Era uma curva sinuosa a esquerda, perigosa, tanto mais por
ser de noite, sem faixas pintadas no chão, tendo as luzes dos carros no sentido
contrário ofuscando a visão. A irresponsabilidade em avistar a última mensagem
no celular denunciado por um sinal sonoro foi o suficiente para a roda
dianteira direita descer um nível da pista do asfalto ainda em reforma, fazendo
que o carro saísse da pista. Ele foi para o acostamento e quase caiu na
ribanceira. O estrondoso barulho da calha sendo rebatida pelos pinos do asfalto
rasgando-lhe a parte de dentro impedia o bólido de andar qualquer centímetro.
Era alta hora da noite, sozinho, na beira da estrada, tendo que trocar
pneu.
Com as mãos sujas depois de suspender o macaco, suado,
colocando o step, sentou-se no banco do motorista e deu a partida. Ao olhar as
luzes do painel deu conta pelo computador de bordo que a data indicara faltar
30 dias para a passagem de nível, sinal de que maus augúrios lhe sobreviria
durante esses dias. E assim foi.
Sensação de tédio, irritação, irascividade o acometera
desde o dia que o pneu furou na beira da estrada. Reticente, sabia que tudo
iria passar, precisava aguardar. Começou a questionar como seriam aqueles dias
restantes até a passagem de nível, o que o aguardava depois, como seria tudo
diferente.
Teria que ter paciência, aqueles dias eram teste de
paciência. Uma nova fase estava para nascer, o fim de um ciclo, uma nova era
surgiria. Antes, porém, problemas em pagar contas, animal de estimação doente,
problemas outros no carro, uma virose interminável e nada de alento para
aplacar as aflições do dia-a-dia. O cotidiano era esgarçante.
Sonhara em terminar tal fase voando, como um passarinho,
assim se libertaria da carapaça de um ciclo inteiro de uma roupa velha que já
não lhe servia mais, como se fosse um retrato desbotado jogado num canto de
birô cansado.
Quando completaram-se os trinta dias, olhou pra o céu na
tentativa de voar e só avistou negras nuvens, turvadas de chumbo como se fosse
um prenúncio de dilúvio. Não seria daquela vez que imitaria os malabaristas de
pena, acrobatas do ar.
Então, o jeito vou imaginar seu próprio voo interno,
daqueles de rasgar a camisa como se fosse o super-homem, batendo asas para o
alto, como uma cotovia a enfeitar o penacho da cabeça, sentir o vento beijando
o rosto, sem o peso dos pés tocando o chão e deixando-o para trás, avistando a
velha roupa que não lhe servia mais, enxergando lá de cima uma geografia de uma
nova cidade, a sua, a interna, cheia de ruas e labirintos, mas cujos traços
dessa vez fora ele mesmo quem traçou.
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