terça-feira, 12 de junho de 2012

Entre ser e ter que ser: a interconexão entre as pessoas... Uma homenagem à minha amiga Patricia Luzio, a luzente


Entre ser e ter que ser: a interconexão entre as pessoas

Segundo o mito, Quíron é filho de Saturno (Cronos) e da ninfa Filira. O deus, para se esconder da esposa Reia, se metamorfoseou em cavalo para se encontrar com Filira: dessa união nasceu o centauro, metade cavalo e metade homem. Quando a mãe viu a criatura horrorosa que havia posto no mundo, pediu aos deuses que a transformassem numa coisa diferente: seu pedido foi atendido, e ela foi transformada numa árvore chamada Tília.

Quíron ficou abandonado: o pai fugiu, e a mãe não quis saber dele. Imortal, por ser filho de Saturno, Quíron sobreviveu, sendo encontrado por Apolo (deus do Sol dos gregos). Como pai adotivo, Apolo lhe ensinou todos os seus conhecimentos: artes, música, poesia, ética, filosofia, artes divinatórias e profecias, terapias curativas e ciência.

Adulto, tornou-se ele um grande sábio, profeta, médico e mestre, transmitindo seus conhecimentos a todos que desejassem aprender. Os heróis gregos (Hércules, Asclépio, Aquiles, Jason, etc.) foram pupilos de Quíron, assim como os filhos dos reis da Grécia. Ele era o ‘centauro chefe’ e o preceptor máximo, tanto das artes da sobrevivência, como da cultura, da filosofia, e passou a orientar e burilar o intelecto dos discípulos, ficando conhecido também por preparar os futuros heróis. Quíron era ainda expert no uso da medicina de ervas e plantas e em Astrologia. Ele tinha o poder de cura nas mãos, e o que não conseguia curar, ninguém mais conseguia.

Mas um dia, durante a festa de casamento de um filho de um rei, os centauros convidados se embriagaram e começaram a perseguir as mulheres, inclusive a noiva. Travou-se uma batalha entre os centauros bêbados e os convidados, entre os quais estava Hércules, que, acidentalmente, feriu Quíron, também presente à festa, com uma flecha, ou na coxa, ou na perna, ou no pé (há várias versões) ou seja, na parte animal do corpo. A flecha de Hércules, que havia sido banhada no sangue da Hidra (e sendo, portanto, venenosa), causou em Quíron uma ferida incurável; impotente para curar seu ferimento e não podendo morrer por ser imortal, ele começou a sofrer intensamente, recolhendo-se a uma gruta no monte Pélion onde, porém, continuou transmitindo seus conhecimentos aos discípulos.

E então, a partir do mito, aprendemos que o significado astrológico de Quíron abarca os arquétipos de Professor, Curador, Músico, Buscador, Mestre Astrólogo e Guia de Busca. Ele simboliza a autorrealização e a satisfação pessoal através de uma união holística da razão com a paixão, do intelecto com o instinto, do animal com o humano. Ele é estreitamente ligado com seu meio-irmão Júpiter, o tradicional regente de Sagitário e da Casa Nove – áreas do mapa astral ligadas com buscas de todos os tipos (http://tallerdechiron.blogspot.com.br).

A passagem acerca do mito de Quíron acima utilizada é uma analogia para a tangibilidade da relação entre as pessoas. O professor é aquele que, exposto na roda da vida do conhecimento, transmite aos alunos algo de valor, que no fundo serve em primeira instância para ele mesmo.

As profissões, para além de suas condições imediatas, ou seja, a inserção do mundo do trabalho exercida pelos profissionais, são também uma espécie de feixe de relações sociais, também no sentido durkheimiano enquanto condição para a existência de grupos. Porém, engana-se quem fizer uma leitura apressada de Durkheim quanto às noções de solidariedades mecânica e orgânica. O sociólogo não se referia apenas a uma ideia de sociedade como organismo vivo, cujas inserções no mundo do trabalho exercem um suposto equilíbrio, a la limite tal qual existente numa colmeia, afinal, foi ele quem denunciou as contradições da sociedade moderna ao pensar o suicídio. Ele também se referia era ao fato de que as noções de sujeito e subjetividade precisam ser repensadas.

Uma das bandeiras do liberalismo dos séculos XVII e XVIII foi a propugnação das noções de liberdade do mercado e do indivíduo. Claro, com o fim da ideia de salvação coletiva medieval e a emergência do protestantismo calvinista, o foco burguês passou a ser o indivíduo, plenipotente em suas escolhas, crente num projeto moderno de civilização, desfocado de uma noção de interação social, voltado agora para sua capacidade de lutar e construir projetos e da valorização de sua subjetividade – basta olhar a terceira fase do Renascimento na pintura: a fase dos autorretratos. Contratar um pintor para um autorretrato era não só ultrapassar o medo da vaidade do pecado, bem como acreditar na potência de que o “eu”, enquanto categoria, deveria ser estandartizado. 

Assim, um ideal burguês de indivíduo paulatinamente ganhava força consubstanciado numa ideia de liberdade de ação política e econômica, sem olvidar do crescimento do capitalismo pari passu a esse processo. 

