Para Marcelo Cheche, Anna Casella, Frederico Lazzari, Alan
Kardec, Helidacy Muniz e para o povo de Trieste.
Esta é uma carta. Diferente. É uma carta aberta. Não é para
falar de minhas aventuras pela Europa, mais precisamente pela Itália, e sim, da
questão da sociedade decetiva, um conceito de Gilles Lipovetsky para designar a
relação entre consumo e frustração coletiva, sobretudo em países em crise como
Portugal, Espanha, Itália e Grécia.
Ontem pela manhã, ministrei em Brescia a primeira das três
conferências que farei na Itália (Brescia, Trieste e Gênova) sobre o
crescimento econômico brasileiro, para ser mais preciso a relação entre
crescimento econômico e contradições sociais no meu país. Os italianos
demonstraram muito interesse sobre o que vem acontecendo com o “gigante
latino-americano”.
Depois da conferência, eu e minha amiga Anna Casella, antropóloga,
Professora da Universidade Católica de Brescia, pegamos um trem até Trieste,
extremo leste da Itália, divisa com a Eslovênia, cuja história é simplesmente
fascinante.
Trieste pertencia ao império austro-húngaro, depois passou
a ser italiana no final da Primeira Guerra Mundial (1918), durante a Segunda
Guerra se tornou independente e só voltou ao domínio italiano dez
anos depois do grande conflito. Cidade à beira do majestoso e imponente Mar Adriático,
possui uma arquitetura austríaca, o famoso castelo de Miramar onde viveu
Maximiliano antes de ir para o México, uma culinária peculiar, ruínas romanas,
características multiculturais e, nela viveram simplesmente James Joyce,
Umberto Saba e Italo Svevo, grandes escritores, romancistas, apaixonados pela
cidade.
Ela guarda outra peculiaridade: é possivelmente a cidade
mais fria da Itália e por lá costuma passar um vento por nome Bora, absurdamente forte, frio,
gelado na verdade. Tive o “prazer” de ser apresentado a ele, na verdade
tratava-se do “Borino”, filho ilustre.
Fomos recebidos pelo Prof. Francesco Lazarri, sociólogo da
Universidade de Triste, que já morou no Brasil e nos apresentou a cidade. Foi
uma noite agradabilíssima.
Pela manhã, ministrei a conferência novamente sobre o
crescimento econômico brasileiro e o paralelo com a crise econômica por que
passa a Itália. E aí a questão da sociedade decetiva, ou da deceção entrou em
questão.
No que constitui a sociedade da deceção? No mal-estar
existencial, no vazio ultramoderno. E por quê? A moda, o hedonismo, o modismo
tecnológico e afetivo, o individualismo triunfante passaram a ser responsáveis
pela nossa felicidade.
Até a democracia virou objeto de consumo. Quanto maior for
a probabilidade de aquisição material, maior será a insatisfação ao ver o que o
outro tem o que nós não temos. Por contradição, a aquisição material não
aumenta a felicidade, e sim, a frustração.
Até mesmo as relações afetivas foram tomadas pelo princípio
decetivo, procuramos quantidade de relacionamentos, não qualidade como
singularização da subjetividade em meio a uma sociedade de anônimos e
cambiáveis.
Essa crise econômica europeia revela os limites do consumo como
meneio de valorização do prazer e de busca pela felicidade. O problema é que o
capitalismo é cíclico, portanto, a bola da vez é a América Latina.
Foi aí que o debate esquentou e a emoção tomou conta do
auditório. Fiz minha crítica ao modelo de crescimento econômico brasileiro.
Estamos fazendo uma reforma econômica, mas não a social. Se compararmos os
dados entre crescimento econômico e índices sociais no Brasil, veremos que as
coisas andam muito lentas. O brasileiro se pragmatizou e se inseriu na lógica
do consumo; bom por um lado, péssimo por outro.
A emoção ficou por conta dos limites e impasses que o
consumo implica, quer no Brasil, quer em qualquer lugar do mundo. Será que é
esse modelo de hiperindividualismo, trazido pelos ventos do hiperconsumo, o que
o mundo precisa? Penso que não.
O debate foi conduzido para a questão da solidariedade
entre os povos, pela integração cultural, pelo fim das barreiras econômicas e
sociais, pela justiça social e igualdade.
Terminei olhando para o Mar Adriático, me enchendo de
esperança, nessa cidade linda, fantástica, exuberante, cuja história é marcada
por guerras e conflitos, deixada como marcas por suas ruas e vielas em
homenagem aos sujeitos históricos combalidos historicamente ali. Por toda a
cidade existem nomes de pessoas que lutaram por Trieste.
Ali está enterrado o arqueólogo Winkelmann, por ela
passaram Joyce, Saba e Svevo, por ela também passa o Bora, cuja força não é
capaz de destruir a cidade, muito menos a esperança de superação desta ou de
qualquer crise.
Obrigado Trieste, deste-me uma das minhas melhores
experiências da minha vida. Nunca vou esquecer!!!! Estou absurdamente feliz.
De lá, eu e Casella tomamos um trem até Veneza, La Sereníssima, e vimos o que o
homem é capaz de fazer com sua capacidade de superação e criação.
Ps: Marcelo, Alan e Lila, dessa vez eu não paguei multa por
tomar o vagão errado indo para Veneza. Risos...
Marcelo, obrigado por tudo, sem você essa viagem não
existiria.
Monica, o jornal de Triste se chama Il Piccollo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário