assim chegar e partir são o mesmo lado da mesma
viagem, o trem que chega é o mesmo trem da partida"
Estava ansioso por conhecer a grande metrópole e
a rodovia bandeirantes não acabava nunca. Depois de uma curva, vi a
majestosa São Paulo, até então a visão mais estarrecedora de minha vida: a Marginal
Tietê e um apinhado de carros, de vai-e-vem. Meus amigos de viagem, ao
perceberem que eu fiquei com medo ao avistar a grande cidade, começaram a me
por paúra; diziam que minha irmã jamais me encontraria na rodoviária. Foi
a primeira vez que chorei depois de dois dias com fome e frio: o medo de não encontrar
minha irmã. Ao chegar à rodoviária havia centenas de ônibus amarelos
da Itapemirim; eu pensava que minha irmã jamais me encontraria naquela
multidão. Percebi também que meus amigos, apesar da brincadeira, não estavam
exagerando. Por dia transitam 1 milhão de pessoas pela rodoviária de
São Paulo, exatamente a população de São Luis. Foi aí também que a
solidariedade sorriu para mim: todos unânimes me disseram que me levariam para
suas casas caso eu não encontrasse minha irmã. Não me soltaram até eu
avistá-la. Como é bom ser esperado quando se chega de viagem. Quando, enfim, vi
minha irmã, a alegria de súbito me pranteou a face, fui de reto até
ela e voltei de costas para o ônibus olhando-a para não perdê-la de vista por
entre as grades que separavam os que chegavam dos que aguardavam.
Já no estacionamento, ao lado de meu grande amigo
Claudionor, o Silva, que também me esperava juntamente com minha irmã, uma
porta automática se abriu e perguntei onde estava o controlador da porta? Era o
sistema de fotossensor. Ao começar a passear pela cidade, intentei “reconhecer
alguns prédios” e dizer quais eu tinha vista pela televisão. Minha irmã e meu
amigo Claudionor sorriram...
Era definitivamente um encantamento. Aturdi-me em conhecer
a todo custo a cidade que anos mais tarde, 10 anos depois, moraria por dois
anos... Assim, alguma coisa aconteceu no meu coração quando vi alguns recantos
dessa cidade, que como diria Caetano: “é como um mundo todo”.
Hoje eu entendo o que quer dizer: “é que quando cheguei
aqui eu nada entendi... porque és o avesso, do avesso, do avesso, do avesso”. O Encantamento dizia respeito à
diferença que aquilo me remetia. Como diria Marshall Bermann: na modernidade,
tudo choca, tudo repele, tudo atrai, tudo provoca um sentimento de
estranhamento e fascinação ao mesmo tempo. Assim foi Sampa para mim, me repelia
e me sentia atraído pelo novo, por aquilo que não abarcava e
dominava.
Ao andar pela cidade e me deparar com alguns lugares, tais
como: cruzamento da Ipiranga com São João – tema de Caetano em Sampa
(ali perto está o bar Brahma onde Caubi Peixoto ainda faz shows); Vale
do Anhangabaú – a vista é estrondosa, a força da
megalópole; mosteiro de São Bento; Igreja da Sé; bairro japonês
da Liberdade; Pátio do Colégio – onde São Paulo nasceu, a edificação
mais antiga da cidade; bairro do Bexiga - italianada; Estação da Luz,
pinacoteca, todos ao lado um do outro; Parque do Ibirapuera, shows, e muita coisa de graça, aos domingos é
obrigatório; Museu do Ipiranga; Museu da independência; Avenida
Paulista: MASP, Trianon, Conjunto Nacional; mercado municipal; sebos;
livrarias; bibliotecas; restaurantes; galerias; vernissagens; feiras de
antiguidades; Memorial da América
Latina, e de bobeira; entrar
numa padaria, pedir "um pastéis e dois chopp", tomar café, ver
filmes que só passam lá, teatro, centro culturais, enfim... entender o que só
Sampa tem.
Mas o melhor estava por vir... Os meus grandes amigos
levo pro resto da vida... Meu amigo Claudionor, o Silva, que me hospedou em sua
casa, minha primas Diana e Kátia que também me hospedaram. Sou eternamente
grato a Diana por tudo que fez por minha irmã, por mim e mamãe. Depois Sampa me
agregou: Li, Renê, Natália e Paulinho, Eron e Nelson, Sueli, Denise Sachetto,
Patrícia, a Luzente. Todos esses citados me são muito caros...
Mal sabia que aquela viagem era apenas o início do
desbravamento de meus mundos. Alguma coisa aconteceu no meu coração quanto
avistei Sampa pela primeira vez... Desde então, a vontade de desbravar novos
lugares se arraigou em mim. O mundo não era mais tão grande e amedrontador.
Devo isso a Sampa...Terra de todos e de ninguém, feia e bonita, grande e às
vezes provinciana, ímpar de cenários repetidos, previsível e impulsiva, soberba
e impotente ante os seus deuses da chuva, cheia e quase sempre vazia, rica e
tão pobre, desejada e repelida... Quantos sentimentos ela é capaz de despertar?
Tantos quantos seus transeuntes se permitirem sentir.
"Sim, sentimentos que afloram revelando um misto de angústia, melancolia e prazer, que só o poeta nordestino sabe representar. Canta poeta do sol.......".
ResponderExcluirQue Bom que na "ATENAS" dos mortais, nos deparamos com a vida entre linhas. parabéns, continue cantando, versando poeta do sol.
ResponderExcluirQuerida Dorian, obrigado pelos comentários e pelo elogio de "poeta do sol". nem sabia que eu era era... Sampa provoca isso na gente, algo bom ou ruim, mas nunca indiferença. gosto muito daquela cidade até por suas contradições. abraços
ResponderExcluirVç é uma pessoa especial,por retratar a vida com o talento que tens com as palavras.Poeta do sol, pela "nordestinidade" que revelas em teus escritos parabéns.
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