Adonay Ramos Moreira
De todas as verdades ditas sobre Kafka esta
nos parece uma das mais plausíveis: não há outro escritor no século XX que
tenha maior grandeza literária do que ele, pois em sua obra a solidão, o medo e
o desespero não são uma máscara, mas a própria face.
É
quase impossível ler Kafka sem se sentir incomodado pela vida. Precisa-se ser
um monstro de indiferença para não sentir a angústia que emana de suas páginas.
Uma hora apenas lendo seus textos e pronto: o estrago está feito.
Costumamos avaliar uma obra de arte pelo
valor estético que ela possui, e não raras vezes sentimo-nos quase tontos ante
uma obra para a qual nossos instrumentos de análise se mostram inúteis.
Chegamos mesmo a bradar contra isso, e não sem desespero percebemos que, em
matéria de Arte, toda razão não é apenas inútil, mas, sobretudo, infantil. Pois
toda obra de arte é incomunicável, e se deixa ver (e não se revelar) apenas por
aqueles cuja existência lhes é um peso: apenas esses raros seres feitos de
solidão e angústia podem tocar algo nesse corpo a um só tempo fascinante e
absurdo chamado Arte.
E apenas um leitor que corresponda a essas
expectativas pode – de fato – respirar o perfume doce e mortal do texto
kafkiano, sem que, com isso, incorra em suicídio, e morrer ainda seria pouco,
pois sequer sabemos o que nos espera (se é que algo de fato nos espera) do
outro lado da vida, e essa ideia de solidão e repulsa nos parece de tal modo
insuportável que aos poucos nos afastamos, e apenas por constrangimento
reprimimos o soluço que se forma em nosso espírito: porque é preciso viver,
mesmo que isso não faça nenhum sentido.
E é dessa solidão incomunicável que padece
os personagens kafkianos. Não é o fato de se encontrarem em um mundo ainda mais
absurdo do que o nosso que os isola, mas – sim – o fato de não poderem se
comunicar. E quase todo o drama de Kafka parece consistir nisso: nenhuma
comunicação – por mais necessária que nos possa parecer – é possível, e sua
necessidade (que, é verdade, existe) torna a vida de seus personagens ainda
mais terrível.
Nada é mais angustiante do que o silêncio
involuntário do senhor Gregor Samsa, o caixeiro-viajante da novela “A
Metamorfose”. Ali, a negação da fala se confunde com a negação da própria vida,
pois o que resta a um ser diferente e – aos nossos olhos, tão-somente aos
nossos olhos – grotesco, quando tudo de útil lhe escapa, senão a linguagem,
única arma com a qual a defesa nessa situação parece possível?
Falar seria a única maneira de convencer os
seus e o mundo de que tudo aquilo não passa de um engano, que a forma em nada
deforma a essência, e que a humanidade, a verdadeira humanidade, é
incorruptível.
Mas o silêncio, a precipitação e o medo
jogam por terra todo ser. Por mais que no fundo o homem permaneça inalterado,
sua imagem não é mais reconhecível, desapareceu numa teia fria de engano e
aparência, e apenas Samsa, ninguém mais ninguém menos que Samsa, sabe disso. E
é esta a mais terrível das solidões: a solidão que deseja se comunicar, que é
quase um grito. É quase impossível não sentir um certo arrepio diante disso,
dessa forma tão nua – e ao mesmo tempo tão verdadeira – de ver o mundo.
Parece mesmo que, para alguns homens
instruídos e racionais, desses que têm mais ou menos umas cinco teorias para
explicar o fenômeno da vida, tudo isso que acabamos de dizer se revele algo
absurdo, exagerado e sem graça. Mas esse pensamento pode valer um mundo.
A diferença entre a Arte e a vida é que
aquela parece fornecer ao homem alguma finalidade, ao passo que esta, por mais
que a ela nos apeguemos como verdadeiros parasitas, não nos comunica nada. E se
levarmos essa máxima ao mundo fantástico do senhor Kafka, chegaremos sem
nenhuma dificuldade à visão de que, nele, nem a Arte nem a vida escondem em seu
ventre alguma finalidade. Tudo nele, quer na vida quer no pensamento, é árido,
cansativo, peca pela negação e – sobretudo – transmite um silêncio perante o
qual uma existência frágil não encontra outra alternativa senão sucumbir.
Sucumbir. Eis um verbo que reflete a
atmosfera kafkiana, uma vez que seus personagens não resistem à vida, e no meio
de sua solidão – que chega mesmo a ser-lhes uma parte essencial de seus corpos
– entregam-se à derrota. É assim com Samsa; assim é com Joseph K., personagem
central do romance “O Processo”. Joseph K. é de tal modo vencido pela vida que,
nas suas últimas horas, nem sequer mais resiste. A solidão já lhe consumiu
qualquer chama de felicidade. Pois em Kafka o amor também é inútil, e se seus
personagens chegam a amar, isso não passa de uma brincadeira, são jogos de uma
criança que reluta tornar-se adulto, como se a idade lhe minasse toda
possibilidade de sucesso.
Ao longo do caminho que o leva à morte
(dessa morte que consegue ser ainda mais absurda do que a comum, que é a que se
distribui a todas as gentes), Joseph K. não é só um condenado, ele é a prova
incontestável de que, para Kafka, toda luta é inútil. Uma pedra, um galho seco,
um cão, qualquer coisa que porventura se lhe revelasse não conseguiria
comunicar-lhe outra coisa senão solidão, solidão e mais solidão. Não é preciso
ser grande para sentir mais ou menos o que K. sente. Basta ser humano, pois
nenhum sentimento é inacessível quando a ele tentamos chegar por meio de nossa
humanidade.
Um instante depois: a morte. Somente a morte
é o triunfo dos que vivem. Por um momento, alguém distante abre a janela. É
apenas mais uma brincadeira do Destino, uma atroz brincadeira, que deixa na
boca o gosto de sangue. Até que, enfim, tudo está consumado. “A luz apagou”,
disse certa vez Drummond em um de seus poemas. Mas em Kafka não apenas a luz se
apaga. É o próprio Universo que parece entrar em erupção. “Como um cão!” –
brada Joseph K. no instante quase imperceptível entre a vida e a morte. Mas se
enganam os que pensam que se trata de uma dúvida tudo isso. Pelo contrário. É a
certeza que o aflige, humilha-o de modo insuportável. A vergonha não está no
fato de ser derrotado (pois nós a isso condenados também estamos) mas – sim –
pela forma como tudo isso se configura, pela impossibilidade de defesa, pela solidão
na hora da morte, pelo verdadeiro desprezo que seus concidadãos parecem nutrirem
em relação ao seu destino. Mas: algum homem o entenderia?
Isso se
configura um tema para um outro texto. O que por ora queremos dizer é que
nenhum outro artista das letras do século passado desenhou tão bem – sob o
símbolo da solidão – a marca do estranho destino dos homens sobre a terra. E
agora mais do que nunca vemos a certeza disso. Kafka talvez, apenas talvez, se
alegraria ao ver o quanto foi profeta em sua obra. Mas mesmo na maior alegria
ainda se sentiria triste, pois sua dor não é externa, mas parte inalienável de
seu ser; a dor é sua própria essência.
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