domingo, 25 de outubro de 2015

O fechamento do curso de humanidades e os perigos da desrazão

Não existe primazia do conhecimento em nenhuma área do saber, a bem da verdade, nenhuma área pode se considerar dona da verdade ou do conhecimento. Aliás, qual conhecimento? O que é conhecimento? Que tipo de conhecimentos operamos, manipulamos e somos detentores? Tais questões, de fundo axiológico, são mais que necessárias porque assim conseguimos encontrar respostas plausíveis ou pelos menos satisfatórias às nossas divagações e indagações existenciais. Logo, ainda que não se trata de lógica cartesiana, axiológico e ontológico se confundem, posto que se nutrem.
Possivelmente foram os gregos a operacionalizarem um tipo de saber que depois eles mesmos cognominaram de razão. Há controvérsias, pois, como um povo imperialista, deteve informações privilegiadas dos povos que lhes eram paralelos, processou e, na derivação da construção do mundo ocidental, que venceu pela técnica, acabou se tornando “civilização clássica”, em decorrência de serem os pilares, ícones de um tipo de ethosque garantiu à Europa ser o centro do mundo, primeiro com o Renascimento, depois com o Iluminismo. Ainda assim, autores como Martin Bernal, em The Black Athena, denuncia como os gregos se apropriaram de práticas, como o teatro africano, a medicina egípcia e saberes da antiguidade, como se fossem deles e a Europa propositadamente “esqueceu” a África e Ásia.
Ainda assim, há algum mérito no chamado “Milagre Grego”, para usar uma denominação de Jean-Pierre Vernant. Tal milagre consistiria na passagem do mito para a razão e na criação de uma série de instrumentos racionalizantes que demarcariam o sentido de ser ocidental, tais como um tipo de história, de medicina, de teatro, um tipo de fazer e compreender a matemática, a physis, a bios, diferentemente do sentido de Zoé, dentre outros.
Foi no esteio desse processo de construção do conhecimento que, depois mesclado com o cristianismo, outro pilar do mundo ocidental, surgiram movimentos como o estoicismo, epicurismo e hedonismo, conspurcando o embate com o predomínio do mundo medieval cristão, se colocando na condição de condutor e intérprete do mundo. Se não fosse a razão, os pilares de uma teologia claudicante e obscura possivelmente perdurariam por muito mais tempo.
A dúvida sempre foi o princípio norteador do conhecimento, qualquer que seja ele. Exatamente por conta da dúvida, tudo o que existe passou por processos de ressignificações, ampliando o leque de possibilidades imaginativas, criativas, consequentemente, aumentando o repertório de tudo o que se sabia e se sabe até então.
Na Grécia Clássica, o filósofo, amante da verdade, não segmentava o mundo em partições especializadas como se fosse alquebrado ou segmentado. Aliás, foi por conta do holismo que pré-socráticos iniciaram o filosofar, já que a dúvida da física, da matemática, da biologia seria o esteio da pergunta: quem somos, de onde viemos?
Curioso, e não é coincidência, que a fragmentação do conhecimento se deu exatamente com o advento da modernidade e o surgimento do capitalismo. Nada mais razoável, o capitalismo em sua fase embrionária necessitou da especialização do trabalho, por isso ramificou artesanato, manufatura e finalmente maquinofatura, conspirou para o surgimento dos estados nacionais, necessitou de um Direito mais positivo e não apenas o coesitudinário, inventou a imprensa, pois aniquilou a palavra como princípio jurídico de acordo legal e comprobatório, reinventou a economia, deixando de ser a condução da casa para ser a do estado, “modernizou” a condição do trabalho, pois necessitava de mais eficiência, e, não menos importante, fragmentou o conhecimento entre exatas, naturais e humanas, pois precisava de um tipo de especialidade que nutrisse as descobertas cientificas para o pleno funcionamento da máquina a vapor, das minas de hulha, carvão, para o desenvolvimento da industrialização.
Sim, foram as ciências exatas e naturais os pilares do desenvolvimento técnico e tecnológico que impulsionaram o desenvolvimento do capitalismo. Por esta razão, o século XIX colocou-as acima das humanas porque seus resultados eram precisos e verificáveis.
Até aparecerem Karl Marx, Max Weber, Durkheim, Freud, Nietzsche denunciando os horrores da civilização, as contradições e falácias do progresso, apontando os problemas como a miséria, a exploração da natureza, o suicídio, a religião apoiadora do capital e da burguesia, a alienação do homem pelo trabalho e tantas questões que marcariam os debates da filosofia, história, sociologia, antropologia.
Anunciaram inclusive os limites do progresso e não tardou para que “suas profecias” se concretizassem com a I Guerra Europeia (Mundial), o fascismo, nazismo, totalitarismo em geral, a grande depressão de 1929.
O que seria do mundo sem o marxismo, a psicanálise, a literatura e suas intervenções (formalismo russo, teoria dos signos, crítica literária, teoria literária etc), sem o estruturalismo, pós-estruturalismo, multiculturalismo, pós-colonialismo, existencialismo, sem as inúmeras teorias e correntes do pensamento na cultura e nas artes que colocaram na berlinda a condição humana, indagando exatamente para onde íamos e estávamos caminhando, e ainda estamos?
