A latência das imagens se inicia com o nascimento, ainda que não haja
clareza e nem conduta moral para inundar o que serão as lembranças puras. Tudo,
no entanto, começa a ser registrado. O corpo absorve as imagens, matéria da vida.
As lembranças puras sofrem inflexões das lembranças-imagens até se formarem
percepções, propriamente ditas, já transformadas em representações, sentidos,
como diria Bergson. O que permanece são as percepções, não mais as imagens
puras. O corpo capta as imagens, mas o cérebro as processa. Tudo a passa a ser
fremido pela relação presença-ausência. A cada afecção que interpretamos como
ausência, é iniciado um processo inconsciente de busca por algo que
supostamente possa preencher o vazio, ainda que inominável, ainda que não
prefigurado. As dores, construções nomotéticas das memórias já elaboradas,
editadas pela percepção, passam a se relacionar com o tempo distinguindo o
ontem, passado; hoje, presente; e o amanhã, futuro, ainda que só exista o
agora. É a dor da ausência que transforma o passado numa porta sem saída, pois
só será passado, deixando de ser presente, exatamente quando a porta estiver
aberta e deixar de ser presentificado tal passado. Basta uma imagem captada
pelo corpo, ainda pura, depois transformada em lembrança por um ato simbolizado
pelos sentidos enquanto referencial, para se constituir uma memória monumental.
A vida, então, passa a ser o sentido da reatualização daquela lembrança ou do
desejo de reificá-la. Se o presente não for prenhe de seu sentido, então, a
porta do passado continuará fechada, isso constitui o que chamamos de morte: a
certeza de que aquilo vivido e interpretado enquanto referencial não se repete,
ou pelo menos da mesma forma. Começam a luta e as construções das idealizações,
sempre à procura da repetição daquilo que o corpo, depois a percepção, nominou
como referência. As outras possibilidades soam como estanques, estranhas,
alhures. Embora a vida seja um mosaico, prenhe de quaisquer significados que
possam ser atribuídos a ela, é a vocalização, a direção do olhar, obnubilados
pelos sentidos e as percepções que tangenciam e direcionam como a vida deve ou
deveria ser sorvida. É a percepção que, conotada pelos sentidos que assumem o
lugar da existência, passa a ser compreendida enquanto tal. Damos vida a tudo
que atribuímos peso, importância, força e sentido. Nada é arbitrário, tudo é
construído, tudo é referenciado. A mudança de percepção altera as
significações. Somos os deuses de nós mesmos. Somos os guias de nossas próprias
vidas. Somos os autores do que cognominamos de vida. A morte não é antitética à
vida, é a sensação de que aquilo que referenciamos enquanto primordial não pode
ser repetido. A nossa luta contra a morte se torna menos hercúlea ou mais
hercúlea se fazemos da vida um cabedal chamado de obra. A obra, então, é a
monumentalização, a lembrança-imagem congelada, o instante fugaz em que o
sentido do que fizemos se imortaliza. O balanço mnemônico da existência é
colocado na balança de Anubis. A existência não se interpõe nesse julgamento, e
sim, a percepção de que a matéria da vida, apoiada na memória, na hora da
morte, pendeu de forma menos heroica Não há ninguém lá fora nos julgando a não
ser nós mesmos. E todo esse julgamento nasce no processo de composição das
imagens puras e depois imagens-lembranças ou lembranças-imagens, depois
percepção.
O corpo, o primeiro a captar as imagens, passa a sofrer com as
percepções dos sentidos. Os órgãos internos somatizam o que a matéria-memória
edita. A mente intensifica o que ela mesma projetou.
Um instante perceptivo se emoldura na memória. A busca pela reedição da
matéria se constitui numa luta fremente de potência. A pulsão mobiliza. Os
sentidos elaboram e reelaboram. A mente aprisiona ou liberta. O corpo deseja. O
coração sente. O estômago distribui as sensações e comanda outros órgãos
provocando ou uma eubiose ou desbiose, dependendo de como as três mentes: uma
localizada no cérebro; outra, no coração e a outra; no estomago, as prefiguram.
Corpo e mente formam um compósito amálgama de locução de percepções.
A memória é a edição da matéria. Os mesmos gestos são perseguidos, os
mesmos ângulos, as mesmas sensações, as mesmas palavras, interpretações, tudo
passa a ser uma condição obsequiosa de repetição. Por isso, as lembranças puras
já não importam, e sim, as sensações que elas carregam. Tudo o que não lembre
ou não se aproxime de uma situação-monumento passa a ter menos importância,
muitas vezes sequer percebida. Assim, o enredo do vivido não é a totalidade da
ação, é um filtro da ação.
Do que é a lembrança? O que é a lembrança? Perguntou Paul Ricoeur. O que constitui as lembranças? O que os
sentidos ritualizam? Como diria Bergson, não se trata de entender como as
sensações nascem, mas como são elaboradas. Como os sentidos são atribuídos e
por quê?
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