O mundo continua estarrecido com
os atos extremistas dos terroristas que atacaram o jornal francês Charlie Hebdo
e agora o jornal Alemão Hamburger Morgenpost queimando-o, ainda bem que sem
vítimas. Quando ocorreu o atentado em 11 de setembro de 2001 o mundo ocidental
voltou seus olhos de ódio para Osama Bin Laden sem se questionar o porquê de tal
sentimento. Em fins da década de 70 do século XX os USA haviam equipado a
Al-Qaeda municiando este grupo que no futuro seria cognominado de terrorista
contra a presença Soviética no Afeganistão.
Nada justifica um ato de tamanha
insanidade como matar 12 jornalistas num ato de extrema irracionalidade, não se
pode revidar com morte o humor de uma charge. No entanto, há que se questionar
os limites da crítica jornalística e chargista, afinal, as charges não apenas
debochavam do profeta Maomé como o humilhavam, e nisso nós ocidentais somos expert em reivindicar o princípio de
respeito e liberdade de expressão, inclusive religiosa, ainda que na prática
não façamos. Essa postura francesa do Charlie Hebdo não nasceu com eles e suas
raízes remontam ao nascimento do Ocidente.
Até o advento do Renascimento o
grupo que no futuro seria cognominado de mundo ocidental era sucursal da
civilização islâmica, dominando a península ibérica, tendo inventado o
astrolábio, fazendo cirurgias cranianas, com uma literatura fantástica, um
desenvolvimento cultural extraordinário antes da guinada para o extremismo xiita.
O processo de divisão interna da civilização islâmica criou uma disputa
acirrada pelo controle das regiões e o aparecimento de uma prática e discurso ultra
fanático.
Acontece que o Ocidente
estigmatizou o Oriente colocando-o como símbolo antitético, um referente não
apenas a não ser seguido, como eliminado. Os elementos constitutivos do Oriente,
dentre eles a religião, passaram paulatinamente a ser perseguidos por aquilo
que o Ocidente elegeu como símbolo de civilização e progresso, a razão
instrumental ocidental.
A razão instrumental ocidental,
tendo também como vórtice de negação o extremismo da baixa idade média, cuja
presença onipresente do Diabo preenchia o imaginário dos europeus, começou a
eliminar do processo de construção da memória do pensamento ocidental a
religião, como se os gregos, pilares deste princípio, não fossem extremamente
religiosos, bem como os romanos. Ou seja, na construção do Ocidente capsularam
Grécia e Roma como ícones da cultura ocidental, olvidando o papel da religião,
ou pelo menos deslocando seu significado.
Daí pra frente já sabemos o final
da história: séculos ao fio estereotipamos tudo que não tivesse como parâmetro
o modo da razão instrumental ocidental de pensar, legando essas circunstâncias
como “atrasadas”, “incivilizadas”. Usamos inclusive a superioridade ocidental
para escravizar a África, para neocolonizar a mesma África e a Ásia, para criar
o estado de Israel por suas vinculações com o capital ocidental, sobretudo
inglês e estadunidense negando os direitos dos estados palestinos, para apoiar
golpes militares na África e na Ásia, para vendermos armas para terroristas
islâmicos, para destituir revoluções socialistas, como em Angola e equipar
grupo de extrema direita como o MPLA, ou seja, bárbaros são os outros, são todos
aqueles que não defendem nossas bandeiras, que se colocam numa perspectiva
antagônica ao princípio régio ocidental de liberdade, igualdade e fraternidade.
Quando o Ocidente foi livre, igualitário e fraterno?
O princípio da ação provoca uma
reação. Quando a Al-Qaeda, naquele ato insano de explodir as torres gêmeas do
World Trade Center chocou o mundo, os Estados Unidos responderam com uma
perseguição atroz a Osama Bin Laden em pleno solo afegão e continuou a caça por
dez anos. Depois, não satisfeito, a besta fera que responde pelo nome de George
Walker Bush, inventou a maior mentira da história afirmando que havia
encontrado armas de destruição em massa no Iraque matando Saddam Hussein e
prometendo equilíbrio aquele país. Vimos o final da história.
O assassinato dos 12 jornalistas
franceses se justifica? Em hipótese alguma, foi um ato de extrema radicalidade,
insanidade, de ataque à liberdade de expressão, ao jornalismo enquanto esteio
de crítica aos que não possuem vozes e mecanismos de reivindicação de seus
direitos. Lamento e fico consternado com as vítimas, mas me questiono se por
vezes a própria imprensa não tem sido um veículo de propagação e reprodução de
estereótipos, a islamofobia, aumentando
a insanidade dos extremistas.
No caso do Charlie Hebdo também
havia crítica ao cristianismo, mas a imprensa em geral faz crítica ao
imperialismo francês? Ao imperialismo que saqueou as obras de arte egípcia? Ao
que fizeram com a Argélia? Ao preconceito de cada dia aos pieds noir que vivem nos arredores de Paris? Quanto da riqueza
francesa é fruto da exploração de suas ex-colônias? O ódio religioso existente
em radicais islâmicos também foi nutrido pelo período de exploração econômica e
política, sem falar na territorial.
Por outro lado, é claro que existe
uma clara intensão dos radicais extremistas islâmicos em dividir o mundo, de
propagar o ódio, de segmentar islâmicos e islâmicos, muçulmanos e judeus,
muçulmanos e cristãos, instituir a insegurança como prática social, estabelecer
o pânico, a paúra, etc, mas a minha pergunta é: qual a parcela do mundo Ocidental
nisso?
É claro que o Estado Islâmico que
vem ameaçando o Iraque (cujo EUA prometeu salvar), a Síria, e vários países, é
uma ameaça global porque fere qualquer princípio de racionalidade e tem que ser
combatido, mas quando afinal vamos entender de fato os princípios religiosos de
outros povos, entender a diversidade cultural que tanto o mundo ocidental
propaga, conviver com a diversidade?
Com todo o risco de ser não
compreendido e duramente criticado, e que fique claro que não apoio nenhum ato
de terrorismo ou de insanidade, as charges do Charlie Hebdo ao profeta Maomé
são ofensivas, grosseiras e desrespeitosas. Vamos impor limites à imprensa,
controlar o seu conteúdo? Certamente não, mas precisamos discutir
responsabilidades. Nada está acima de tudo, nem mesmo o humor do Charlie Hebdo.
Termino com uma mensagem de
solidariedade aos parentes, amigos dos chargistas. Espero que isso nunca mais
se repita, que ninguém tire a vida de outrem por conta de uma piada, mas que
passemos a criticar também os atos nossos terroristas de cada dia. Não se mata
apenas com uma pistola automática, com bombas, mas também com exploração
econômica, política, territorial, com preconceitos e estereótipos.
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