sábado, 8 de junho de 2013

A INTRUSA, um romance de Bruno Azevedo





A estreia de Bruno Azevedo como romancista, no sentido de uma narrativa épica, já que havia escrito outros dois romances numa perspectiva pós-moderna, Breganejo Blues, O monstro Sousa, traz como enredo um triângulo amoroso escrito em primeira pessoa, cuja personagem central, sem nome, ocupa-se, a princípio, de satisfazer os desejos de seu amado, Wanderley, que, para “apimentar” a relação, coloca dentro da alcova do lar um terceiro elemento, a intrusa.

A intrusa, o alterego de Nazinda, mãe de Wanderley, é o elemento desconstrutivo de uma ideia de um casamento ideal, nos moldes “tradicionais” da família patriarcal, centrada na dominação simbólica masculina, cujos desejos sexuais permearam a forma como os casais sempre se comportaram à mesa e na cama.

Desconstrutivo e reconstrutivo, pois A intrusa é o leitmotiv para a redescoberta da personagem como mulher, para a recolocação de sua condição subjetiva dentro da relação, para a abertura de novas possibilidades amorosas e conjugais, para a chave de compreensão de por que escrever um romance supostamente de bolso, de revista, de categoria, nos moldes que se desenharam ao longo do século XX.

A temática, para lá de abordada, afinal, os romances, grosso modo, exploram a questão do amor, transcende a mera exploração de um filão de mercado editorial, a saber: a longa trajetória de uma literatura, cognominada de subliteratura por explorar de forma “piegas” o universo feminino. E essa foi e ainda é a grande questão: a existência de um romance de categoria largamente ainda consumida por um universo feminino, nos moldes de Sabrina, Júlia, Bianca.

A crítica literária pouco se deteve sobre este tipo de romance. Primeiro, exatamente por considerar uma subliteratura, segundo, exatamente por considerar uma subliteratura. Assim, definindo os cânones do que era boa ou má ou de gosto duvidável, pode se ocupar das próprias regras definidoras e hierarquizantes do que deveria ou não ser lido, estabelecendo as regras internas da significação literária, leia-se, definindo a priori o estabelecimento de sua própria existência, afinal, crítica e literatura se confundem, já que os elementos significantes da crítica literária norteiam a compreensão de uma obra, de um sistema literário, estabelecem um olhar, um ethos do que vem a ser um bom escritor, ao mesmo que os autores ao escreverem uma obra possuem uma cultura, uma fortuna crítica de como escrever, dependem da “aprovação” do sistema da crítica literária para se notabilizarem como bons ou maus escritores.

A questão é que a crítica, ao negligenciar esse tipo de literatura, perdeu de vista uma compreensão sobre a existência desse tipo de romance, o que se move, o porquê de sua existência, e, o pior, quer dizer, o melhor, o que eles denunciam.

Analisar a existência de um romance de categoria apenas como filão de um mercado é empobrecedor demais. A questão, insisto, é: por que existe? Claro que não se pode negligenciar os elementos do mercado editorial, e nisto Bruno Azevedo habilmente faz nos apêndices da obra ao publicar o artigo da escritora canadense Jessica Sweethorny, “Seios túrgidos e membros intumescidos: sexo e literatura pornográfica para mulheres”, nos moldes que Robert Darnton fez em O iluminismo como negócio, quando pesquisou a tiragem, os assinantes, a circulação, a concepção editorial, a tipografia, compra da obra A ilustração, um dos elementos fundantes do iluminismo.

A crítica literária, ao direcionar seu olhar apenas para a questão mercadológica, perde de vista pensar que por detrás da existência de um romance de categoria existe uma demanda, e demanda é sempre o foco que um determinado segmento busca.

A existência de um romance pornográfico é o vórtice da crise do amor romântico inventado por Shakespeare, em Romeu e Julieta, e Rousseau, em Émile e Sophie ou os solitários. Com a falência do ideário medieval e a insegurança da falibilidade cristã, o direcionamento do amor e do amar passaram para o plano da imanência, do aqui e agora, tendo como foco o objeto do desejo imediato, o amado e a amada. Transmutava a perspectiva de um plano vindouro e importava viver acima de qualquer coisa, sorvendo de toda a entranha as circunstâncias que encapsulavam o desejo, o imediatismo de em tudo aproveitar a vida como se não houvesse amanhã. Assim nascia a modernidade, como o desencantamento do mundo, do fim da magia e com a sensação de que novas percepções sensoriais poderiam ser experimentadas, o amor era uma delas, a mais radical das experiências.

Com o advento do mundo moderno, da assunção da burguesia, das novas concepções sobre lar, casamento, família, resignificada pela vitória do capitalismo e pelo triunfo da industrialização, esta instituição sofreria vários revezes ao longo dos séculos XVIII e XIX, quando o papel da mulher de novo seria alterado. Antes mesmo disso, o fim do dote e a crise das festas de debutantes, ou seja, quando uma menina era apresentada à sociedade para ser potencialmente uma esposa, já apontavam para a modificação da concepção de casamento corroborada pela inserção da mulher no mundo do trabalho. O papel de homem macho, provedor, não desapareceria, no entanto, a condição feminina emergia como sujeito posicionado das novas condições sexuais largamente afloradas ao longo do século XX.

Mulher votando, trabalhando, se divorciando, queimando sutiã, tomando pílula, fazendo sexo livre, manifestando-se nas ruas, e agora sendo arrimo de família, são desejos e pulsões tensionadoras de novos rearranjos conjugais, sexuais.

Não adianta dizer que 50 tons de cinza é uma subliteratura, que não passa da exploração de putaria, e sim, qual interesse mundial em fazer desse livro um best-seller, para além das relações mercadológicas colocadas aí.

A intrusa nos permite fazer a mesma aliteração. A princípio, a personagem central é submissa, e Bruno Azevêdo conduz uma narrativa que nos leva a pensar isso. Uma das inflexões é entender a personagem como dístico, como vórtice de uma mulher em crise entre um modelo supostamente arcaico, tradicional de relacionamento, cuja ocupação da mulher é satisfazer os caprichos do marido, e aquela que pode descobrir outras potencialidades.

Engana-se quem acha que o arquétipo da boa esposa está superado, que os novos meneios e condições sociais de uma mulher emancipada não trazem elementos de tensões subjetivas para as mulheres e isso A intrusa explora muito bem.

O pano de fundo do romance é adentrar nas sendas dessa mulher pós-moderna dividida entre um antigo arquétipo, que elas carregam desde a primeira mulher, e as de hoje, tentando se equilibrar entre casar e não casar, ter filhos ou não, trepar com ou sem culpa, trair e não trair, ser e não ser.

Quem é A intrusa? A mãe de Wanderley, a amiga-amante que ele introduziu no seu lar e/ou a descoberta de novos desejos e sensações que até então. Ela não havia despertado? Quem traiu quem? Quem era o fraco da história, ela ou o novo Wanderley, que vai paulatinamente negociando e reconfigurando sua forma de amar e se relacionar? 

O romance melassunga, propositadamente composto em formato pequeno, de banca de revista, de fácil manuseio, papel polén 80, times 11/9, capa cor-de-rosa, com ilustrações de rir, cujos intervalos dos capítulos são sempre iniciados com epígrafes satíricas, perturbadoras, provocativas, ilustrativas, fazem d’A Intrusa um romance “intruso” nas nossas estantes de livros cujos romances ditos Romances dificilmente ladeariam com um de categoria exatamente intitulado de melassunga.

Um comentário:

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