Perfilado estava Nabuco entre os concorrentes.
Observava a massa entrópica das coxas dos seus adversários comparando com as
suas para saber de suas reais possibilidades de ao menos chegar ao fim. O
número em suas costas não dizia muita coisa sobre sua condição, em todos os
sentidos. Era apenas um número, como ele o era entre os corredores.
Não sabia ao certo porque estava
ali, no fundo lhe reservava alguma desconfiança. A corrida era simbólica,
contra os outros e consigo, consigo e contra os outros, contra si e por todos.
Deram o sinal. A disparada abriu
a porteira de um tropel alucinado em busca da superação e glória. Nos instantes
em que a adrenalina atinge o seu ápice as hemácias espargem os tecidos
musculosos, nada separa a força dos corredores de suas condições animalescas,
sendo eles mesmos como coelhos fugindo de sua presa.
Nabuco é um coelho assustado e
temeroso. Pelos seus lados vê os corredores o ultrapassarem numa fremência
rítmica como soldados marchando em dia de guerra. O som das pisadas mais lembra
a orquestra do som das caixas da banda marcial que ouvia aos domingos no coreto
da pracinha no centro da sua cidade, a mesma que deixara para trás da mesma
forma que estava agora, correndo, sem olhar para trás.
Olhar para trás era como
reconhecer a sua incapacidade de acompanhar outros corredores vendo-os passarem
por ele, temendo desistir da investida e voltar ao ponto de partida. Nunca!!! À
frente um horizonte de novas possibilidades, desafios e a surpresa de não saber
onde chegar.
À medida que as pernas pesavam
comparava com cada etapa de sua vida. Cada passada, uma lembrança, mais um
trecho percorrido. Quanto mais corria e se dava conta de que não havia
desistido, mais se empolgava na esperança de concluir tal desafio. As dores se
tornavam menores em comparação ao gozo da chegada.
De tanto pensar em não desistir e
apenas concluir sem se importar com a sua posição ia ultrapassando os outros
corredores percebendo-os fatigados pela demasia necessidade de vencer. Nabuco
não, queria tão e simplesmente chegar. Era como se o corpo obedecesse a voz da
mente e duplicasse os esforços para superação da descarga de ácido lático nas
filigranas de seus tecidos. O ácido lático se transmutava em dopamina,
amenizando recalcitrantemente a consumação de oxigênio.
O segredo então estava na mente.
Nabuco agora começa não apenas a visualizar a possibilidade de tão somente
chegar, como de conquistar uma boa colocação. Aumenta as passadas, vê-se como
vencedor.
A indicação da marcação no
pórtico direito dos corredores sinalizava a metade da corrida. Inicia-se então
a curva para a chegada. Nabuco estava entre os primeiros. Ainda ao longe avista
os líderes e percebe a diminuição do ritmo deles. Acelera.
O entusiasmo da plateia lhe dá
ânimo. As palmas funcionam como expectativa tal como um pintor ao finalizar um
quadro espera a resposta de seu público, o que muitos chamam exatamente de
morte da arte por deslocar a condição unívoca entre o artista e sua obra para a
obra e sua recepção. Nabuco gosta da reação do público mas também se lembra que
por conta de tal relação deixou muitas vezes de viver sua vida. Começa a se
questionar se corre por ele ou se pela ansiedade e resposta a alguém. Quando
essas questões começaram a atormentar sua cabeça, suas pernas começaram a
pesar, sua visão ficou turva, começou a faltar oxigênio.
Como está na reta de chegada
avista os corredores retardatários que ainda estão na reta de saída no lado
oposto da pista.
De repente, uma grande teia
enlaça os corredores impedindo-os de continuarem a prova. Todos, sem exceção,
um após o outro são enredados na grande teia dos retardatários. O painel
eletrônico anuncia o seu número como líder da prova indicando a distância que
faltava para a faixa de chegada.
Uma dúvida atroz, acompanhado das
dores musculares, falta de ar e vontade de desistir lhe vem à cabeça: corro até
a chegada e venço a prova ou ajudo os que estão presos?
A cada instante que passa aumenta
sua angústia. Nabuco olha para trás e vê de uma distância razoável o segundo
colocado. Sente vontade de perguntar ao diretor de prova se, caso ele parasse
para ajudar os outros corredores se lhe seria dado uma bonificação, um
desconto, e se a corrida poderia ser retomada com as mesmas vantagens que estavam
postas naquele momento. Mas, não há tempo. Atravessa o arrabalde-do-meio-fio,
passa por entre os expectadores, cruza a pista e vai em direção aos que estão
presos. Antes mesmo de tentar cortar a teia com as mãos, seu pescoço já está
enlaçado e ele preso, sem poder se movimentar. Respira fundo, tenta manter a
calma e se dá conta de que, pacientemente, fazendo movimentos oblíquos com a
cabeça, enfiando as mãos no espaço entre um fio da teia e o pescoço conseguirá
se desvencilhar. Tenta avisar outros corredores que façam o mesmo, mas o
desespero, seguido da vontade de correr e vencer a corrida os impedem de se
soltarem.
Então, por que só ele consegue se
soltar? Dá-se conta do porquê de tudo isso, porque começou a correr, o que
estava fazendo ali, qual era então o objetivo de tudo. Um a um retira a teia
dos concorrentes até que o último se livre e volte a correr.
Retorna para a reta de chegada,
para o mesmo ponto de onde havia parado, mas percebe que uma dezena de
corredores havia ultrapassado como na música La Corrida, de Francis Cabrel:
J'en ai
poursuivi des fantômes
Presque
touché leurs ballerines
Ils ont
frappé fort dans mon cou
Pour que je
m'incline
Ils sortent
d'où ces acrobates
Avec leurs
costumes de papier?
J'ai jamais
appris à me battre
Contre des
poupées
Sentir le
sable sous ma tête
C'est fou
comme ça peut faire du bien[1]
Cruza a linha de chegada no bloco
intermediário, sem holofotes, sem menção honrosa, sem prêmios, sem louros.
Caminha lentamente com as mãos na
cintura, ofegante, buscando ar e explicação sobre tudo aquilo. Até mesmo
aqueles a quem Nabuco ajudou a se desvencilharem da teia passam por ele sem o
cumprimentá-lo e agradecê-lo.
Torna-se mais um na multidão
agora dispersa depois da chegada. Ele sorri. Enfim, venceu uma corrida.
[1] Já
corri atrás de fantasmas
Quase abati suas bailarinas
Eles me golpearam com foça em meu pescoço
Pra que eu me curvasse
De onde foi que esses acrobatas apareceram
Usando fantasias de papel?
Nunca aprendi a brigar
Com bonecos
Sentir o chão sob minha cabeça
Me faz um bem tremendo
Amei!
ResponderExcluirAmei!
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