Caros leitores, no dia 19 de abril, às 19 hs, na galeria do SESC Deodoro, São Luis-MA, será lançado o livro: A cidade e a memória: as representações artísticas formando a identidade ludovicense, de autoria de Raimunda Fortes e João Carlos Cantanhede.
Abaixo, o texto prefácio que tive a honra e o privilégio de escrever.
Prefácio
Os
linguistas não são os únicos a suspeitar da natureza linguística da imagem; a
opinião geral também considera – confusamente – a imagem como um centro de
resistência ao sentido, em nome de certa ideia mítica da Vida: a imagem é
representação, isto é, ressureição, e sabe-se que o inteligível é tido como
antipático ao vivenciado.
Roland
Barthes, O óbvio e o obtuso.
Italo
Calvino em As cidades invisíveis e
Jacques Le Goff em Por Amor as cidades
colocam no horizonte um axioma acerca da relação que a sociedade tem com a
questão da sociabilidade; a convivência, a aprendizagem, a dizibilidade, a
visibilidade da manifestação espiritual humana dá-se no exercício comutativo de
interagir, de aliterar, e as cidades são por excelência o espaço de
experimentação dessas sensações.
Italo
Calvino de forma sensível ainda nos chama a atenção ao fato de que, dentro de
uma cidade existem outras, por vezes invisíveis, e Jacques Le Goff por seu
turno afirma que são elas o lugar indelével de manifestações, dentre elas, as
artísticas.
Por
que manifestar-se espiritualmente através da arte nas cidades? Ora, muitas
cidades como diria Le Goff, são a própria manifestação do amor à arte, ou são
uma expressão artística do amor pela e para as cidades.
As
cidades são o palco da grande experiência humana. Nelas tudo se transmuta,
reverbera. Há cidades que são verdadeiras expressões artísticas.
Por
isso, o Renascimento demarca a passagem da condição coletiva de significação
subjetiva humana para o surgimento de uma nova individualidade. Antes, na época
medieval, as casas não representavam a ostentação, a riqueza, sequer como
expressão da singularidade da família, por isso não havia cômodos que
separassem grosso modo os compartimentos.
Na
época moderna, uma mudança conceitual sobre a casa é demonstrada na divisão dos
compartimentos; na sala de espera, nos terraços, e claro, na exposição dos
quadros pintados expostos em várias partes. Antes, era impensável alguém
contratar um pintor para um auto-retrato, a arte deveria apenas expressar a
magnitude de Deus. Dali em diante não, a fé em Deus não dirimia a vaidade de
uma auto-imagem. De novo a arte representava uma mudança no imaginário daquela
sociedade.
A
expressão da nova casa também estava encetada na cidade. As cidades
renascentistas são verdadeiras exposições de obras de arte a céu aberto.
Essa
atitude revelava, para usar uma expressão de Roland Barthes, a antipatia do
inteligível em relação ao vivenciado, no que tange a condição da imagem
enquanto representação.
Michelangelo
foi criticado pela cúpula da igreja católica ao iniciar a pintura da capela
sistina colocando Deus, anjos e homens nus, revisitando a arte grego-romana,
tendo que combater tal critica afirmando que o pecado morava em quem enxergava
imoralidade nisso, nele não, era um artista. Os renascentistas na fase dos
seiscentos são acusados de perdulários, esnobes, pois contratavam pintores para
a exposição de suas vaidades, um pecado contra Deus.
Arte
e cidade sempre andaram juntas. Os estudos indicam que a pichação já existia na
Roma antiga. Voltando no tempo, pode-se afirmar que as pinturas rupestres sejam
possivelmente as primeiras manifestações pictóricas em murais, no caso, o fundo
das cavernas, espaços de convivências dos hominídeos.
Ao
ler a obra: A cidade e a memória: as
representações artísticas formando a identidade ludovicense, de autoria de
João Carlos Cantanhede e Raimunda Fortes, tive o delicioso prazer de visualizar
como em São Luís as questões levantadas acima acerca da relação entre arte e
cidade se configuraram na supracitada, e o resultado de como isso se
estabeleceu é de encher os olhos.
Trabalhos
como Veredas Estéticas: fragmentos para uma história social das artes visuais
no Maranhão, de autoria de João Carlos Pimentel Cantanhede, 2008, de forma
louvável, já havia impulsionado a análise acerca do panorama das artes no
Maranhão.
Outros
trabalhos também demarcam registros sobre a arte na cidade de São Luís e no
estado do Maranhão, tais como: Arte do Maranhão: 1940-1990, do Banco do Estado
do Maranhão, publicado em 1994; Reviver, 1994; o famoso álbum O Maranhão em
1908, de Gaudêncio Cunha; A arte da cidade, de 2000; Cronologia das artes
plásticas no Maranhão (1842-1930), de autoria de Luiz de Melo, 2004; e, não
poderia deixar de mencionar, a obra escultórica de Newton Sá, de autoria de
Raimunda Fortes, de 2001.
