Por Tonny Araujo
Um sangue
espesso mistura-se com a água do esgoto, propiciando um líquido ironicamente
homogêneo, enquanto aos berros um garoto é espancado por outros dois em frente
ao Fine Arts Museum. Aquém desta situação - que aos olhos de algum nauseabundo
religioso, ou mesmo das famílias tradicionais e escravas dos costumes mantidos
intactos até as primeiras décadas do segundo milênio era inconcebível - podia
se ver os olhares atenciosos de Harry e Suzy Smoother. O casal se mantinha
atônito com os preços elevadíssimos do supermercado, se pudessem, consultariam
suas Caixas cara a cara com o dono do estabelecimento. Porém, se sentiriam
sujos de Raiva Ideal. Tomaram o caminho de volta para buscar mais dinheiro.
-Ei, meu
amor que dia é hoje? Acho que é meu aniversário. Exclamava Harry com um sorriso
sacana no rosto.
-Engraçadinho!
Sempre com essa história. Pois, fique sabendo que não vou te dar
mais presente algum. Argumentava Suzy enquanto cobria carinhosamente o
rosto de Harry com as duas mãos.
Os dois
viviam em Fort Point em uma casa relativamente confortável, e conforto em 2085
significava ter um teto, por mais que houvesse neste muitos buracos, logo
goteiras irritantes. É que depois da Terceira Guerra Mundial a tecnologia
avançara bastante, porém a propriedade física e privada já não era a principal
preocupação do Estado, tampouco dos órgãos públicos.
Muito
acomodados em sua cama de casal os recém-casados assistiam o noticiário da
tarde no mais novo Computador de Lazer de Suzy.
Boa
tarde. Hoje é dia de reavaliação. Você que adquiriu seu aparelho há mais de dez
anos, deve se encaminhar aos postos credenciados pelo governo para fazer um
check-up. Os postos possuem o símbolo do Punho Fechado para que os cidadãos não
corram o risco de serem assaltados pelos Clandestinos. Hoje, também é dia de
diversão. O Cinema...
-Não posso
acreditar meu amor, vão passar aqueles desenhos animados que você adora e
alguns filmes daquele diretor... Tarantigo, não é? Indagava Suzy com seu seco
sarcasmo.
-Nós somos o
único casal nesse mundo com bom humor? É Tarantino, minha pequena. E, obrigado
por me avisar, vou... Fez uma pausa para pensar, e prosseguiu: Vou dar uma
olhada nos preços e, se estiverem razoáveis, volto para te buscar. Está bem?
-Trato
feito! Não demore, então.
-Beijos!
Beijos! Dizia Harry daquela forma boba que apenas os apaixonados presumem
entender.
Enquanto
tomava o táxi que o levaria para perto do NostalgicMovieandEntertaiment, Harry
dividia sua atenção pelo cheiro agradável de novo do veículo, os buracos
restantes nas ruas e os grafites nas paredes feitos pelas gangs de Chinatown:
suas inspirações ficavam em alta toda vez que encontravam um cartaz de
propaganda política do presidente Stuart ILL. A Raiva Ideal só podia se
transformar em arte subversiva, visto que não podiam, segundo a nova
legislação, liberá-la de forma física.
-Cabrones!
O motorista sussurrou como se estivesse conversando consigo mesmo. Demonstrando
a fragilidade de seu estado contido, logo se exaltou:
-Un
montón de vagos, compadre! Gritava o taxista, deixando uma baba
percorrer-lhe a barba.
Sem jeito,
Harry fez sinal de positivo com a cabeça e apontou o lugar no qual gostaria de
ficar. Pagou a corrida e saiu apressadamente, afim de não se atrasar para a
primeira sessão.
Depois de
comprar seu bilhete, já havia se passado exatos cinco minutos desde o começo de
uma série de desenhos animados clássicos que sempre antecedia os filmes de
época, uma estratégia dos Idealizadores para unir mais de um público no mesmo
espaço e assim lucrar bastante. Harry ajustou-se desajeitadamente na poltrona,
pôs seu refrigerante do lado direito e um enorme saco de pipoca entre suas
pernas – uma mania que datava sua mais tenra infância – lançando um olhar
penetrante e hipnotizado direto na tela.
"É a
visão mais esplêndida que já vi!", "esse ratinho é um filho da mãe
mesmo, vai jogar a bomba em cima do gato gordo", "nossa! Como o
cinema está cheio hoje"... Tais pensamentos passavam pela mente de Harry,
e desapareciam rapidamente por causa de sua paixão pelo cinema.
Gargalhadas
enchiam o espaço toda vez que uma cena engraçada era apresentada, e no meio de
um desses momentos de êxtase Harry virou a cabeça para o lado esquerdo da sala.
Achou no mínimo curiosa a cena de um garoto muito jovem chorando ao olhar a
mesma cena que fizera todos chorarem, mas de... Alegria, talvez.
