Adonay Ramos Moreira
Cairemos sempre num grande engano se
encararmos o pensamento filosófico como algo genuinamente racional, produto de
um esforço intelectual sobre-humano, do qual os sentimentos, as emoções mais
simples passam por longe, como se ele fosse qualquer coisa assim como uma
pirâmide, cuja construção exige somente cálculo e força.
Ao contrário do que somos ingenuamente
levados a pensar, estamos mais distantes da racionalidade do que pressupomos.
Os jornais, os programas de TV, o computador, toda sorte de bugigangas modernas
prova-nos apenas que nosso século é qualquer coisa, menos racional.
A História nos mostra que nem sempre se
gozou dessa deusa Razão. Em todos os povos, de todas as épocas, a racionalidade
e o tão sonhado “homem racional” não foram senão exceção, quando muito
fantasmas ou encenadores menores, para os quais a palavra “razão” ou é algo
sobrenatural (para a classe dos fantasmas) ou algo fictício (para a classe dos
atores).
Os homens de nosso tempo incluem-se nessa
segunda categoria. O conhecimento não lhes é senão encenação: quando um erudito
de nossa época não se encontra diante de uma plateia; quando após um comentário
seu ou algum discurso ele não ouve nenhum aplauso, nem mesmo um “Viva!”, ele
frustra-se de tal maneira que a primeira coisa em que pensa é no suicídio.
O conhecimento em si, aquela atração pelas
coisas do mundo, por sua grandeza e espetacularidade, o qual pela primeira vez
foi visto sobre a face da terra entre o povo grego, isso é algo de todo
desconhecido de nosso tempo. O homem moderno tem desejo sim, mas não de
conhecimento. Interessa-lhe antes o quanto em moedas ele pode ganhar por
segundo, o que pode lucrar em termos financeiros lendo este ou aquele livro, e
quando menciona algo tido como “sábio”, como “erudito”, é apenas como um
acessório, uma máscara ou algo desse gênero: o conhecimento verdadeiro daquilo
que diz jamais penetra sua alma.
E é nisso que consiste a falha do homem
moderno: o que ele pensa está totalmente distante do que sente, como se seu
coração e seu cérebro fossem duas ilhas distantes, separadas por um oceano de
mistérios e incertezas. Dito de outra forma: o homem moderno, o “sábio
contemporâneo”, deixou de sentir, tornou-se somente uma máquina de pensar, para
a qual as emoções são sonhos distantes e sem significado. Interessam-lhe antes
as suas proposições: “Se elas estão corretas,” – pensa ele – “então estamos
diante de uma verdade”. Ante isso, não nos resta outra alternativa senão
lamentar, pois cremos em profundidade em algo bastante simples: quando um homem
nega seus sentimentos, ele também nega, embora não o perceba, a sua humanidade.
O que levou os homens a pensar não foi sua
razão, mas seu sentimento. O homem primitivo não se expressava através de
cálculos matemáticos, mas por desenhos. Seguramente, ele não estava interessado
em quais proposições lógicas o mundo se baseia, mas afligia-o antes esse desejo
tão terrível (e ao mesmo tempo tão belo) que é saber o que nos torna vivos,
qual sentido há em nossa existência sobre a face da terra, o que são os
fenômenos naturais. Primeiro vieram-lhe as emoções, para que em seguida (e
compreenda-se esse “em seguida” como uma soma nada desprezível de anos)
surgisse em seu íntimo, no seu espírito, qualquer coisa parecida com a
racionalidade.
Os mitos são a prova mais “concreta” disso.
Longe de serem criaturas inferiores, eles constituem uma vitória de nossa
sensibilidade. Interpretar o trovão e o raio como a fúria de um deus não é
prova de ingenuidade, mas de sabedoria. É preciso estar em contato profundo com
a Natureza para se poder criar algo parecido. É preciso, antes de tudo, sentir,
compreender que se é parte do mundo e que este é parte de nós, e que uma
separação entre o Homem e a Natureza é algo impossível, diríamos mesmo
inadmissível, e por mais que ele tente se afastar dela sob a égide da
racionalidade, da sua tão sonhada “razão”, suas tentativas não resultam senão
em fracasso, pois ele empreende uma aventura que se encontra muito além de suas
forças. O homem tem seu limite. Tentar ultrapassá-lo será sempre motivo de
fracasso. Aqui repetimos a fala de Macbeth: “Atrevo-me a fazer tudo o que é
próprio de um homem. Quem se atreve a mais, homem não é”. Com esse pensamento,
Shakespeare abarca um mundo.
