quarta-feira, 14 de agosto de 2013

Caixa de Raiva. PARTE I: Life is a tragedy.

Por Tonny Araujo

Um sangue espesso mistura-se com a água do esgoto, propiciando um líquido ironicamente homogêneo, enquanto aos berros um garoto é espancado por outros dois em frente ao Fine Arts Museum. Aquém desta situação - que aos olhos de algum nauseabundo religioso, ou mesmo das famílias tradicionais e escravas dos costumes mantidos intactos até as primeiras décadas do segundo milênio era inconcebível - podia se ver os olhares atenciosos de Harry e Suzy Smoother. O casal se mantinha atônito com os preços elevadíssimos do supermercado, se pudessem, consultariam suas Caixas cara a cara com o dono do estabelecimento. Porém, se sentiriam sujos de Raiva Ideal. Tomaram o caminho de volta para buscar mais dinheiro.

-Ei, meu amor que dia é hoje? Acho que é meu aniversário. Exclamava Harry com um sorriso sacana no rosto.

-Engraçadinho! Sempre com essa história. Pois, fique sabendo que não vou te dar mais presente algum. Argumentava Suzy enquanto cobria carinhosamente o rosto de Harry com as duas mãos.

Os dois viviam em Fort Point em uma casa relativamente confortável, e conforto em 2085 significava ter um teto, por mais que houvesse neste muitos buracos, logo goteiras irritantes. É que depois da Terceira Guerra Mundial a tecnologia avançara bastante, porém a propriedade física e privada já não era a principal preocupação do Estado, tampouco dos órgãos públicos.

Muito acomodados em sua cama de casal os recém-casados assistiam o noticiário da tarde no mais novo Computador de Lazer de Suzy.

Boa tarde. Hoje é dia de reavaliação. Você que adquiriu seu aparelho há mais de dez anos, deve se encaminhar aos postos credenciados pelo governo para fazer um check-up. Os postos possuem o símbolo do Punho Fechado para que os cidadãos não corram o risco de serem assaltados pelos Clandestinos. Hoje, também é dia de diversão. O Cinema...

-Não posso acreditar meu amor, vão passar aqueles desenhos animados que você adora e alguns filmes daquele diretor... Tarantigo, não é? Indagava Suzy com seu seco sarcasmo.

-Nós somos o único casal nesse mundo com bom humor? É Tarantino, minha pequena. E, obrigado por me avisar, vou... Fez uma pausa para pensar, e prosseguiu: Vou dar uma olhada nos preços e, se estiverem razoáveis, volto para te buscar. Está bem?

-Trato feito! Não demore, então.

-Beijos! Beijos! Dizia Harry daquela forma boba que apenas os apaixonados presumem entender.

Enquanto tomava o táxi que o levaria para perto do NostalgicMovieandEntertaiment, Harry dividia sua atenção pelo cheiro agradável de novo do veículo, os buracos restantes nas ruas e os grafites nas paredes feitos pelas gangs de Chinatown: suas inspirações ficavam em alta toda vez que encontravam um cartaz de propaganda política do presidente Stuart ILL. A Raiva Ideal só podia se transformar em arte subversiva, visto que não podiam, segundo a nova legislação, liberá-la de forma física.

-Cabrones! O motorista sussurrou como se estivesse conversando consigo mesmo. Demonstrando a fragilidade de seu estado contido, logo se exaltou:
-Un montón de vagos, compadre! Gritava o taxista, deixando uma baba percorrer-lhe a barba.

Sem jeito, Harry fez sinal de positivo com a cabeça e apontou o lugar no qual gostaria de ficar. Pagou a corrida e saiu apressadamente, afim de não se atrasar para a primeira sessão.

Depois de comprar seu bilhete, já havia se passado exatos cinco minutos desde o começo de uma série de desenhos animados clássicos que sempre antecedia os filmes de época, uma estratégia dos Idealizadores para unir mais de um público no mesmo espaço e assim lucrar bastante. Harry ajustou-se desajeitadamente na poltrona, pôs seu refrigerante do lado direito e um enorme saco de pipoca entre suas pernas – uma mania que datava sua mais tenra infância – lançando um olhar penetrante e hipnotizado direto na tela.

"É a visão mais esplêndida que já vi!", "esse ratinho é um filho da mãe mesmo, vai jogar a bomba em cima do gato gordo", "nossa! Como o cinema está cheio hoje"... Tais pensamentos passavam pela mente de Harry, e desapareciam rapidamente por causa de sua paixão pelo cinema.

Gargalhadas enchiam o espaço toda vez que uma cena engraçada era apresentada, e no meio de um desses momentos de êxtase Harry virou a cabeça para o lado esquerdo da sala. Achou no mínimo curiosa a cena de um garoto muito jovem chorando ao olhar a mesma cena que fizera todos chorarem, mas de... Alegria, talvez.

