O idealista em última estância
está sempre em dívida consigo mesmo. Sua busca incessante por um mundo melhor
encobre uma dívida com sua consciência, mas isso não faz dele um pérfido
ególatra, no máximo, um altruísta em busca de reparação pela sua falta de
doação. É uma espécie de casuísmo, uma procura frenética pela reflexão
travestida no olhar de outrem, um corroborador de suas angústias, um cumplice para
o fim da sentença de culpa. Culpa quando oprime bloqueia a capacidade de
mobilização, quando é um estampido, uma sinalização do caminho errado, é
demonstração de humanidade. Sem algum tipo de culpa nos tornamos monstros, pois
quando não há alteridade e compaixão isso se torna um sintoma de ausência de humanidade.
Quando a humanidade escapa nos tornamos sombras de nós mesmos, espectros de
nossas projeções. O que faz de nos humanos é a nossa imensa capacidade de nos tornamos
assim pelo desejo de assim o sermos. Sem isso, tudo se torna fulgural, espásmico,
fugidio, simulacro, como se a linguagem conotasse o sentido de ser, quando o
signo assume o lugar do significante, sem o significante, ainda assim já sendo o
significado. É como se a linguagem fosse a única redenção para um mundo sem
sentido, e sem sentido, ela passa a significar qualquer coisa, inclusive a inapropriação
de qualquer sentido. A linguagem nesse aspecto nem é necessidade de dizer,
expressar algo, enquanto força de pensamento sem um aporte, nem um instrumento
onde o pensamento deita sua logicidade esclarecendo, através da linguagem,
qualquer possibilidade cognitiva do mundo, e sim, um elemento que, já tendo
sido criação e criatura, voltando a reverberar a capacidade de entendimento de
tudo, passa a simplesmente a existir dentro de uma esfera autoreferenciada, que
mesmo ligado ao pensamento já não depende mais dele, é autômata, tem vida própria,
nem mesmo necessidade de comunicar algo sobre o que é humano. Foi dentro desta
lógica que os sistemas operacionais se tornaram autômatos, independentes da
necessidade inicial, qual seja: a de ser, enquanto expressão da inteligência
humana, extensão dela. O idealista em algum lugar dentro sabe disso, pois que
no fundo ele em alguma instância contribui para um mundo sem sentido quando desleixado de sua condição pletora de mudança, se colocou como um apátrida, um
pária de sua intenção inicial, sobretudo porque sabia que tinha condições de
contribuir para uma ideia melhor de humanidade. Ao não fazer tornou-se um
errante de si mesmo, vagueando pelos mundos exteriores em busca de justificação
para o abandono daquilo que um dia foi sua missão, qual seja: pela linguagem,
sempre ela, ajudar enquanto intentio para a codificação de um mundo inteligível
e melhor. Ao contrário, ao fugir desse caminho, buscou, também pela linguagem, recursos
legitimantes autoreferenciados, uma espécie de signo deslocado da apropriação inicial,
livrando-se da culpa por não ter que prestar contas a si mesmo. Mas aí, começa
a crise de consciência por saber em algum lugar dentro dele mais cedo ou mais
cedo terá que retomar o caminho de volta, sem o qual o exercício frenético de
uma linguagem distante, ainda que seja uma ideia construída de humanidade, uma
idealização, uma utopia, o retira do olimpo, do lugar sacralizado dos que contribuíram
para um mundo melhor. Assim começa a trajetória de todo idealista, uma espécie
de retorno da ilha de Ítaca, sem fuga, com tempestades, sem possibilidade de
abandono do barco. Enquanto isso não fizer, estará sempre em dívida consigo e,
para ele, com os outros, já que não existe um eu sem um outro.
segunda-feira, 15 de junho de 2015
terça-feira, 2 de junho de 2015
O medo como artefato da indústria da violência
Medo. Conjunto de ações e ou circunstâncias
que levam os indivíduos às situações de riscos, de impotência, suscitando
sensações de paúra, de uma momentânea ou duradoura percepção de não controle,
de incapacidade de reação, inconstância e debilidade psicológica.
Violência. Conjunto de ações e ou
circunstâncias que levam os indivíduos a uma percepção e sensação real de
agressão às suas integridades físicas e psicológicas; conjunto de caracteres
que ameaçam o equilíbrio de pessoas em suas reais e costumeiras situações de
bem-estar.
