A estreia de Bruno Azevedo como romancista, no sentido de uma
narrativa épica, já que havia escrito outros dois romances numa perspectiva
pós-moderna, Breganejo Blues, O monstro Sousa, traz como enredo um triângulo amoroso escrito em primeira pessoa, cuja
personagem central, sem nome, ocupa-se, a princípio, de satisfazer os desejos
de seu amado, Wanderley, que, para “apimentar” a relação, coloca dentro da
alcova do lar um terceiro elemento, a intrusa.
A intrusa, o alterego de Nazinda, mãe de Wanderley, é o
elemento desconstrutivo de uma ideia de um casamento ideal, nos moldes
“tradicionais” da família patriarcal, centrada na dominação simbólica
masculina, cujos desejos sexuais permearam a forma como os casais sempre se
comportaram à mesa e na
cama.
Desconstrutivo e reconstrutivo, pois A intrusa é o leitmotiv para a redescoberta da personagem como
mulher, para a recolocação de sua condição subjetiva dentro da relação, para a
abertura de novas possibilidades amorosas e conjugais, para a chave de
compreensão de por que
escrever um romance supostamente de bolso, de revista, de categoria, nos moldes
que se desenharam ao longo do século XX.
A temática, para lá de abordada, afinal, os romances, grosso modo,
exploram a questão do amor, transcende a mera exploração de um filão de mercado
editorial, a saber: a longa trajetória de uma literatura, cognominada de
subliteratura por explorar de forma “piegas” o universo feminino. E essa foi e
ainda é a grande questão: a existência de um romance de categoria largamente
ainda consumida por um universo feminino, nos moldes de Sabrina, Júlia, Bianca.
A crítica literária pouco se deteve sobre este tipo de
romance. Primeiro, exatamente por considerar
uma subliteratura, segundo, exatamente por considerar uma subliteratura. Assim,
definindo os cânones do que era boa ou má ou de gosto duvidável, pode se ocupar
das próprias regras definidoras e hierarquizantes do que deveria ou não ser
lido, estabelecendo as regras internas da significação literária, leia-se,
definindo a priori o estabelecimento de sua própria existência, afinal, crítica e literatura se confundem, já que os elementos
significantes da crítica literária norteiam a compreensão de uma obra, de um
sistema literário, estabelecem um olhar, um ethos do que vem a ser um bom escritor, ao mesmo que os autores ao
escreverem uma obra possuem uma cultura, uma fortuna crítica de como escrever,
dependem da “aprovação” do sistema da crítica literária para se notabilizarem
como bons ou maus escritores.
A questão é que a crítica, ao
negligenciar esse tipo de literatura, perdeu de
vista uma compreensão sobre a existência desse tipo de romance, o que se move,
o porquê de sua existência, e, o pior, quer dizer, o melhor, o que eles
denunciam.
Analisar a existência de um romance de categoria apenas como
filão de um mercado é empobrecedor demais. A questão, insisto, é: por que
existe? Claro que não se pode negligenciar os elementos do mercado editorial, e nisto Bruno Azevedo habilmente faz nos apêndices
da obra ao publicar o artigo da escritora canadense Jessica Sweethorny, “Seios túrgidos e membros intumescidos: sexo e literatura pornográfica
para mulheres”, nos moldes que Robert Darnton fez em O iluminismo como negócio, quando pesquisou a tiragem, os
assinantes, a circulação, a concepção editorial, a tipografia, compra da obra A ilustração, um dos elementos fundantes do iluminismo.
A crítica literária, ao
direcionar seu olhar apenas para a questão mercadológica, perde de vista pensar
que por detrás da existência de um romance de categoria existe uma demanda, e
demanda é sempre o foco que um determinado segmento busca.