O que Durkheime alertava era que o indivíduo de fato existe, mas dentro de uma margem muito pequena de manobra: indivíduo é na verdade o que fazemos com a somatória de informações que nos cercam, o resto é indivíduo-coletivo, ou seja, a rede que nos molda desde o nascimento abarca uma conjugação de fatores e pessoas de que não nos damos conta: família, escola, bairro, ambiente de trabalho, faculdade, lazer, etc. 

Se tomamos a concepção jungiana de arquétipo a questão se agudiza. Se o primeiro homem está em nós, então a noção de individualidade perde ainda mais o sentido, sim, pois parte então do que achamos que é nosso na verdade não é, pertence ao coletivo, ao imaginário social. 

Josefina Ludmer, escritora argentina, trabalha com a noção de criação coletiva. Para ela não existe criação individual, a criação é sempre múltipla, posto ser impossível separar o que é nosso e o que foi apropriado de uma matriz indefinível, portanto, quando os Titãs, grupo de rock, cantam: as ideias estão no chão, você tropeça e acha a solução, estão evocando um princípio que vem de Platão: a cosmovisão do mundo das ideias está em todos os lugares. 

Na literatura, uma parte da teoria literária trabalha com o conceito de narratário, ou seja, existe um sentido do texto para além do escritor e do leitor, visto que a ideia, “o insight”, precisa apenas do escritor para ser verbalizado, colocado na cena humana, já que existia, ganha sentido próprio em cada leitor decorrente de sua compreensão sobre o que é, sobre o que existe. 

O que quero dizer é que quando tomamos uma atitude, as consequências não dizem respeito apenas às pessoas envolvidas diretamente com a decisão tomada, essa atitude necessariamente pode não ter nascido em nós, e fatalmente não atinge apenas as pessoas associadas, uma rede de relações está em jogo, já que o indivíduo existe dentre de uma comunidade de aferições sentimentais. O indivíduo é uno-múltiplo, nós estamos todos interconectados. 

Influências, inspirações, desejos, estão dentro de um jogo complexo de simbiose interacional, multidirecional. O conceito de comunidade imaginada de Benedict Anderson precisa ser mais bem analisado e faz muito sentido, não apenas porque pessoas de uma mesma nação não se conhecem, mas sobretudo porque estão ligadas por uma noção de afetividade social, nação, pátria, pertencimento. Isto implica dizer que quando pensamos em algo como próprio ou inato, em última instância tal atitude está alicerçada na proporção que tal atitude se relaciona com o meio, se a proporção foi muito grande, recuamos de tal decisão.

O mito de Quíron serve para compreendermos como ao mesmo tempo o curador é ferido, o que ensina, aprende, o que constrói, refaz-se, o que quer acertar, erra, quem julga já está se condenando, quem não ama, morre, quem morre, renasce. Quíron nasceu na fenda da existência; quem passa por essa fenda não tem cura, não tem jeito, não tem volta. Ele é fruto de uma aporia, ou seja, não-passagem. Algumas pessoas optam por existir a partir da fenda da existência, essa é a forma que escolheram para ajudarem os outros e entenderem a si mesmos.
   
A flecha de Hércules pode ter atingido Quíron acidentalmente, mas fatalmente ao nunca cicatrizar a ferida, tendo vergonha de expô-la, ele foi obrigado a lidar com suas deficiências, sua incapacidade de autocura, logo ele, um curador, aquele que se colocava na condição de ajuda do outro. 

Assim é o professor. Ao “ensinar” algo, ou ajudar no processo de aprendizagem cognitiva, é obrigado a repensar suas práticas, se aquilo que transmite eficazmente ecoa dentro dele. Por vezes, é obrigado a lidar com sua inexperiência, deficiências, limitações. As feridas abertas demarcam a condição humana, impõe limite a qualquer presunção de plenipotência. 


3 comentários:

  1. Belíssima analogia. Valeu!

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  2. Amado, parabéns pelo post!

    Diante da belíssima homenagem à nossa conversa, gostaria de complementar com mais um aspecto bem interessante de Quíron: infelizmente e não raro, nós - professores, psicanalistas, curadores de estilos variados, enfim, qualquer um de nós que tenha uma troca sensível com o Outro - vivemos um dilema bem dilacerante: achamos que não somos dignos de fazer esta troca! Afinal, como é que eu, na "baixeza" da minha humanidade, posso ensinar o Outro?

    Este era o cerne do drama de Quíron: como é que o Grande Sábio e Exímio Curador poderia ensinar e curar se, ele mesmo, é um Ferido Incurável? Pois é... assim como todos nós, o que nos possibilita a escuta atenta e a troca sensível com o Outro são exatamente as nossas fétidas feridas - sobretudo o que fazemos com elas...

    Tanto é que, na Astrologia, o Planeta Quíron pode revelar onde se encontra a maior ferida do indivíduo, como e quando ela se abre e, se ele exercitar lamber esta ferida pelo exercício constante de conscientização, torna-se apto a (atrair e) ajudar outras pessoas com as mesmas questões.
    Portanto, Quíron é um belíssimo exemplo e veículo de compaixão (do grego co-pathós, que significa "sofrer com")!

    Beijão

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