terça-feira, 5 de agosto de 2014

Kafka: um poeta da solidão


Adonay Ramos Moreira


   De todas as verdades ditas sobre Kafka esta nos parece uma das mais plausíveis: não há outro escritor no século XX que tenha maior grandeza literária do que ele, pois em sua obra a solidão, o medo e o desespero não são uma máscara, mas a própria face.

   É quase impossível ler Kafka sem se sentir incomodado pela vida. Precisa-se ser um monstro de indiferença para não sentir a angústia que emana de suas páginas. Uma hora apenas lendo seus textos e pronto: o estrago está feito.

   Costumamos avaliar uma obra de arte pelo valor estético que ela possui, e não raras vezes sentimo-nos quase tontos ante uma obra para a qual nossos instrumentos de análise se mostram inúteis. Chegamos mesmo a bradar contra isso, e não sem desespero percebemos que, em matéria de Arte, toda razão não é apenas inútil, mas, sobretudo, infantil. Pois toda obra de arte é incomunicável, e se deixa ver (e não se revelar) apenas por aqueles cuja existência lhes é um peso: apenas esses raros seres feitos de solidão e angústia podem tocar algo nesse corpo a um só tempo fascinante e absurdo chamado Arte.

   E apenas um leitor que corresponda a essas expectativas pode – de fato – respirar o perfume doce e mortal do texto kafkiano, sem que, com isso, incorra em suicídio, e morrer ainda seria pouco, pois sequer sabemos o que nos espera (se é que algo de fato nos espera) do outro lado da vida, e essa ideia de solidão e repulsa nos parece de tal modo insuportável que aos poucos nos afastamos, e apenas por constrangimento reprimimos o soluço que se forma em nosso espírito: porque é preciso viver, mesmo que isso não faça nenhum sentido.
 
   E é dessa solidão incomunicável que padece os personagens kafkianos. Não é o fato de se encontrarem em um mundo ainda mais absurdo do que o nosso que os isola, mas – sim – o fato de não poderem se comunicar. E quase todo o drama de Kafka parece consistir nisso: nenhuma comunicação – por mais necessária que nos possa parecer – é possível, e sua necessidade (que, é verdade, existe) torna a vida de seus personagens ainda mais terrível.

   Nada é mais angustiante do que o silêncio involuntário do senhor Gregor Samsa, o caixeiro-viajante da novela “A Metamorfose”. Ali, a negação da fala se confunde com a negação da própria vida, pois o que resta a um ser diferente e – aos nossos olhos, tão-somente aos nossos olhos – grotesco, quando tudo de útil lhe escapa, senão a linguagem, única arma com a qual a defesa nessa situação parece possível?

   Falar seria a única maneira de convencer os seus e o mundo de que tudo aquilo não passa de um engano, que a forma em nada deforma a essência, e que a humanidade, a verdadeira humanidade, é incorruptível.

   Mas o silêncio, a precipitação e o medo jogam por terra todo ser. Por mais que no fundo o homem permaneça inalterado, sua imagem não é mais reconhecível, desapareceu numa teia fria de engano e aparência, e apenas Samsa, ninguém mais ninguém menos que Samsa, sabe disso. E é esta a mais terrível das solidões: a solidão que deseja se comunicar, que é quase um grito. É quase impossível não sentir um certo arrepio diante disso, dessa forma tão nua – e ao mesmo tempo tão verdadeira – de ver o mundo.

    Parece mesmo que, para alguns homens instruídos e racionais, desses que têm mais ou menos umas cinco teorias para explicar o fenômeno da vida, tudo isso que acabamos de dizer se revele algo absurdo, exagerado e sem graça. Mas esse pensamento pode valer um mundo.

   A diferença entre a Arte e a vida é que aquela parece fornecer ao homem alguma finalidade, ao passo que esta, por mais que a ela nos apeguemos como verdadeiros parasitas, não nos comunica nada. E se levarmos essa máxima ao mundo fantástico do senhor Kafka, chegaremos sem nenhuma dificuldade à visão de que, nele, nem a Arte nem a vida escondem em seu ventre alguma finalidade. Tudo nele, quer na vida quer no pensamento, é árido, cansativo, peca pela negação e – sobretudo – transmite um silêncio perante o qual uma existência frágil não encontra outra alternativa senão sucumbir.

   Sucumbir. Eis um verbo que reflete a atmosfera kafkiana, uma vez que seus personagens não resistem à vida, e no meio de sua solidão – que chega mesmo a ser-lhes uma parte essencial de seus corpos – entregam-se à derrota. É assim com Samsa; assim é com Joseph K., personagem central do romance “O Processo”. Joseph K. é de tal modo vencido pela vida que, nas suas últimas horas, nem sequer mais resiste. A solidão já lhe consumiu qualquer chama de felicidade. Pois em Kafka o amor também é inútil, e se seus personagens chegam a amar, isso não passa de uma brincadeira, são jogos de uma criança que reluta tornar-se adulto, como se a idade lhe minasse toda possibilidade de sucesso. 
 
   Ao longo do caminho que o leva à morte (dessa morte que consegue ser ainda mais absurda do que a comum, que é a que se distribui a todas as gentes), Joseph K. não é só um condenado, ele é a prova incontestável de que, para Kafka, toda luta é inútil. Uma pedra, um galho seco, um cão, qualquer coisa que porventura se lhe revelasse não conseguiria comunicar-lhe outra coisa senão solidão, solidão e mais solidão. Não é preciso ser grande para sentir mais ou menos o que K. sente. Basta ser humano, pois nenhum sentimento é inacessível quando a ele tentamos chegar por meio de nossa humanidade.

   Um instante depois: a morte. Somente a morte é o triunfo dos que vivem. Por um momento, alguém distante abre a janela. É apenas mais uma brincadeira do Destino, uma atroz brincadeira, que deixa na boca o gosto de sangue. Até que, enfim, tudo está consumado. “A luz apagou”, disse certa vez Drummond em um de seus poemas. Mas em Kafka não apenas a luz se apaga. É o próprio Universo que parece entrar em erupção. “Como um cão!” – brada Joseph K. no instante quase imperceptível entre a vida e a morte. Mas se enganam os que pensam que se trata de uma dúvida tudo isso. Pelo contrário. É a certeza que o aflige, humilha-o de modo insuportável. A vergonha não está no fato de ser derrotado (pois nós a isso condenados também estamos) mas – sim – pela forma como tudo isso se configura, pela impossibilidade de defesa, pela solidão na hora da morte, pelo verdadeiro desprezo que seus concidadãos parecem nutrirem em relação ao seu destino. Mas: algum homem o entenderia?

   Isso se configura um tema para um outro texto. O que por ora queremos dizer é que nenhum outro artista das letras do século passado desenhou tão bem – sob o símbolo da solidão – a marca do estranho destino dos homens sobre a terra. E agora mais do que nunca vemos a certeza disso. Kafka talvez, apenas talvez, se alegraria ao ver o quanto foi profeta em sua obra. Mas mesmo na maior alegria ainda se sentiria triste, pois sua dor não é externa, mas parte inalienável de seu ser; a dor é sua própria essência.





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