Se não fosse o pensamento reflexivo, em parte derivado do conhecimento das humanidades, ainda que em crise contemporaneamente, perderíamos a capacidade de contrapor tudo que é imposto pelo estado, aceitaríamos as coisas como se fossem naturais, quando sabemos, exatamente por conta também do conhecimento das humanidades, que tudo é cultural e não natural.
Aqui não se trata de nenhuma defesa cega das cognominadas áreas das humanidades, ao contrário, estão em crise exatamente pela perda da capacidade de dizer algo novo diante da falência de um modelo civilizacional, mas o que me espanta é a proposta no Brasil de retirada dos conteúdos de História Antiga e Medieval do currículo de história, a proposta do Japão de acabar com os cursos de Humanidades e o fato de a Austrália ter substituído as aulas de História e Geografia por aulas de programação.
Se, por um lado, as ciências humanas contribuíram para uma concepção de mundo, por exemplo, calcado no princípio iluminista, prometendo a paz, a felicidade e a evolução, tornando tais princípios quase dogmáticos, ideológicos, contra humanos, por outro, a capacidade autocrítica do conhecimento permite repensar o percurso trilhado, estabelecendo embates internos, num processo infinito de construção de novos saberes.
Ora, acabar com os cursos de humanidades ou substituir seus conteúdos de História e Geografia por Programação constitui uma distopia, ou seja, uma ausência de utopia, e neste aspecto trata-se de uma atitude muito mais perigosa que os princípios que as ciências humanas construíram até então, vide tais ramos do conhecimento terem por princípio a própria capacidade negadora de seus fundamentos, quer dizer, tem como horizonte a autorreflexão, crítica e dúvida. Além do que, pergunto: o que constituirá as aulas de Programação? Quem programará? O que será levado em consideração? O que deve e constitui um currículo? O que é ensinar? Para que ensinar? Quais valores deverão constar num conteúdo de programação? Quem norteia e estabelece o que deve ser transmitido?
Não se trata tampouco de uma atitude coorporativa, de quem tem medo de perder o emprego, muito longe disso, e sim, entender a lógica de tais medidas.
No momento exatamente em que, por conta da crise das ciências humanas, abre-se um espaço para a interpelação entre os conhecimentos, o retorno ao holismo; num momento em que o pós-estruturalismo cede espaço para a confecção da abertura para conhecimentos, tais como física quântica e as áreas humanas; em que teorias como a da complexidade ganham corpo; em que surgem novas ferramentas de entendimento sobre a condição humana, como  a filosofia clínica; em que a Física retoma seu momento de nascedouro com o surgimento da Física do impensado; em que, por conta  da crise das metanarrativas, repensa-se o lugar da religião como princípio que deve ser levado em consideração para entendimento do mundo; em que se constata a morte dos centros irradiadores de saberes; em que o pós-colonialismo critica o eurocentrismo; em que experiências, a partir das múltiplas inteligências, ganham espaço; em que a sensibilidade faz-se notar como elemento que sabe o que dever ser intuído e sentido, qual a lógica de tais medidas no Brasil, Japão e Austrália?
Uma chave de leitura é o fato de as áreas humanas questionarem a mudança curricular processada nos anos 1990 e 2000 dos currículos escolares, a partir de indicativos de produção e produtividade de mecanismos, por exemplo, como o do Banco Mundial, determinando percentual de investimentos públicos em educação, a tal educação neoliberal.
Por que acabar com cursos de Humanidades? Ora, porque não dão resultados práticos e o capital não necessita de reflexão filosófica, necessita de praticidade, liquidez, retorno imediato, rentabilidade, “eficiência”, “custo-benefício”.
O princípio que legitima suprir algum ramo do conhecimento é partir do pressuposto de que não serve; a pergunta é: não serve para quê? Para quem?
O que Japão ganha eliminando cursos de humanidades e Austrália ao substituir aulas de História e Geografia por Programação? Não precisamos saber quem somos e fomos e gaia, o planeta? Afinal, a tal eficiência não deita raízes na exploração do próprio planeta que Austrália afirma não precisar conhecer? Talvez seja exatamente esse o princípio: explorar a terra em nome do capital, não necessitando de pessoas que critiquem exatamente tal postura. Assim, as coisas ficam mais livres e soltas…
Se a lógica é a eficiência e a falta de aplicação prática dos conhecimentos das humanas, a tal eficiência irá questionar seus próprios métodos em razão da felicidade humana, ou a utopia de um mundo melhor é apenas uma quimera de que os donos do capital já se esqueceram, preocupados demais em produzir, produzir, produzir….Mas, afinal, produzir tanto, para que serve mesmo?

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