Sara era uma mulher obstinada
quanto aos seus planos de vida. Estudiosa, determinada, todos os dias acordava
as 6h da manhã com seu iphone de última geração tocando Valsa das Flores, de Tchaikovsky.
Era uma forma de tentar manter algum tipo de equilíbrio interno e começar bem o
dia estressado que viria pela frente. Tinha dificuldades de se levantar da cama;
a preguiça como antítese do sucesso lhe era um empecilho, mas sempre se desvencilhava
deste pecado capital, levantava-se com a fronte no horizonte e seguia até o
banheiro para a primeira ducha do dia, aquela que prepara a alma para o labor.
Preocupada com seu peso,
caminhava todos dias 1h com o mesmo iphone ao ouvido continuando a escutar a
melodiosa valsa. Era como se a proteção, o invólucro melodioso a protegesse do
barulho da cidade, associada à competição, disputa, anti-comiseração. Se dava conta ao longe que o
excesso de peso lhe era um inconveniente pela aparência, pelos problemas de
saúde, indisposição, mas sobretudo por ter lido num livro de autoajuda que a
gordura é uma espécie de proteção da vida, na verdade uma barreira separando o ânimo
do contato com o mundo, uma espécie de salvaguarda. O problema é que esse
isolamento traz lá suas consequências como doenças e uma sub-reptícia auto-sabotagem,
quer dizer, se proteger do mundo, na verdade se isolar, também é uma forma de se
eximir de qualquer responsabilidade para consigo e com os outros.
O que Sara buscava entender
todos os dias era porque ela havia engordado tanto nos últimos anos. Ela queria
se proteger e se eximir do que? No fundo ela sabia, era perspicaz demais para
não notar a doença de sua mãe, no fundo não havia doença alguma a não ser a
mesma obesidade que grassava a família impedindo-a de se locomover e viver a
vida como sempre fizera. Visitar a mãe era uma tormenta, pois ao vê-la naquele
estado sentia uma profunda inquietação, irritação, perdendo a paciência com
alguns minutos de contato. O excesso de reclamação da mãe, de tudo e de todos,
era o pretexto para a não visita frequente, quando no fundo, se trata de uma
situação de um espelho invertido, ou seja, ao ver a mãe naquele estado ela
projetava seu futuro de tamanha dependência e obesidade e não gostava do
retrato que via. A irritação no fundo era com ela mesma.
A gordura no corpo de
Sara era apenas uma das auto-sabotagens, apesar da vida ter-lhe beijado e tudo
ter se aberto como um arco-íris. Focada, todos os projetos de vida haviam sido
conquistados, era o que podia se chamar de pessoa feliz, com paz de espirito, exceção
quando visitava sua mãe. Mesmo Sara sendo uma pessoa extremamente respeitada
ainda havia alguns senões na sua trajetória de vida bem sucedida. Ainda que competente
em seu trabalho por vezes era contumaz desbriar-se em mentira, tornando-a quase uma misantropa.
A mentira era uma forma
de manter o grau aparente de credibilidade no que falava e fazia. Era como se
não saber de certas coisas no ambiente de trabalho soasse quase como um ato
falho, uma confissão de imperfeição, de não logro com êxito em tudo o que
fazia.
Por isso Sara todos os
dias ouvia Valsa das Flores, para que as flores da melodia saltassem da música sinesteticamente e perfilasse suas veredas até o trabalho e à casa de sua mãe.
A repetição do ato era quase uma oração, um pedido contido de socorro a si
mesma, lutando internamente entre o desejo de querer ser e a condição de estar-em-devir
ser.
Os momentos de caminhada
sozinha era um dos raros durante o dia que procurava ouvir sua voz interna, num
processo sincrônico de queimar calorias em busca de uma saúde e corpo melhores para
em seguida desvariar-se em grandes pratos de comida eliminando o esforço das
primeiras horas matinais. Uma gangorra, uma vida ciclotômica, uma incompreensão
entre o ser e o querer estar.
Caminhar todos os dias
era assepsia, arrumando as gavetas internas profilaticamente jogando fora o que
não servia mais, riscando os obstáculos já ultrapassados e visualizando os que
ainda restavam. Todas as vezes que comia um grande prato de comida se martiriza,
mas não desistia da ideia de eliminar as gorduras novas acumuladas com a caminhada
do dia seguinte. Quando se irritava com sua mãe procurava mentalizar um próximo
encontro mais afável e menos tenso. Todas as vezes que se pegava mentindo
assistia um filme de ficção e se imaginava como uma das personagens que nunca
foi ao espaço, mas todas as vezes que se encontrava com amigos contava histórias
de um mundo ainda inexplorado. Se perdoava e se imaginava num lugar idílico,
noutra galáxia, onde mães não adoecem e nem engordam, guloseimas estão por toda
a parte e pode-se comê-las sem culpa e ... mentir.... é apenas idealizar uma
condição diferente das condições objetivas da vida.
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