Quando realidade e ficcão não são o que pareçem
Um sonho insistente, recorrente a atormentar uma mente. Uma
gravata para desbravar uma bravata. Uma torrada ainda quente, um café descafeinado,
uma agenda cheia pela frente.
No carro aquele som que lembra aquele momento, na mente, a
lembrança insistente do sonho. E a dureza da vida nos faz achar que encher o
tanque do carro é mais real que os sonhos, que o trânsito parado, pagar as
contas, acumular capital, são a máxima expressão da vida, para muitos, a única.
Platão possivelmente foi o primeiro a sistematizar a noção da
existência do mundo das ideias. Para ele, o mundo cognominado como real era uma
derivação do mundo sensitivo, das ideias. Daí em diante, e sobretudo após a
construção da literatura diferente da história, a expressão prosaica da vida
abastardou-se da via poética.
Apareceram teorias metafísicas e sínicas acerca das
noções de representação, não apenas da realidade, como também das expressões de
um mundo não objetivo, que por sua vez são extensões da vida. Como a realidade
palpável passou a ocupar cada vez mais
a perspectiva da condução da vida, formas de elucubração, reflexão
filosófica passaram a ser antítese de um mundo dito real.
As tensões entre realidade e metafísica ganharam ares de divisão ancilar
quando Descartes fundou a ciência moderna, depois corroborado por Bacon e toda
a construção do mundo ocidental. Sonho e realidade, prosa e poesia, concreto e
abstrato, subjetividade e objetividade, conotaram
pares antitéticos como se a construção de um entendimento do mundo
necessariamente tivesse que ser separada, e não dual.
Quando a história se separou da filosofia e da literatura no
século XIX, no processo de entificação da ciência histórica,
as formas de concepção do mundo, corroboradas pelo embate entre Hegel e Marx
acerca da metafísica e do materialismo histórico dialético em construção, se tornaram ainda mais graves quanto ao que é real e o que é imaginário,
subjetivo. A ciência do século XIX, pautada no empiricismo, prometia
a felicidade e a verdade, prometia o desvelamento da vida calcado apenas na
tangibilidade do que a experiência sensorial e tátil poderia aferir, ou seja,
mais do que nunca prosa e poesia seriam antagônicas.
Até surgir a psicanálise e nos inquietar sobre o quanto os sonhos são
mais concretos do que imaginávamos. A literatura, o cinema, a poesia do século
XX nos revelaram mundos,
sentidos e sensações dantes nunca sentidos. O realismo fantástico e mágico, os
contos, crônicas, apontaram suas flechas para o mundo dito real, objetivo e
concreto desafiando-os no sentido de mostrar que a vida não se resumia ao
sentido das aparências.
Edgar Morin, em Amor, Poesia, Sabedoria, aventa
que prosa e poesia são linguagens distintas, porém, complementares. A prosa dá
conta da metodologia, da mecânica sistemática, da pragmática; a poética, do plano simbólico, do imaginário,
do sensível e não palpável.
A questão é a separação entre as duas dimensões.
Necessariamente não são antitéticas. A dimensão prática, objetiva, metódica é
uma dimensão da vida, qual a prosa, dentre ela, a histórica, dá conta, se atém,
oferece resultados, prefigura uma instância
de percepção do real. A poética, simbólica, denota o não revelado,
nem por isso fictício, irreal, apenas não compreendido.
Há um elemento que aproxima Platão, Hegel e Edgar Morin:
a ideia de que o que entendemos
enquanto realidade é ficção e a ficção é realidade. O que se
apresenta cotidianamente para nós no plano da objetividade, da realidade, são prefigurações do que existe no plano das
ideias. Portanto, a ficção não é o que não existe, e sim, a mais próxima
condição do que nós somos, ao passo do que se apresenta no plano do concreto é
um distanciamento do que nós somos. A crueza da vida são as acumulações dos
papéis sociais que assumimos, a vida não está no divã, mas no personagem
literário, no cinema.
Por isso que o cinema, a literatura, a arte em geral, também
expressam o que nós sentimos e precisamos o tempo todo recorrer a elas, não
apenas como catarse, como válvula de escape, como também porque no fundo
desconfiamos de que existe algo para além da praticidade da vida.
Os sonhos insistentes a atormentarem as mentes são o que de
mais próximo sentimos.
A gravata para desbravar uma bravata é uma ficção travestida no concreto da
realidade a nos mostrar o quanto as duas dimensões coexistem. Ambas necessitam
uma da outra, afinal, só damos conta do que sentimos, portanto de quem somos,
quando pela manhã, ao comermos uma torrada
quente, bebermos um café descafeinado, começamos a refletir sobre o que
sonhamos na noite anterior.
2 Comentários:
Henrique como faço para inscrever um projeto para o ciência e vida?
queres dizer resumo da apresentação né? não estamos recebendo projetos. escreve para ccpdarcyribeiro@gmail.com
te aguardo
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