Os gregos, que temos como os pais da
filosofia, também chegaram a ela por meio dos seus sentimentos. A sua mitologia
já constitui em si um pensamento filosófico, e o próprio Aristóteles confirma
isso em sua “Metafísica”: “Ora, quem indaga e está perplexo sente-se ignorante
(assim quem gosta de mitologia é em certo sentido um filósofo, uma vez que os
mitos se compõem de indagações)”; é preciso ter a clareza de pensamento de um
homem como esse para se chegar a tal conclusão.
Pensar, viver, ser feliz, tudo isso são
coisas que, para nós “modernos”, “homens evoluídos”, que com tanta ciência não
somos capazes de enxergar um palmo sequer além de nosso nariz, parecem
completamente impossíveis. O homem moderno tem uma máxima: ou pensa ou vive,
uma conciliação entre esses dois estados é-lhe qualquer coisa de inconcebível.
Ele sente que, ao se afastar da razão, qualquer evento monstruoso poderá
ocorrer. Certamente, um erudito de nosso tempo, um “sábio”, esse tipo de
indivíduo provavelmente foge das emoções como o Diabo foge da cruz: para ele,
emocionar-se é um ato nocivo, diríamos mesmo “primitivo”.
Por mais que pensemos (e – de fato – a
história da filosofia no ocidente está repleta desse tipo de reflexão, de
Platão a Nietzsche), jamais chegamos à certeza sobre de onde nos provém o
conhecimento. Se ele está em nós ou fora, se é capaz ou não de ser abarcado por
nossos sentidos, isso é coisa que ainda não sabemos. Alguns otimistas (que de
tão otimistas beiram a decadência intelectual) põem na ciência moderna certa
confiança no que se refere a isso. Mas, quanto a esse assunto, permanecemos
céticos.
O que pretendemos abordar (e não convencer, é
preciso esclarecer isso) é que nenhum filósofo se furta a suas emoções quando
se propõe a pensar. Os próprios gregos falavam em “melancolia”. De fato, um
homem feliz dificilmente chegará com algum sucesso ao pensamento. Para se
chegar a ele, é preciso perder qualquer coisa, ainda que mínima. E, em matéria
de perda, a razão passa sempre longe. Ser racional em campo subjetivo equivale
voltar à animalidade.
Elogia-se muito a postura do velho Sócrates
ante a morte. Quem quer que se digne ler o “Fédon” poderá concluir: “Sim,
estamos diante de um homem racional!” Esse tipo de conclusão é-nos totalmente
absurdo. É preciso se ter uma certeza muito grande para abandonar a vida com
tanta facilidade. É preciso sentir (e que se dê a este verbo a força e a tônica
que lhe são devidas) que algo há além; que esse mundo é fruto de uma certa
transitoriedade; que em algum lugar há algo mais agradável, onde um espírito
possa repousar. Sim, é necessário tudo isso, e não é pela razão que se chega a
esse “bosque encantado”. A morte de Sócrates foi tão romântica quanto a de
Cristo e a do jovem Werther: nos três, há qualquer coisa de extremamente meloso
e ridículo. Não é por silogismos que um homem se encaminha à morte. E nem mesmo
o bom Sócrates foge a isso. Em casos assim, a razão é a última a participar.
Conta-se que Empédocles saltou à cratera do
Etna para provar que era um deus, e nunca mais foi visto: dificilmente alguém
será estúpido o suficiente para atribuir tal ação a um argumento racional. Isso
nos prova que nossos estimáveis filósofos nem sempre agem segundo critérios de
racionalidade (em relação a isso, os pensadores modernos são mais práticos:
Deleuze, por exemplo, provavelmente para evitar a fadiga, dignou-se apenas a
pular pela janela. Subir à cratera de um vulcão para em seguida jogar-se nela
devia-lhe constituir um argumento tipicamente “irracional”).
