sexta-feira, 7 de junho de 2024

Zahy teha tenehem pitàg

 

  

No dia 22 de janeiro deste ano, recebi por e-mail um convite que muito me alegrou e honrou: ministrar uma disciplina de literatura brasileira pelo Programa PROETNOS (Licenciatura para indígenas e quilombolas) da minha Universidade (UEMA), no curso de Ciências da Linguagem, para os Guajajara. Uma experiência nova e inusitada, já que trabalho há muitos anos com a perspectiva da literatura decolonial, a partir da literatura africana de língua portuguesa oficial, mas não com a literatura indígena.

 Ao reler o e-mail, e o faria várias vezes, tive o cuidado de checar as datas por conta dos meus imensos afazeres. Por isso, fixei um cartaz no quarto com as datas e comecei a preparar a disciplina, que só seria ministrada no final de maio. Como disse, essa não seria a primeira e nem última vez que leria o e-mail, afinal, o programa exige com antecedência a entrega do plano de curso da disciplina. Voltaria a olhar o e-mail para pedir o contato do secretário do curso, Lameck, e pediria a ele o contato da secretária do curso local, Fabrícia.

 Feito. Fabrícia não apenas me colocou no grupo de WhatsApp dos alunos, meio pelo qual enviei os textos digitalizados, bem como me indicou o hotel mais próximo do Campus da UEMA. Tudo pronto. As sincronicidades dos episódios começaram uma semana antes da viagem. Ministro aulas às segundas e terças pela manhã, e às quintas-feiras à noite no Centro histórico de São Luís, em um belo casarão do século XVIII, reformado e adaptado para abrigar o prédio do curso de História.

 Na semana que antecedeu a viagem, minha amiga e colega de Departamento Ana Lívia, pediu, caso fosse possível, para eu trocar o dia com ela por conta do aniversário de um dos seus filhos, de quinta-feira para terça, o dia em que ela ministra. Perfeito. Eu já havia comprado a passagem para às 22:30h, uma hora depois da minha aula, ainda assim, me sobraria tempo para levar minha filha Milene à terapia, e deixar meu carro no mecânico para trocar de óleo, ao lado da rodoviária.

 Tudo saiu como planejado. Ao deixar o carro no meu mecânico Marcos, que ao saber que eu ficaria quatro horas esperando na rodoviária, se ofereceu para deixar o carro em um shopping da cidade, e depois eu tomaria um uber, sugeriu ele. Resolvi ainda assim seguir para a rodoviária. Num rompante, tive a súbita ideia de tentar antecipar a minha ida. Consegui.

Mas as coisas não andaram como eu previ. Ao comprar uma passagem de ônibus com cama, a intenção era dormir, já que ministraria aula em pé, das 07:30h às 18h, só com intervalo de 10 minutos pela manhã para o lanche, e à tarde, é claro, para o almoço, e durante a sexta-feira e o sábado as aulas iriam até o meio-dia. Mas, em decorrência da péssima estrada, o sono intranquilo impediu-me de descansar. O funcionário do hotel São Marcos, o Hernandes, se disponibilizou em me buscar na rodoviária, independentemente do horário. Assim aconteceu. Liguei para ele e me assegurou que não tardaria a chegar. Não chegou. Ao retomar a ligação me disse:

-           Professor, estou na rodoviária e não estou lhe vendo.

Ao desligar, perguntei ao taxista João Paulo onde ficava o hotel São Marcos, ao que me respondeu:

-          Não fica nessa cidade.

Retomei a ligação e disse a Hernandes:

-          Como aceitaste o meu pix se eu te confirmei a cidade?

Petardou: - O Sr. se equivocou.

Perguntei ao João Paulo o hotel mais próximo. Antes, porém, encontrei outro professor, Bráulio, do Curso de Ciências Sociais, que também ministraria aula para o PROETNOS, e afirmara que iria para o mesmo curso que eu. Comecei a desconfiar de que algo estaria errado.  Perguntei então o hotel mais próximo para João Paulo:

-          Dobrando a esquina à esquerda.

Cansado, com mala e mochila de notebook, segui. Ao chegar na recepção, não havia mais vaga porque todos os quartos já estavam reservados para os professores da UEMA, menos eu. Desabei. Já eram 3h da manhã e às 07: 30h estaria em sala de aula. Perguntei se ao menos havia um sofá para eu descansar o corpo.

-           Não.

Foi então que, esbravejando de raiva exclamei:

-          Como é possível a eficiente e competente secretária Fabrícia ter se equivocado!?

