terça-feira, 10 de fevereiro de 2015

O esgotamento de um modelo de vida: o consumismo

Quando o século XX abriu suas portas, ainda que sob os auspícios do período vitoriano – a belle époque –, o mundo não se deu conta da grande catástrofe que se anunciava, exceção de duas vozes: Marx e Nietzsche. Ambos apregoaram, cada um à sua maneira, que o modelo de vida preconizado pelo capital, ao contrário dos que o defendiam como a redenção e salvação do mundo, se tratava na verdade de um aprisionamento e destruição das relações entre homem-mulher-natureza.

Alguns prelúdios também já demarcavam posição, como os poemas de Baudelaire criticando a ambiência e a paixão moderna, pletora conspiradora de que o passado, cada vez mais distante, se tratava da época de um mundo hostil e que deveria ser esquecido, tanto quanto apagado. 

Baudelaire não foi o único; Edgar Allan Poe; Mallarmé; Fernando Pessoa, e tantos outros, a partir da captação do mundo sensível, sentiam que algo de fato extraordinário se anunciava com a explosão das máquinas a vapor, do trem, da invenção do bólido (automóvel), da fotografia, cinema, moda, telegrafo. No entanto, por detrás destas inovações se escondia um discurso sobre o modo de vida, que não poderia até aquele momento ser abastardo de uma grande capacidade de destruição dos recursos naturais, ou seja, a ideia de desenvolvimento, progresso, está mais que ladeada com estes princípios, no fundo, se confundiam. Era como se a explosão da técnica contivesse em si inexoravelmente a degradação dos recursos naturais, claro, catapultada pela expansão do consumismo. 

Há autores que defendem que o problema da terra é a exclusão social e que nos últimos 300 anos incorporamos 1/3 da população global completamente separadas do modelo de qualidade de vida. Absolutamente verdade, já incorporamos setores que dantes jamais imaginariam um dia ter acesso aos bens de consumo. É bem verdade que também necessitamos incorporar a outra parte da terra ainda excluída. O problema é que a incorporação não muda o padrão de consumo, ao contrário, aumenta e não altera a distribuição da riqueza da terra. O consumo é um problema, o consumismo, ainda mais.

Consumo é uma necessidade. A questão é que há muito tempo, mesmo antes do American way of life, a noção do consumismo, além de estar associado à noção de bem-estar, poder, também se relacionou com o princípio de felicidade, já largamente estudado pela psicanálise desde a década de 60 do século XX. A psicanálise mostrou como a noção de consumismo se equipou com o princípio existencial de vida, de cidadania, logo, todos os que estavam fora desta órbita automaticamente se sentiram excluídos de qualquer noção razoável de existência.

Hoje, estudos psicanalíticos apontam que o consumismo fracassou no que tange à noção de felicidade, não é capaz de manter o padrão de conforto emocional durante muito tempo porque logo conquistado o desejo, ele se replica e vai em busca de novas conquistas. 

A questão é que o consumismo traz consigo uma desgraça: o esgotamento de recursos naturais. Ao contrário do que se acreditava nos primórdios da modernidade, a natureza está perdendo a capacidade de manter o equilíbrio global porque sua reprodução e autorrecuperação são menores do que a lógica da produção global. Resultado: a equação não fecha, aliás, bem frisou Althusser.  

Tudo o que está ao nosso redor e que foi produzido artificialmente necessitou de água, a cognominada água virtual. Para se produzir uma calça jeans são necessários 11.000 litros. Imagina o quanto não é gasto para se produzir um carro? 400.000 litros. 

A substituição das fontes energéticas não renováveis pelas renováveis e ecologicamente corretas amenizam o problema, mas não resolve a lógica do consumismo. O problema não está no consumo, mas no consumismo. Consumismo é excesso, desperdício, extravagância. 

O consumismo é fruto de uma longa concepção cultural alicerçada no capitalismo, alimentada desde o período feudal pelas práticas cotidianas da aristocracia, alimentada e aperfeiçoada pela burguesia. A bem da verdade, o consumismo existe desde que as técnicas de reprodução e produção foram inventadas, o que muda a relação é a amplitude. Técnica, inovação, produção em larga escala e ideologia capitalista equacionaram uma bomba relógio pronta para explodir.

A crise hídrica em São Paulo e Rio de Janeiro é apenas a ponta do iceberg de uma guerra planetária anunciada. A possibilidade de extração de água do Paraíba do Sul, que abastece a cidade do Rio de Janeiro, já acendeu os ânimos entre os dois estados e aponta para uma disputa em busca deste recurso natural. Em vários lugares do mundo já existem guerras por conta do acesso e uso da água. Ou seja, nosso modelo existencial, se não for mudado radicalmente, levará à nossa destruição.

Karl Marx profetizou que o capitalismo com sua lógica predatória levaria à exaustão dos recursos naturais e sua autodestruição. A primeira parte da profecia já se cumpriu, veremos a segunda.

4 comentários:

  1. Nao se preocupe, Jesus está voltando para salvar todos nós!

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  2. De fato, a leitura dos textos de Poe e Baudelaire refletem uma inquietação constante, às vezes até inexplicável, ainda não tinha relacionado isso aos novos dilemas que acompanhavam a virada do século XIX para o século XX, principalmente no que tange a esse novo modelo de vida difundido pela burguesia.

    Excelente texto, Henrique!

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  3. Este comentário foi removido pelo autor.

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  4. Brilhante professor !
    A questão é esperar que um dia a lógica marxista faça sentido na vida das pessoas que não conseguem abrir os olhos pra essas práticas ferozes.Como já dizia Hobbes :"O homem é lobo do próprio homem",sendo assim propenso a autodestruição.
    Saudade de suas aulas :)

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