A violência por vezes é dividida, grosso modo, em três características: a física, a psicológica e a simbólica.
A violência por vezes é dividida, grosso modo, em três características: a física, a psicológica e a simbólica.
Entre o medo e a violência existe
um entremeio, visto que por vezes se constitui em simbiose; o medo pode ser
decorrência da violência, assim como a violência é municiada pelo medo ou é
acionada por ela.
A questão é que na
contemporaneidade esses dois elementos estão permeados de ações e estratégias de
ocultamento de práticas políticas, de estratagemas da indústria do armamento,
de grupos classistas que vociferam discursos empreendedores do medo e
alimentadores da violência, de ideologias competitivas que sublimam a
precariedade do estado e conspurcam o favorecimento de classes e setores da
sociedade, da publicidade capitalista que idealiza modelos de sociabilidades excludentes em detrimento de grandes parcelas pobres distantes do consumo,
dentre outras coisas.
A violência contemporânea, que
tem a capacidade de ocultar sua própria estratégia de permanência e sobrevivência,
dirigiu nossos olhares para as novas configurações sobre a violência,
fazendo-nos não enxergar o quanto a existência social é altamente violenta.
Aprendemos a nos acostumar com a pobreza, como se ela não fosse uma
circunstância social e sim um dado da natureza. Aprendemos a admitir a
existência do estado, suas ausências, suas omissões, gerando inclusive atitudes
violentas de indivíduos como se eles fossem os grandes responsáveis pelos desequilíbrios
sociais e não o estado.
Acostumamo-nos a apreciar os noticiários
sensacionalistas de jornais à procura de sangue, por vezes esbravejando que “bandido
bom é bandido morto”. Também estamos cauterizados com ações abruptas dos
aparelhos repressores do estado, como a polícia, em situações de reivindicação
social sob a alegação de perturbação social.
A publicidade, com viés machista
e sexista, abusa do uso sensual das mulheres tratando-os como objetos de desejo
e consumo. Sem esquecer do caráter desejante do fetiche da mercadoria
catapultando as frustrações coletivas como impulso ao mercado, ou seja, ir às compras
“garante empoderamento àqueles que podem
usufruir do poder de ir às lojas”, sublimando as frustrações, já transformadas
em fantasia.
Também são formas de violência: o
discurso homofóbico, racista e preconceituoso, a intolerância religiosa, a
corrupção do estado, das empresas e dos partidos políticos, a péssima distribuição
de renda, o péssimo retorno social do que se paga de imposto, o assédio sexual,
em qualquer esfera, o assédio psicológico, o caráter ideológico da imprensa ocultando os
interesses partidários e empresariais, o aparelhamento do judiciário e suas ações
ultra corporativistas, as ofensas nas redes sociais virtuais, a fome, a
miséria, a usurpação de terras indígenas, seu confisco e apropriação, a
legislação contra terras quilombolas e o conjunto quase infindável de ações.
Então, por que a violência
física, aquela que se deita sua ação em assaltos, mortes, tiroteios, facadas,
roubos, etc, chamam mais a atenção levando paúra aos moradores brasileiros?
Antes de qualquer coisa, porque de fato a integridade física é a último espaço
de resguardo da condição ôntica do indivíduo. Segundo, porque os dados da violência no
Brasil se assemelham aos de uma guerra, sem estarmos em guerra com outra nação,
a não ser a interna. No entanto, existe uma profunda correlação entre os dados
estatísticos, a forma como são tratados, a exploração cultural desses dados e a
insurgência de uma indústria da violência.
A indústria da violência se nutre
do medo perpetuado cotidianamente no Brasil. Ela se alimenta no aumento de
pedidos e vendas de carros blindados, de condomínios fechados, de grades de
segurança, de câmaras de vigilância, de seguranças privados, de coletes a prova
de balas, do aumento do número de armas de fogo, do panopticismo das grandes
cidades vigiando e controlando toda gente, da instauração do direito do estado
de invadir a privacidade dos seus cidadãos, da ideia de considerar possíveis inimigos
do estado, da campanha pela redução da maioridade penal ocultando os interesses
de setores do corpo burocrático do estado a serviço do capital, em construção
de presídios de segurança máxima privatizados, consequentemente, no aumento da força
de trabalho em decorrência também do aumento da população carcerária.