Ao abrir o e-mail, com apenas 2% da bateria do celular, dei-me conta que a cidade correta seria Grajaú, eu estava em Barra do Corda, 450 km de São Luís e a 100 km de Grajaú. Voltei à rodoviária onde o intrépido João Paulo se encontrava. Perguntei se naquele horário aceitaria levar-me até Grajaú, aceitou prontamente. O preço seria um pouco amargo: rodar 200 km em plena madrugada pelas estradas do Maranhão não é para qualquer um.

A viagem se iniciou e tudo começou a fazer sentido. João Paulo disse-me que o valor daquela corrida sanaria um importante débito vencido naquele mês, estava desesperado com essa conta a pagar e não possuía tal valor. Toda a minha chateação imediatamente foi embora, senti um profundo alívio, começamos a falar sobre a vida, lutas, dissabores, conquistas e derrotas. Foi então que o sentido da viagem brindou meus olhos: uma imensa Lua cheia o dia 23 de maio apareceu no meio da estrada, perfilando a linha divisória da pista nos acompanhando. Comecei a sorrir de felicidade. Era uma lua de pedido, cheia de significados, emblemas, majestosa, silenciosa e tudo ficou tão claro naquele instante, por uns segundos fechei os olhos. Nada mais importava, nem cansaço, nem sono, nem buracos na estrada, nada, apenas a lua cheia e somente ela.

Andamos 40 km e paramos numa barraquinha para tomar café, e aproveitei para dar uma carga no celular, sai do carro e andei alguns metros olhando para ela: grande, altaneira, numa madrugada em que ela e somente ela reinava diante de tal escuridão mesmo distante de mim. Linda, indescritível, imponente. Sem ter troco o dono da barraquinha num ato de despojamento deixou-nos ali e fora até sua casa em busca de dinheiro, poderíamos ter saído surrupiando como larápios rastaqueras toda a sorte de bolos, salgados, comida em geral e as garrafas de café, mas não, voltou tranquilo na certeza de que nada havia sido subtraído. Cada vez mais toda a sorte de eventos começara a fazer sentido.

Mesmo com os primeiros raios de Sol, a Lua cheia reinava soberana. Não era uma disputa com o astro rei, e sim, a certeza do seu lugar, de seu brilho e de tanta fascinação despejando sobre todos, sobretudo, sobre mim.

Chegamos às 06:30h da manhã no hotel São Marcos, lá estava o sorridente Hernandes, mesmo diante de tamanha impaciência minha. Tive vergonha e me desculpei. Levou-me de moto até o polo da UEMA. Quando os alunos indígenas chegaram, contei a eles o significado daquela lua cheia e porque ela é tão rara, tão especial, tão misteriosa para mim, do seu magnetismo, do que estava me fazendo sentir e porque aquele encontro estava escrito nas estrelas, teria que acontecer. Pedi a eles que traduzissem para o tupi. Eles me disseram: Zahy teha tenehem pitàg (A grande lua cheia).


          

 

quinta-feira, 6 de junho de 2024

O Canto do Alto Alegre


Estou ministrando a disciplina a Literatura brasileira, para os indígenas Guajajara, da região de Grajaú, Maranhão. Pedi a eles que reescrevessem a história do "massacre" de Alto Alegre, de 1901, ocorrido na região, que os estigmatiza até os dias de hoje. A indígena Betina Bento fez esse belo poema  


Por Betina Bento.

(indígena Guajajara, da Terra Indígena Morro Branco, Grajaú - Maranhão)  


O CANTO DO ALTO ALEGRE


(Re) Floresce o Alto Alegre, terra de Sol e de sangue,

onde a História se desenrola em tintas vermelhas e negras.

No Cerne da mata cerrada, onde o canto do pássaro encontra o eco do aço, despertou um conflito,

um lamento na brisa da manhã.

Era a terra de riqueza e luta, de esperança, ambição onde mãos calejadas e sonhos se encontravam em oposição.

Guerreiros de rostos marcados com ânimos e ferro armados ergueram-se em prol da terra, onde raízes contra a tirania de um povo se enlaçaram.

A selva, cúmplice e testemunha, deu abrigo e ressoou os clamores de liberdade dos gritos de um povo sofrido.

O massacre, um eco sombrio, nas folhas um sussurro funesto, onde o chão se abriu em pranto e o sangue verteu-se em solo sedente.

Mas do luto nasce a luta, das cinzas, a fênix ergue e o Alto Alegre, tão ferido, reencontra sua vez e coragem.

Em cada gota de orvalho, em cada flor que se abre, vive a memória daqueles que, mesmo em silente desterro, clamaram por justiça e paz.

Pois, na terra do Alto Alegre, o sol sempre há de brilhar, e os que tombaram por ela em seus ventos vão cantar.      

Zahy teha tenehem pitàg

     No dia 22 de janeiro deste ano, recebi por e-mail um convite que muito me alegrou e honrou: ministrar uma disciplina de literatura br...