Esses
e outros trabalhos compõem o mosaico da condição artística no Maranhão, frutos
de pesquisas demonstrando a real necessidade de mais estudos, sobretudo pela
precariedade da preservação das artes no Estado, nem tanto nos espaços de
conservação; museus, galerias, congêneres, mas pelas obras que estão expostas
nas ruas da cidade de São Luís.
A
obra de João Carlos Cantanhede e Raimunda Fortes é como o filme sobre Goya, que
ao folhear suas páginas, vendo as obras, sentimo-nos como o artista espanhol
levava para a tela a expressão de sua condição existencial, não escapando das
interferências de sua Espanha.
Na
obra desses autores pude ver como a cidade de São Luís tem sido representada ao
longo dos tempos, desde os idos coloniais até a contemporaneidade. Uma das novidades
desse livro é que história e memória são elementos compósitos da expressão
artística, ou seja, como a história e memória de São Luís foram sendo
encapsuladas pelo víeis dos artistas.
Na
mesma pincelada tomam as imagens literárias oitocentistas. O que os poetas,
romancistas, escritores de modo geral e suas representações discursivas disseram,
são usados na composição desse mosaico chamado São Luís. Assim, Francisco Nossa
Senhora Prazeres Maranhão, autor de Poranduba Maranhense, e Henri Koster,
viajante cujo relato sobre a cidade data de 1811, dentre outros, aparecem ao
lado daqueles que edificaram uma memória sobre a urbe através das artes
plásticas.
A
obra ao correlacionar literatura como expressão pictórica mescla o quanto essas
artes se imbricam. A literatura influencia o olhar dos artistas plásticos ou, o
fato dela, a literatura, ser construtora de um discurso histórico e
memorialístico sobre a cidade penetra nas retinas dos artistas? Ao pintarem um
quadro seus olhares veem a paisagem urbana ou a paisagem é construída pela
literatura?
O
mesmo raciocínio poderia levar para a fase da representação imagética via
fotografia. Fotógrafos como Gaudêncio Cunha já estavam embebecidos pelos
sentidos sociais construídos acerca da cidade. Arrisco-me a dizer que ele não
fotografa uma paisagem, ele pinta uma cena pelas suas lentes de uma São Luís idealizada
que já estava na sua mente.
Por
isso, o desejo de modernidade enquanto frenesi elitista ludovicense está
presente em suas fotografias. A escravidão já não existia, mas suas marcas eram
visíveis. Era como se, transposto dos desenhos de figuras típicas do Maranhão,
como os escravos, tão recorrente na metade do século XIX desaparecessem, ou
melhor, na fotografia tirada da paisagem urbana, os escravos fossem uma imagem
ausente, apagando-se lentamente do papel em branco e preto.
O referido trabalho tem outros méritos. Ao
fazer um apanhado da produção artística sobre a cidade enquanto construtora de
um sentido histórico e memorialístico na confecção sobre a identicidade
ludovicense, os autores nos mostram imageticamente como a fundação da cidade de
São Luís é coletiva, e não francesa.
A
cidade é múltipla, partida, não é uniforme, existe até aquela São Luís que não
se vê ou não se quer ver, literalmente, invisível. O desejo de torná-la
unicamente francesa remonta ao que Paul Ricoeur tão apropriadamente criticou
acerca das comemorações.
Como diria
Paul Ricoeur em A
memória, a história, o esquecimento:
"Perturba-me o inquietante espetáculo que apresentam o
excesso de memória aqui, o excesso de esquecimento acolá, sem falar da
influencia das comemorações e dos erros de memória - e de esquecimento.
A ideia de uma política da justa memória é, sob esse aspecto, um de
meus temas cívicos confessos".
Referenciar
em tempos de 400 anos uma ênfase sobre uma fundação francesa sobre São Luís é a
mais ardilosa operação historiográfica de construção de memória. Ainda bem que
a obra de João Carlos Cantanhede e Raimunda Fortes nos mostra outra imagem,
outras, literalmente.
Isso fica
evidente quando sob uma justaposição os autores comparam pinturas antigas da
cidade com cenas contemporâneas. As obras de arte nos mostram como existem
várias cidades dentro de uma mesma e que como ela se metamorfoseia ao longo dos
tempos, como não existe uma fundação, mas fundações, já que enquanto organismo
vivo, pulsante, dinâmico, ela se reinventa o tempo todo.
Portanto, São Luís não é apenas de origem francesa, é
portuguesa, holandesa, indígena, africana, açoriana (a África insular),
libanesa, cearense, é de todos que refundam seus espaços de convivência e
sociabilidade.
Roland
Barthes tinha razão: “a imagem é representação, isto é, ressurreição e sabe-se
que o inteligível é tido como antipático ao vivenciado”. Estão ai as pinturas,
as imagens sobre a cidade que não nos deixam mentir. Não existe apenas uma imagem
sobre São Luís, mas várias.
Leiam
o livro, sinta-se numa galeria de arte ou num museu imagético. A obra é uma
verdadeira pintura escultórica sobre São Luís. Uma homenagem verdadeira e
honesta, afinal, os que os olhos veem o coração sente.
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