A existência de um romance pornográfico é o vórtice da crise
do amor romântico inventado por Shakespeare, em Romeu e
Julieta, e
Rousseau, em Émile e
Sophie ou os solitários. Com a falência do ideário medieval e a
insegurança da falibilidade cristã, o direcionamento do amor e do amar passaram
para o plano da imanência, do aqui e agora,
tendo como foco o objeto
do desejo imediato, o amado e a amada. Transmutava a perspectiva de um plano
vindouro e importava viver acima de qualquer coisa, sorvendo de toda a entranha
as circunstâncias que
encapsulavam o desejo, o imediatismo de em tudo aproveitar a vida como se não
houvesse amanhã. Assim nascia a modernidade, como o desencantamento do mundo,
do fim da magia e com a sensação de que novas percepções sensoriais poderiam ser
experimentadas, o amor era uma delas, a mais radical das experiências.
Com o advento do mundo moderno, da assunção da burguesia, das
novas concepções sobre lar, casamento, família, resignificada pela vitória do
capitalismo e pelo triunfo da industrialização, esta instituição sofreria
vários revezes ao longo dos séculos XVIII e XIX, quando o papel da mulher de
novo seria alterado. Antes mesmo disso, o fim do dote e a crise das festas de
debutantes, ou seja, quando uma menina era apresentada à sociedade para ser potencialmente uma esposa, já
apontavam para a modificação da concepção de casamento corroborada pela
inserção da mulher no mundo do trabalho. O papel de homem macho, provedor, não desapareceria, no entanto, a condição feminina
emergia como sujeito posicionado das novas condições sexuais largamente
afloradas ao longo do século XX.
Mulher votando, trabalhando, se divorciando, queimando sutiã,
tomando pílula, fazendo sexo livre, manifestando-se nas ruas, e agora sendo
arrimo de família, são desejos e pulsões tensionadoras de novos rearranjos
conjugais, sexuais.
Não adianta dizer que 50 tons de cinza é
uma subliteratura, que não passa da exploração de putaria, e sim, qual
interesse mundial em fazer desse livro um best-seller,
para além das relações mercadológicas colocadas aí.
A intrusa nos permite fazer a mesma aliteração.
A princípio, a personagem central é submissa, e
Bruno Azevêdo conduz uma narrativa que nos leva a pensar isso. Uma das
inflexões é entender a personagem como dístico, como vórtice de uma mulher em
crise entre um modelo supostamente arcaico, tradicional de relacionamento, cuja
ocupação da mulher é satisfazer os caprichos do marido, e aquela que pode
descobrir outras potencialidades.
Engana-se quem acha que o arquétipo da boa esposa está
superado, que os novos meneios e condições sociais de uma mulher emancipada não
trazem elementos de tensões subjetivas para as mulheres e isso A intrusa explora
muito bem.
O pano de fundo do romance é adentrar nas sendas dessa mulher
pós-moderna dividida entre um antigo arquétipo, que elas carregam desde a
primeira mulher, e as de hoje, tentando se equilibrar entre casar e não
casar, ter filhos ou não, trepar com ou sem culpa, trair e não trair, ser e não
ser.
Quem é A intrusa? A mãe de
Wanderley, a amiga-amante que ele introduziu no seu lar e/ou a descoberta de
novos desejos e sensações que até então. Ela não havia despertado? Quem traiu
quem? Quem era o fraco da história, ela ou o novo Wanderley, que vai
paulatinamente negociando e reconfigurando sua forma de amar e se
relacionar?
O romance melassunga, propositadamente composto em formato
pequeno, de banca de revista, de fácil manuseio, papel polén 80, times 11/9,
capa cor-de-rosa, com ilustrações de rir, cujos intervalos dos capítulos são
sempre iniciados com epígrafes
satíricas, perturbadoras, provocativas, ilustrativas, fazem d’A
Intrusa um romance “intruso” nas nossas
estantes de livros cujos romances ditos Romances dificilmente ladeariam com um
de categoria exatamente intitulado de melassunga.
Quero ver a opinião do autor Bruno Azevedo..rs
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