Farfan era um aposentado de hábitos simples e modestos.
Sempre acompanhado de sua cachorra Lanlan recortava notícias do obituário,
circulava as fofocas das revistas especializadas no ramo e se aprumava dos
bastidores das novelas.
O que queria mesmo era que uma de suas histórias fosse
publicada numa dessas revistas baratas, tipo assim de fofoca, de disse-me-disse.
Acontece que ele não tinha histórias para serem publicadas, gostaria de ter
imaginação, mas não tinha.
Um belo dia teve uma ideia genial, embora nada
inédita. Colou as informações das tiragens que ele colecionava. Das mais
interessantes pegou alguma coisa.
Pegou a história de um médico que só dava plantão à base de
arrebite, de um juiz que se achava perfeito, sem defeitos, de um evangélico que
não via a hora do juízo final e montou sua própria história.
Deu o nome ao personagem de João Soturno. Assim nascia sua
primeira historinha na esperança de ser publicada numa dessas revistas.
João Soturno ao chegar a casa depois de um dia inteiro de
plantão no hospital onde trabalhava, passou a mão no controle remoto zapeando a
tv à procura de algo interessante. Sempre crítico, julgava a programação pobre
demais para seu nível intelectual. Com insônia, lançou mão na caixa
de remédios para dormir, meio sonolento, pegou na verdade na de arrebites, não
tardou a começar a rolar na cama.
Disse que era um absurdo alguém tão trabalhador, honesto,
sofrer de um mal tão terrível quanto aquele, insônia, afinal, esse
tipo de distúrbio só poderia sofrer quem era perturbado,
desequilibrado, não ele. Começou a ter vertigem, brigar com Deus dizendo não
ser aquilo justo para com ele.
De tanto rivalizar com o criador apareceu-lhe uma voz
dentro de sua cabeça, apontando-lhe os defeitos; ele, claro, começou a caçoar
afirmando que não se tratava da pessoa dele. Essa disputa se arrastou dentro de
si.
Foi quando a voz então o desafiou dizendo: – “Fecha os
olhos!!!! Vou te levar a uma viagem da qual nunca irás esquecer”. Sorrindo
debochando ainda assim o fez.
Ele começou a cair num abismo sem fundo e quanto mais ele
descia mais apareciam imagens suas do passado de coisas que ele havia feito;
atitudes antiéticas, subornos, desvio de remédios, tratar mal as pessoas, ser
arrogante, enfim. Ainda assim ele desdenhou afirmando não ser ele. As imagens
começaram a ficar cada vez mais nítidas e pesadas.
Foi quando começou a chorar afirmando que, se aquela pessoa
era mesmo ele, não queria mais viver. Começou a subir, subir, subir,
subir até chegar ao 7.º céu e contemplar milhões de pessoas vestidas de branco
num grande jardim contemplando o criador. Ao não se ver ali sentado “dentre os
salvos”, começou a chorar de pesar e lamentação.
A voz apareceu de novo dizendo-lhe: – “Calma, tu estás ali,
mas não podes te ver porque não és melhor do que ninguém para se destacar,
apenas és mais um”. Começou a sorrir.
João Soturno se levantou, pegou as caixas de arrebites e
antidepressivos, foi até o banheiro e deu descarga. Deitou na cama e dormiu.
Farfan enviou essa história para 5 revistas na esperança de
que alguma a publicasse.
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