Sua atenção
foi roubada pela sensação de frio que o refrigerante derramado em suas calças
suscitou. Neste momento, levantou a cabeça e olhou um homem alto e mal encarado
gritando. O idiota percebeu que Harry estava em estado ponderante e resolveu
jogar nele o restante da bebida.
- Ei, por
que fez isso, babaca? Indagou Harry tomado de fúria.
- Sai da
minha frente, bundão! Não está vendo que quero passar? Saia! Ordenou o
estranho.
Harry não
queria acionar sua Caixa de Raiva, porém pensou bem, afinal de contas se não o
fizesse, não só ele, mas toda a sociedade poderia pagar com sua covardia.
Pôs seu dedo
suado na máquina e apertou o botão vermelho localizado na parte traseira do
aparelho. A invenção recolhia todos os dados da situação: as características
dos indivíduos envolvidos no conflito, suas razões, se a raiva era, ou não uma
Raiva Real, para somente depois dar o seu veredito. Uma tela mostrava o ícone
de um cadeado abrindo, algumas máquinas, dependendo de quanto dinheiro se tinha
até possuíam uma gravação de áudio para eventos banais, a máquina de Harry,
porém era um tanto rústica. Coube-lhe ler atentamente as instruções:
"O
indivíduo de nome TravisFuzzy, código 025568, barramento 002, segundo o artigo
129, está perturbando e atrapalhando um momento de lazer e tempo livre, além de
agredir fisica e verbalmente o indivíduo Harry Smoother, código 852694,
barramento 512, sua penalidade..." Um sorriso começava a estampar o
rosto de Harry. Então, o veredito foi impresso.
"Dois
socos na região nasal e um chute na região estomacal."
Harry
levantou-se rapidamente e deferiu dois socos no rosto de seu alvo, aproveitou
enquanto o mal educado se apoiava nas outras poltronas e completou com um chute
em seu estômago. O indivíduo caiu se contorcendo ao chão. Todos continuavam
assistindo tranquilos o desenho animado. O encrenqueiro nada podia fazer, pois
as prisões ainda existiam e eram destinadas aos Clandestinos, pessoas que
viviam de furtos, de alucinógenos, e o pior de tudo, utilizavam a Caixa para
fins improdutivos.
Feliz por
seus direitos cumpridos, Harry sentou-se cuidadosamente na poltrona. O filme já
ia começar.
Horas
depois, já na saída do cinema, Harry encontrou a mãe da criança que estava
chorando, percebeu que ela falava em linguagem de sinais com o filho, então
entendeu porque o menino chorava tanto. A verdade é que, como não podia ouvir
os sons envolventes dos desenhos, as cenas de violência lhes eram brutais,
tristes e irracionais. Porém, Harry não havia porquê se emocionar com tal
acontecimento.
Ele era um
daqueles admiradores dos hábitos dos antigos homens, por terem criado em seus
objetos de consumo uma saída para suas mentes doentias, por isso não perdia a
oportunidade de tentar entender como o mundo funcionava naquela época. O cinema
era uma das criações que mais o intrigava. Chegava até a rir internamente da
capacidade daqueles homens de simular neles mesmos sentimentos dos quais não
tinham coragem de assumir, ou não lhes era permitido em meio à sociedade. Como
um pecado de omissão. A raiva era um deles. Felizmente, para ele a civilização
estava no caminho certo.
Porém, nem
todos concordavam com a nova forma de Estado que surgira depois da terrível
guerra entre Estados Unidos e a Coréia do Norte. A policial Eve Jones era um
caso curioso em meio ao sistema vigente. Há 10 anos havia se casado com o,
então amor de sua vida, o chefe de polícia Bill Suffer com quem tivera dois
filhos e desconfiava estar grávida do terceiro. Eve estava feliz com o
casamento, até descobrir no marido uma tendência à agressividade descomunal.
Esse detalhe não seria ruim dado o momento histórico, porém todas as vezes que
Eve acionava sua Caixa de Raiva, os enquadramentos adicionavam mais e mais
irregularidades ao comportamento de Bill, e proporcionalmente recomendava que
Eve tomasse as devidas providências, sendo estas completamente ignoradas.
"Máquina
imbecil, você não sabe coisa alguma sobre sentimentos", "esse
Presidente é realmente um monstro por ter legalizado isto!", "como
poderia machucar o amor da minha vida?". Eram os pensamentos diários de
Eve todas as vezes que olhava para sua Caixa, localizada no lado direito de sua
cintura. "Meu Deus, o que vou..."
- Mamãe, que
marcas são essas em seu braço? Perguntava seu filho mais novo, John Suffer de
oito anos, interrompendo um momento de conflito interno da mãe.
- É só um
sinal, filhote! Respondia constrangida.
- Já está
tarde, John! É hora de ir para a caminha, mocinho. Amanhã você tem escola,
lembra?
- Ah! Essa
não. E saiu correndo pela escada, sorrindo. Eve, então entrava propositalmente
na brincadeira, perseguindo-o até seu quarto, deixando escapar um choro tímido.
