quinta-feira, 14 de novembro de 2013

passagem de nivel

Era uma curva sinuosa a esquerda, perigosa, tanto mais por ser de noite, sem faixas pintadas no chão, tendo as luzes dos carros no sentido contrário ofuscando a visão. A irresponsabilidade em avistar a última mensagem no celular denunciado por um sinal sonoro foi o suficiente para a roda dianteira direita descer um nível da pista do asfalto ainda em reforma, fazendo que o carro saísse da pista. Ele foi para o acostamento e quase caiu na ribanceira. O estrondoso barulho da calha sendo rebatida pelos pinos do asfalto rasgando-lhe a parte de dentro impedia o bólido de andar qualquer centímetro. Era alta hora da noite, sozinho, na beira da estrada, tendo que trocar pneu. 

Com as mãos sujas depois de suspender o macaco, suado, colocando o step, sentou-se no banco do motorista e deu a partida. Ao olhar as luzes do painel deu conta pelo computador de bordo que a data indicara faltar 30 dias para a passagem de nível, sinal de que maus augúrios lhe sobreviria durante esses dias. E assim foi. 

Sensação de tédio, irritação, irascividade o acometera desde o dia que o pneu furou na beira da estrada. Reticente, sabia que tudo iria passar, precisava aguardar. Começou a questionar como seriam aqueles dias restantes até a passagem de nível, o que o aguardava depois, como seria tudo diferente.

Teria que ter paciência, aqueles dias eram teste de paciência. Uma nova fase estava para nascer, o fim de um ciclo, uma nova era surgiria. Antes, porém, problemas em pagar contas, animal de estimação doente, problemas outros no carro, uma virose interminável e nada de alento para aplacar as aflições do dia-a-dia. O cotidiano era esgarçante. 

Sonhara em terminar tal fase voando, como um passarinho, assim se libertaria da carapaça de um ciclo inteiro de uma roupa velha que já não lhe servia mais, como se fosse um retrato desbotado jogado num canto de birô cansado. 

Quando completaram-se os trinta dias, olhou pra o céu na tentativa de voar e só avistou negras nuvens, turvadas de chumbo como se fosse um prenúncio de dilúvio. Não seria daquela vez que imitaria os malabaristas de pena, acrobatas do ar. 

Então, o jeito vou imaginar seu próprio voo interno, daqueles de rasgar a camisa como se fosse o super-homem, batendo asas para o alto, como uma cotovia a enfeitar o penacho da cabeça, sentir o vento beijando o rosto, sem o peso dos pés tocando o chão e deixando-o para trás, avistando a velha roupa que não lhe servia mais, enxergando lá de cima uma geografia de uma nova cidade, a sua, a interna, cheia de ruas e labirintos, mas cujos traços dessa vez fora ele mesmo quem traçou.      











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