Qual é a maior população carcerária
do mundo? Os USA. País rico, industrializado, insigne defensor da pena de
morte, ainda que se constate que quem mais caminha pelos corredores da morte são
pobres e negros. Em outras palavras, não é de se considerar que a violência não
existe, e sim, como ela é tratada e alimentada pelo capital e pelo estado. O maior
beneficiário da existência da violência é a indústria da violência, a mais
rentável do mundo.
Por que a violência, ainda que
alimentada pela indústria e pelo capital, é estrategicamente combatida pela política
de bem-estar social, amparada pelo próprio capital? Em parte, porque a violência
afronta o princípio liberal de bem-estar burguês, ou seja, é uma afronta as
conquistas da livre concorrência. Quer dizer, com uma mão a indústria da
violência fatura milhões com a venda de produtos antiviolência, com a outra,
reclama da perda do gozo adquirido pelos cidadãos que não podem desfrutar de
tais conquistas por conta do medo de serem atacados.
Em tempos de crise econômica
afloram discursos e práticas pautadas na intolerância e no ódio social. O medo
sempre foi o combustível para discursos inflamados e intervenção autoritária do
estado. Exemplos: ascensão de Napoleão Bonaparte, ascensão do nazi-fascismo na Europa, combate as plantações de cânhamo nos USA e insurgência de um discurso
demonizador da Canabis e seus usuários, ainda que no século XIX o Sul dos USA
em parte se pautou em tal produção, intervenções militares na América Latina para
combate ao comunismo, Guerra do Vietnã sob o mesmo pretexto.
O contrário também é verdadeiro,
uso da violência para garantia da livre concorrência e implementação de uma sociedade
de mercado, casos de New York no século XIX, tomada por gangues que aterrorizavam
a periferia da cidade e nas décadas de 70 e 80 do século XX com a política de
pacificação das ruas da cidade e “limpeza” da violência. Contraditório, vez que
a freeway rasgou o Bronx desalojando milhares de pessoas gerando mais violência.
Até a indústria cinematográfica
se nutre da violência constituindo a estética da violência, quando aquilo que
foge ao um padrão burguês de normalidade, de relação conjugal, de família, até
mesmo do american way of life passa a
ser consumido enquanto estética.
A estética da violência difere um
pouco da violência enquanto estética, casos da exploração desse repertório não
em função da arte, como no cinema, mas sim na consumação em larga escala de uma
estética encharcada de sangue, como nos jornais sensacionalistas. Neste caso
não prevalece uma estética a serviço da arte, mas da publicidade jornalística.
Um terceiro vetor é da ética da
violência, sobejamente presente nos ritos de passagem da puberdade para a fase
adulta, sobretudo nos homens, na prática de dominação masculina sobre a condição
sexual das mulheres, no contentamento no porte de arma e na ideia de uso indevido
dela todas as vezes que a moral masculina for alvejada, atingida, ferida, aviltada.
No Brasil estamos assistindo a uma
esquizofrenia coletiva por conta da escalada da violência e de elementos subjacentes
na cultura violenta da sociedade brasileira, psicanaliticamente ocultada pela
teoria da cordialidade. Uma sociedade historicamente escravocrata, a penúltima
a abolir a escravidão nas Américas, acostumou-se em foi gestada na violência
cotidiana da escravidão, depois acostumada com o surgimento das favelas, das transferências
migratórias entre as regiões, do êxodo rural e da ação opressiva do estado,
optou por se auto proclamar cordial e imersa numa democracia racial. Agora, soçobram
discursos pedindo a volta da ditadura militar, pela redução da maioridade penal,
contra os direitos humanos sob o argumento de que só defendem bandidos, pela
anulação do plebiscito que retirou dos brasileiros o direito de portar armas,
pela necessidade de construção de mais presídios, mais ação do estado, mais
intervenção militar, mais confronto, mais polícia, mais tudo.
É um ciclo vicioso: o estado não
cumpre seu papel, fica à mercê do grande capital que pauta suas políticas públicas,
que se nutre da violência vendendo seus produtos e afirmando a existência do próprio
estado, ainda que ineficiente, sobretudo por ser caudatário, que pressiona o estado
para debelar a violência porque suas conquistas são atingidas, que cria uma
comoção e um discurso social alicerçado no medo, que volta a retroalimentar a
indústria da violência.
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