Quando da passagem do fim do império romano e o início da
construção da cristandade ocidental, três escolas de pensamento foram
instituintes para a noção de felicidade: o hedonismo, o epicurismo e o
estoicismo. A primeira sustentava que a felicidade era uma extensão do prazer
absoluto; o epicurismo,
a busca do prazer moderado com vista ao equilíbrio; o
estoicismo sustentava que o homem deveria suportar as auguras da vida, ter
contrição, restrição como forma de aquisição do conhecimento.
Concepções advogadas desde os pré-socráticos, tais escolas
tiveram um papel importante no balanço da construção da medievalidade cristã.
Calcada sobretudo no estoicismo, o cristianismo ocidental levou ao extremo a
noção de resignação. A partir do princípio de que os homens eram indignos do
projeto salvífico de Cristo, vide que graça é algo que se recebe sem
merecimento, logo, todo esforço com vista ao galardão celestial era inglório,
grosso modo, o homem medieval era
temeroso, atormentado pela culpa, pelo medo do inferno.
A modernidade enquanto projeto civilizacional é o momento de
desencantamento do mundo, do fim da magia, ou seja, da passagem do homem como criatura para a condição
de criador, repetidor dos elementos da natureza, é também um instante de
redescoberta dos prazeres da vida, da prática da nova vaidade, dos contratantes
de pintores para autorretratos,
cultores da boa mesa, dos bons livros e costumes. Era o processo de redefinição
do cristianismo e das derivações disso: trabalho, economia, lazer e, claro,
religião.
Depois vieram a exacerbação do luxo da aristocracia europeia,
das feituras cortesãs, dos escândalos de extravagância com o erário ao passo
que a população francesa minguava a pão e brioche. Tais
escândalos contribuíram para a eclosão da Revolução Francesa quando
os pobres descobriram que os ricos festavam a vinho, música e sexo, enquanto estes passavam fome.
Logo depois, a partir da era vitoriana, inicia-se a belle époque e o desfrute da vida moderna, o
encantamento com o novo, com o que provocava espasmo, o que levou por exemplo
Baudelaire a se transformar num voyeur,
num observador astuto, privilegiado dos novos sentimentos que a vida passava a
portar. Era um momento de supressão do passado, de euforia quanto ao futuro, da
certeza de que o progresso traria a felicidade tão desejada e esperada pelos
homens, menos para as críticas e desconfianças de Karl Marx e posteriormente de
Nietzsche.
O século XX, que
Hobsbawn denominou de o século breve, a era dos extremos, foi até então o mais
radical dos tempos no que se refere à capacidade humana de vivenciar experiências novas, de
ultrapassar seus próprios limites e a se experimentar de tudo. Não havia
limites para a experienciação humana, não havia mais nada que os homens e
mulheres pudessem inventar para sanar a necessidade de sentimento de prazer e
de descobertas.
No entanto, isso trouxe sérias e graves consequências. A
sociedade da experienciação se transformou na sociedade da deceção, ou seja,
naquela cuja descoberta de seus desejos e potencialidades tornaram homens e
mulheres reféns da busca pelo prazer e felicidade a todo custo, com uma grande
incapacidade de lidar com suas frustrações.
A questão é que o capital propugnou e condicionou aos homens
e mulheres o consumo como remédio e mediação da felicidade, logo,
tudo se transformou em mercadoria, logo, quando a mercadoria não satisfaz à
saciedade humana emerge a deceção, a frustração.
A sociedade contemporânea consumista possui uma imensa
incapacidade de enfrentar seus medos, angústias, desafios e temeridades.
Recorre a todo e qualquer custo a aparatos, placebos, ferramentas que lhe
propicie a fuga das dificuldades da realidade. É uma sociedade altamente
doentia, narcisista, individualista, hedonista no sentido de que o prazer sob
qualquer circunstância justifica os fins para supressão de suas incapacidades.
É uma sociedade imediatista, impaciente, acelerada,
descartante de tudo que julga descartável, inclusive pessoas. Não se trata de
condenar o hedonismo, mas de se questionar qual o problema em se enfrentar
problemas, sobretudo quando estes nos dizem respeito.
Os limites do capital enquanto variante promotora da felicidade dão
mostras desde meados do século XX que não supriram nossas carências, ao
contrário, aumentaram a lógica da competitividade, da agressividade e,
consequentemente, das frustrações, vide que ela é a promotora da pletora noção
de vida feliz, como se a felicidade pudesse ser comprada numa gôndola de
supermercado.
A questão não é o hedonismo em si, prazer é uma condição
axial humana, e sim, quando o hedonismo é encapsulado pelo capital como
instrumento mercadológico e instrumento da felicidade, outrora coletiva, hoje,
cada vez mais individualizada. A individuação é uma marca não da construção da
subjetividade, do sujeito, mas do indivíduo como categoria jurídica, política, financeira.
O problema se torna ainda mais agudo quando o pusilânime conceito
de cidadania entra em cena. O que é ser cidadão? Ser consumista das lógicas e
das ofertas políticas do jogo democrático. Há a democratização das
possibilidades, mas há também paralelamente a privatização dos meios, por isso
as frustrações, depressões e angústias.
Felicidade é uma condição subjetiva, no entanto, os
indicadores de violência, de depressão, de suicídios, de atentados de
toda ordem, de banalização da vida, dão sinais que o projeto hedonista
consumista verteu água.
Quando vamos acordar dessa letargia?
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