Sua atenção foi roubada pela sensação de frio que o refrigerante derramado em suas calças suscitou. Neste momento, levantou a cabeça e olhou um homem alto e mal encarado gritando. O idiota percebeu que Harry estava em estado ponderante e resolveu jogar nele o restante da bebida.

- Ei, por que fez isso, babaca? Indagou Harry tomado de fúria.

- Sai da minha frente, bundão! Não está vendo que quero passar? Saia! Ordenou o estranho.

Harry não queria acionar sua Caixa de Raiva, porém pensou bem, afinal de contas se não o fizesse, não só ele, mas toda a sociedade poderia pagar com sua covardia.

Pôs seu dedo suado na máquina e apertou o botão vermelho localizado na parte traseira do aparelho. A invenção recolhia todos os dados da situação: as características dos indivíduos envolvidos no conflito, suas razões, se a raiva era, ou não uma Raiva Real, para somente depois dar o seu veredito. Uma tela mostrava o ícone de um cadeado abrindo, algumas máquinas, dependendo de quanto dinheiro se tinha até possuíam uma gravação de áudio para eventos banais, a máquina de Harry, porém era um tanto rústica. Coube-lhe ler atentamente as instruções:
"O indivíduo de nome TravisFuzzy, código 025568, barramento 002, segundo o artigo 129, está perturbando e atrapalhando um momento de lazer e tempo livre, além de agredir fisica e verbalmente o indivíduo Harry Smoother, código 852694, barramento 512, sua penalidade..."  Um sorriso começava a estampar o rosto de Harry. Então, o veredito foi impresso.
"Dois socos na região nasal e um chute na região estomacal."

Harry levantou-se rapidamente e deferiu dois socos no rosto de seu alvo, aproveitou enquanto o mal educado se apoiava nas outras poltronas e completou com um chute em seu estômago. O indivíduo caiu se contorcendo ao chão. Todos continuavam assistindo tranquilos o desenho animado. O encrenqueiro nada podia fazer, pois as prisões ainda existiam e eram destinadas aos Clandestinos, pessoas que viviam de furtos, de alucinógenos, e o pior de tudo, utilizavam a Caixa para fins improdutivos.

Feliz por seus direitos cumpridos, Harry sentou-se cuidadosamente na poltrona. O filme já ia começar.

Horas depois, já na saída do cinema, Harry encontrou a mãe da criança que estava chorando, percebeu que ela falava em linguagem de sinais com o filho, então entendeu porque o menino chorava tanto. A verdade é que, como não podia ouvir os sons envolventes dos desenhos, as cenas de violência lhes eram brutais, tristes e irracionais. Porém, Harry não havia porquê se emocionar com tal acontecimento.

Ele era um daqueles admiradores dos hábitos dos antigos homens, por terem criado em seus objetos de consumo uma saída para suas mentes doentias, por isso não perdia a oportunidade de tentar entender como o mundo funcionava naquela época. O cinema era uma das criações que mais o intrigava. Chegava até a rir internamente da capacidade daqueles homens de simular neles mesmos sentimentos dos quais não tinham coragem de assumir, ou não lhes era permitido em meio à sociedade. Como um pecado de omissão. A raiva era um deles. Felizmente, para ele a civilização estava no caminho certo.

Porém, nem todos concordavam com a nova forma de Estado que surgira depois da terrível guerra entre Estados Unidos e a Coréia do Norte. A policial Eve Jones era um caso curioso em meio ao sistema vigente. Há 10 anos havia se casado com o, então amor de sua vida, o chefe de polícia Bill Suffer com quem tivera dois filhos e desconfiava estar grávida do terceiro. Eve estava feliz com o casamento, até descobrir no marido uma tendência à agressividade descomunal. Esse detalhe não seria ruim dado o momento histórico, porém todas as vezes que Eve acionava sua Caixa de Raiva, os enquadramentos adicionavam mais e mais irregularidades ao comportamento de Bill, e proporcionalmente recomendava que Eve tomasse as devidas providências, sendo estas completamente ignoradas.

 "Máquina imbecil, você não sabe coisa alguma sobre sentimentos", "esse Presidente é realmente um monstro por ter legalizado isto!", "como poderia machucar o amor da minha vida?". Eram os pensamentos diários de Eve todas as vezes que olhava para sua Caixa, localizada no lado direito de sua cintura. "Meu Deus, o que vou..."

- Mamãe, que marcas são essas em seu braço? Perguntava seu filho mais novo, John Suffer de oito anos, interrompendo um momento de conflito interno da mãe.

- É só um sinal, filhote! Respondia constrangida.

- Já está tarde, John! É hora de ir para a caminha, mocinho. Amanhã você tem escola, lembra?

- Ah! Essa não. E saiu correndo pela escada, sorrindo. Eve, então entrava propositalmente na brincadeira, perseguindo-o até seu quarto, deixando escapar um choro tímido.