Mas tais exemplos são cômicos, e servem antes
para comédias do que para um ensaio. Verdade que de modo algum me proponho ser
o autor de um texto excessivamente acadêmico. Seria de todo curioso um sujeito
defender certa ênfase às emoções no processo de filosofar com um tom acadêmico
e burocrático. Não. Tais tipos de texto são para os “sábios”, os “eruditos”, e
eu me encontro a uma distância de anos-luzes dessas duas classes.
Em todo pensamento filosófico há sempre uma
parcela de vida, e a vida (precisamos admiti-lo) não é algo extremamente
racional. Os pensamentos mais profundos, assim como a obra de arte, provêm da
necessidade; da necessidade de se reconhecer no mundo. Se um homem não se
incomoda com a realidade; se a existência (esse “vale de lágrimas”, para
usarmos uma expressão familiar aos cristãos) não lhe é qualquer coisa de
demasiadamente excessiva; se ele não se sente de alguma forma angustiado,
“melancólico”, é preciso que reconheçamos que não estamos diante de uma
reflexão filosófica. Estamos, antes, perante um ator: por alguns segundos (ou
durante o tempo que durar o espetáculo), ele põe a sua máscara e dramatiza.
Mas, caídas as cortinas, ele volta à sua vida de mediocridade. Um homem assim
exibido assemelha-se mais a um pavão do que a um filósofo: falta-lhe a essência
daquilo que é verdadeiro, daquilo que é vivo.
Costumamos chamar o senhor Platão de um
homem racional. Somente quem nunca leu nenhuma de suas obras poderá concordar
com esse juízo. Tomemos um exemplo clássico: a sua “República”. Nessa
construção absurda, há uma verdadeira sociedade entre o coração e o cérebro: se
há a racionalidade, também há de igual modo o desejo, o sonho. E este segundo
ponto é bem evidente no que se refere ao seu modo de lidar com os artistas:
“Quando um desses senhores pantomímicos, tão vivos que sabem imitar tudo, nos
visitar, propondo-nos uma exibição de si próprio e de sua poesia, cairemos de
joelhos e o adoraremos como algo sagrado, doce e maravilhoso; mas devemos
também informá-lo de que, em nosso Estado, não se permite, por lei, a
existência de semelhantes criaturas. E, depois de untar-lhe o corpo de mirra e
colocar-lhe à cabeça uma coroa de lã, mandá-lo-emos a outra cidade”. Por mais
que se negue (e a tendência geral é negar), uma atitude assim não se trata de
razão, mas de afinidade: no fundo, resulta apenas do fato de se gostar ou não
de alguém ou de algo, e em vão procuramos um argumento para se justificar a
presença de uma possível razão em tudo isso.
A “República” platônica é um artefato
romântico. Um homem tem que estar terrivelmente decepcionado com a vida para
criar algo parecido. Em certos termos, a fuga para a república platônica é uma
antecipação do espírito de inconformismo que se revelou aos homens do século
XIX quando se deu início ao movimento Romântico. A diferença é que Platão, em
sua época, tratou de mascarar isso com algum toque de racionalidade. O homem da
utopia do velho grego assemelha-se em muito ao personagem Glahn, do romance
“Pan”, do escritor norueguês Knut Hamsun: em ambos há a fuga para um lugar
ideal, com a única diferença de que, na república platônica, o homem não se vê
tão atraído pela caça. Isso é uma distinção cômica, confessamos, mas
extremamente precisa.
Essas afirmações nos provam que até mesmo o
pensamento socrático-platônico estava eivado de certo sentimentalismo, certa angústia. E
essa visão se nos torna mais surpreendente (e também encantadora) quando nos
lembramos que foi justamente a esse pensamento, a esse tipo de comportamento
reflexivo, que Nietzsche atribuiu o início de uma “racionalidade” entre os
gregos: “Para demonstrar também no tocante a Sócrates a dignidade de tal
posição de condutor, basta reconhecer nele o tipo de uma forma de existência
antes dele inaudita, o tipo do ‘homem teórico’, cuja significação e cuja meta é
nosso dever agora chegar a compreender”. Assim, chegamos sem nenhum problema à
conclusão de que a boa e sábia razão grega não era tão racional: havia algo de
enfermo em seu corpo.