Eve desejava
que suas lágrimas fossem apenas de tristeza, ou de felicidade pelo menos uma
vez, porque pensava não existir algo mais destrutivo do que cair em prantos sem
saber exatamente a razão pela qual elas molhavam seu rosto. Como um sentimento
inominável.
Cansada,
depois de um dia inteiro de trabalho deitou-se na intenção de esperar Bill, de
repente até fazer amor do jeito que ele tanto gostava e contar-lhe sobre sua
possível gravidez. Tirou sua saia cinza-grafite de tecido brocado curta,
guardou seu blazer preto e pôs uma leve camisola de seda. Um sono profundo
apoderou-se dela.
Horas
depois, Bill bate a porta.
Roupas
surradas, e um odor insuportável se manifestavam através de seu corpo. Seu
hálito denunciava mais uma noite de orgias e bebedeira no Hot Hell, um
bordel de quinta categoria localizado na Charles Street, frequentado
pelos mais prestigiados homens de bem. Bill costumava ser assíduo, no entanto,
antes para conseguir contatos de pessoas influentes. Seu foco mudou
completamente depois de dar uma boa olhada nas moçoilas da casa, principal
produto de consumo.
- Abra essa
porta, Eve! Abra! Batia violentamente o bêbado, imaginando ser aquela
superfície de madeira o rosto de sua esposa.
- Abra vaca
maldita!
Eve deu um
pulo ao ouvir as batidas do marido à porta. Cobriu-se e desceu tão rápido que
quase torce seu pé esquerdo na escada.
Mal abrira a
porta e Bill lançou as duas mãos sem seu pescoço.
- Nã... na..
nã-o, a-am... Amor! Amo-or-or? Implorava Eve desesperada.
- Cala sua
boca, odeio sua voz. Jogou-a em cima de um cômodo de madeira, fazendo com que
ela machucasse o rosto.
- Durma no
sofá, não quero dividir a cama com uma mulher tão feia quanto você. Queria uma
daquelas gostosas... Gostosas.
Eve
esfregava seu rosto ao chão como se ali pudesse encontrar alguma resposta.
Olhava para o teto como se Deus estivesse ali e aquele fosse seu Céu
particular. Infelizmente não obteve nenhuma resposta. A ferida em sua
face não significava nada perto do horrível sentimento que aquelas palavras
suscitaram em seu orgulho. Então, como em algum tipo de oração, acionou o botão
vermelho da máquina.
"O
indivíduo de nome Bill Suffer, código 212352, barramento 884, segundo os
artigos 124, 125 e 139, agrediu o indivíduo EveSuffer, código 789654,
barramento 566, impediu o nascimento de um ser sem o consentimento da mãe, e a
difamou inescrupulosamente, a pena para este crime: Amputar-lhe o..."
Eve jogou a
máquina para longe, evitando ler o veredito. As folhas não paravam de ser
impressas pela Caixa de Raiva, que enfeitava o chão com a frase em letras
garrafais: AMPUTAR-LHE O ORGÃO SEXUAL.
O que seria
uma noite de entrega sem restrições ao marido, se tornou o verdadeiro inferno.
A policial desabou em lágrimas sinceras ao ver uma marca de sangue por entre
suas pernas, e mal conseguia pensar na ironia da situação, pois aquele líquido
carmesim geralmente associado à vida, não passava da prova mais cruel de
existência da dor e da morte.
A Caixa de
Raiva fora desenvolvida em um momento em que os seres humanos estavam cansados
das guerras que minavam a vida de milhares de pessoas fossem elas próximas, ou
não. O presidente Stuart ILL, um ex-cientista e também psiquiatra, antes mesmo
de ser eleito, observava que as nações envolvidas em todas as guerras da
história nunca determinavam um ataque antes de munir umas pelas outras, certa
quantidade de ódio, porém um ódio que somente era possível por causa da inveja,
da cobiça por algo que lhes era interessante, e que as conectava. Foi, então
que percebeu algo espantoso: O ser humano observou ele, possui tanto a
capacidade de amar, como odiar de forma inerente, e isso é óbvio.
A novidade é
que o ódio, assim como o amor também nasce de uma necessidade de
compartilhamento. Tal como o amor, se esse ódio não for liberado de forma
proporcional e legítima pelo próprio indivíduo, este enquanto engrenagem do bom
funcionamento, não apenas da ordem, mas da própria força produtiva que mantém a
sociedade, desfaleceria. A raiva não nasce do caráter instintivo do homem, mas
racional e devia ser aplicada legalmente através de um aparelho que educasse os
cidadãos a serem eles mesmos seus próprios juízes e réus. Ao aparecer nos
programas políticos com a promessa do novo invento e de suas propostas de
reformulação legal, a maioria tomada pelo patriotismo, e desejo ardente pelas
benesses da "autonomia" fez questão de votar nele e influenciar a
opinião pública para o mesmo.
Com a
vitória de ILL, como em uma rápida piscadela, os aparelhos estavam sendo
testados em laboratórios, patrocinados por empresas de softwares, e por
fim vendidos.
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