Eve desejava que suas lágrimas fossem apenas de tristeza, ou de felicidade pelo menos uma vez, porque pensava não existir algo mais destrutivo do que cair em prantos sem saber exatamente a razão pela qual elas molhavam seu rosto. Como um sentimento inominável.

Cansada, depois de um dia inteiro de trabalho deitou-se na intenção de esperar Bill, de repente até fazer amor do jeito que ele tanto gostava e contar-lhe sobre sua possível gravidez. Tirou sua saia cinza-grafite de tecido brocado curta, guardou seu blazer preto e pôs uma leve camisola de seda. Um sono profundo apoderou-se dela.

Horas depois, Bill bate a porta.

Roupas surradas, e um odor insuportável se manifestavam através de seu corpo. Seu hálito denunciava mais uma noite de orgias e bebedeira no Hot Hell, um bordel de quinta categoria localizado na Charles Street, frequentado pelos mais prestigiados homens de bem. Bill costumava ser assíduo, no entanto, antes para conseguir contatos de pessoas influentes. Seu foco mudou completamente depois de dar uma boa olhada nas moçoilas da casa, principal produto de consumo.

- Abra essa porta, Eve! Abra! Batia violentamente o bêbado, imaginando ser aquela superfície de madeira o rosto de sua esposa.

- Abra vaca maldita!

Eve deu um pulo ao ouvir as batidas do marido à porta. Cobriu-se e desceu tão rápido que quase torce seu pé esquerdo na escada.

Mal abrira a porta e Bill lançou as duas mãos sem seu pescoço.

- Nã... na.. nã-o, a-am... Amor! Amo-or-or? Implorava Eve desesperada.

- Cala sua boca, odeio sua voz. Jogou-a em cima de um cômodo de madeira, fazendo com que ela machucasse o rosto.

- Durma no sofá, não quero dividir a cama com uma mulher tão feia quanto você. Queria uma daquelas gostosas... Gostosas.

Eve esfregava seu rosto ao chão como se ali pudesse encontrar alguma resposta. Olhava para o teto como se Deus estivesse ali e aquele fosse seu Céu particular. Infelizmente não obteve nenhuma resposta.  A ferida em sua face não significava nada perto do horrível sentimento que aquelas palavras suscitaram em seu orgulho. Então, como em algum tipo de oração, acionou o botão vermelho da máquina.

"O indivíduo de nome Bill Suffer, código 212352, barramento 884, segundo os artigos 124, 125 e 139, agrediu o indivíduo EveSuffer, código 789654, barramento 566, impediu o nascimento de um ser sem o consentimento da mãe, e a difamou inescrupulosamente, a pena para este crime: Amputar-lhe o..."

Eve jogou a máquina para longe, evitando ler o veredito. As folhas não paravam de ser impressas pela Caixa de Raiva, que enfeitava o chão com a frase em letras garrafais: AMPUTAR-LHE O ORGÃO SEXUAL.

O que seria uma noite de entrega sem restrições ao marido, se tornou o verdadeiro inferno. A policial desabou em lágrimas sinceras ao ver uma marca de sangue por entre suas pernas, e mal conseguia pensar na ironia da situação, pois aquele líquido carmesim geralmente associado à vida, não passava da prova mais cruel de existência da dor e da morte.

A Caixa de Raiva fora desenvolvida em um momento em que os seres humanos estavam cansados das guerras que minavam a vida de milhares de pessoas fossem elas próximas, ou não. O presidente Stuart ILL, um ex-cientista e também psiquiatra, antes mesmo de ser eleito, observava que as nações envolvidas em todas as guerras da história nunca determinavam um ataque antes de munir umas pelas outras, certa quantidade de ódio, porém um ódio que somente era possível por causa da inveja, da cobiça por algo que lhes era interessante, e que as conectava. Foi, então que percebeu algo espantoso: O ser humano observou ele, possui tanto a capacidade de amar, como odiar de forma inerente, e isso é óbvio.

A novidade é que o ódio, assim como o amor também nasce de uma necessidade de compartilhamento. Tal como o amor, se esse ódio não for liberado de forma proporcional e legítima pelo próprio indivíduo, este enquanto engrenagem do bom funcionamento, não apenas da ordem, mas da própria força produtiva que mantém a sociedade, desfaleceria. A raiva não nasce do caráter instintivo do homem, mas racional e devia ser aplicada legalmente através de um aparelho que educasse os cidadãos a serem eles mesmos seus próprios juízes e réus. Ao aparecer nos programas políticos com a promessa do novo invento e de suas propostas de reformulação legal, a maioria tomada pelo patriotismo, e desejo ardente pelas benesses da "autonomia" fez questão de votar nele e influenciar a opinião pública para o mesmo.


Com a vitória de ILL, como em uma rápida piscadela, os aparelhos estavam sendo testados em laboratórios, patrocinados por empresas de softwares, e por fim vendidos.

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