Mas não é somente entre os gregos que
floresceu a melancolia. Onde quer que o pensamento filosófico penetre, lá
também se encontra a emoção. A filosofia medieval (bem como o pensamento
helenístico) não se furtou a ela. Os Padres da Igreja são ainda mais sensíveis
no que se refere aos sentimentos do que os gregos. Não se pode chegar a Deus
somente pela razão. Caso contrário, não se estaria ante Deus, mas ante um
teorema de Pitágoras.
Não pretendemos traçar um painel histórico
descrevendo a relação emoção versus
filosofia. Faltam-nos tempo e conhecimento para isso. Um tal tipo de tarefa,
por enquanto, excede em muito as nossas forças (talvez no futuro possamos
fazê-lo); o que por ora nos é possível é apontar para o fato de que a
verdadeira filosofia, esse ato genuinamente humano, é uma conjugação dos verbos
sentir e pensar. Nenhum filósofo verdadeiro pode se esquivar disso, e os que
traçam metas de pensamento como se este fosse uma receita para bolo caem sempre
no abismo do fracasso (um bom exemplo desse tipo “filosófico” se encontra no
personagem Memnon, do senhor Voltaire, um verdadeiro símbolo do malogro intelectual).
Não sou devidamente competente em matéria de
Lógica para afirmar até que ponto a emoção pode participar nesse tipo de jogo.
Porém recuso-me a aceitar a ideia de que homens como Bertrand Russell e
Wittgenstein tenham construído suas obras com a mesma indiferença emocional com
que um homem com dor de barriga redige uma carta de amor. Não me parece sob
nenhum aspecto que um ser humano, por mais que seja sábio, possa ser capaz
disso.
Formulamos juízos sobre o mundo quando
“estamos conscientes” (é preciso ter sempre certo cuidado quando se escreve
esse tipo de afirmação) da realidade em que vivemos. Um indivíduo que não
chegue a esse ponto jamais será capaz de pensar. É por uma tal inércia
intelectual, por esse mesmo tipo de alheamento existencial, que devemos o fato
de vacas e porcos não redigirem tratados de metafísica. E estar consciente
significa sentir. Significa compreender que não estamos “no melhor dos mundos
possíveis”. Homens como Kierkegaard, Nietzsche, Sartre e Camus são a prova de
que a emoção sempre participa do jogo.
Somente à medida que fomos “evoluindo”, tornando- -nos “científicos”, mais “modernos”;
somente agora que exibimos sobre o peito uma faixa com o nome
“pós-contemporâneo”, é que os homens do conhecimento (não a Filosofia)
pretendem levar sua “racionalidade” ao extremo, e com isso eles não fazem senão
enganar a si mesmos. São como os indivíduos que, tentando fugir de seus
pensamentos, empreendem peregrinações pelo mundo: tais homens sempre se
frustram, pois não percebem que jamais poderão fugir de si mesmos. “Toda
consciência é enfermidade” – disse certa vez Dostoievski, e é inútil tentar
fugir: a miséria, a “doença” sempre irá conosco.
E o que é mais trágico em tudo isso é que,
de todas as épocas, é justamente a nossa que mais tem necessidade de sentir, de
pensar, de uma filosofia que una razão e sensibilidade. Para falarmos de
maneira alegórica, assemelhamo- -nos
a Ícaro: chegamos tão alto que agora nossas asas começam a não mais resistir, e
não é o sol que as corrói, mas a ignorância e a mediocridade que o nosso século
entre fios e máquinas nos proporciona.
Talvez seja esse milênio o momento oportuno
para se fazer renascer a Filosofia como sensação humana, como capacidade de
tornar-se melancólico para assim poder se pensar humanamente esse ser que há
muito vem perdendo as características do que é humano. Talvez seja esse o
momento para que a emoção volte a coabitar o mesmo corpo em que dormem o
conhecimento e a razão, e assim evitar que nosso tempo caia em uma profunda
miséria, e se concretize aquilo que um dia esboçou Carlos Drummond de Andrade
em um de seus versos: “Chegou um tempo em que a vida é uma ordem/ A vida apenas, sem mistificação”.
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