Há quem pense que tudo no Brasil
é tristeza após a "humilhação vexatória" por ter perdido para a
Alemanha de 7 X 1 numa semifinal em casa, mas não é não. Antes de qualquer
coisa, a família de Barbosa, goleiro da seleção brasileira de 1950 que perdeu
para o Uruguai em pleno Maracanã por 2 x 1 deve estar aliviada. Ele foi
injustamente acusado do vexame cognominado de Maracanaço, quando na verdade não
foi, e sim, a arrogância brasileira em comemorar a vitória antes do apito
final, além do que, perder por 2 X 1 não é vexatório, sobretudo para aquele
timaço do Uruguai.
É que como uma sociedade
ufanista, extremamente emotiva como o Brasil, é difícil fazer o exercício de
reflexão e assumir as próprias responsabilidades, erros e incompetências,
acusar alguém ou procurar um bode expiatório é mais cômodo. Naquele caso foi
Barbosa, vitima do racismo e da falência do discurso de democracia racial brasileira.
E nesse último, da derrota para a
Alemanha em casa, numa semifinal batendo todos os recordes negativos? Estão
ainda procurando os culpados e me parece que o arrogante técnico Luis Felipe
Scolari será a bola da vez, de fato tem muita participação nisso, mas não é o
único.
O artigo escrito pelo tetra
campeão e Deputado Federal, Romário, ex-jogador do Vasco, Flamengo, PSV,
Barcelona, Sevilha, Fluminense, sobre os casos de corrupção na CBF
(Confederação Brasileira de Futebol) é bombástico e revelador do grau de
desestruturação e montagem de um esquema de corrupção montado em cima do
futebol.
A utilização politica do futebol
não é nova e neste ano de 2014 as coisas ficaram mais expostas. Há quem vá
discutir as táticas de Scolari, a convocação, a péssima preparação fugindo do
foco, o excesso de marketing, blá, blá, blá, é tudo verdade, mas é apenas
sintoma, não a origem do problema.
O futebol brasileiro, usado como
válvula de escape ao nosso verdadeiro fracasso, o social, fez uma opção,
leia-se, os dirigentes esportistas, por alavancar economia, mercado consumidor,
pane et circense, falta de seriedade e compromisso, corrupção, lucros adquiridos pelo espetáculo midiático futebolístico. Isso merece uma reflexão.
O futebol se tornou sucesso no
Brasil por um conjunto de fatores (já nomeie alguns no artigo: o legado da copa
2014, há algumas semanas), dentre eles; espaços destinados ao lazer que serviam
de preparação aos nossos futuros jogadores; ausência de profissionalização
permitindo a espontaneidade dos campeonatos de várzea e a epifania a partir dos
chistes dos dribles; gols; comemorações; clara compreensão de que era um
instrumento de reconhecimento social e racial, vide a estrutura perversa e
elitista das estancias burocráticas brasileiras; um sentimento de vingança em
relação aos ricos, já que no campo de futebol as diferenças sociais se
aniquilavam, o que importava era o talento. Exemplo disso na Argentina é o Maradona:
nasceu em bairro pobre, disse aos 09 anos que um dia compraria uma casa para sua
mãe, se filiou aos movimentos sociais de seu país e vingou a Argentina por
conta da guerra das Malvinas derrotando a Inglaterra num gol antológico na copa
de 1986 no México. Resultado: virou deus...Tem até a religião maradonista.
No Brasil racista Nilton Santos,
Didi, Vavá, Pelé, Garrincha foram cultuados. Poderiam ser de outra forma? Ao
longo dos anos nós brasileiros nos acostumamos mal em ver Garrincha fazer com
adversários de países desenvolvidos uma espécie de desforra. O país sempre foi
motivo de piada internacional, no futebol, nossa vingança. Era uma forma de sermos respeitados já que os
dados sociais eram e ainda são de chorar.
O problema é que o processo de
internacionalização do futebol virou empresarial. Jogadores cada vez mais cedo
rumando para a Europa virando sonho de consumo das novas gerações, a tal ponto
que muitos jogadores sequer são conhecidos em clubes brasileiros, inclusive os
da seleção brasileira pouco atuaram no Brasil.
Ganhando milhões de dinheiro
poucos assumiram posições politicas sempre optando pelo estilo Pelé de fazer
politica, ou silenciando ou omitindo-se, ou até mesmo no caso do próprio Pelé
apoiando a ditadura, depois sendo ministro de estado. Muitos jogadores sempre
optaram por ficar bem na fita. Exemplos de sucesso adoram exibir seus carros,
roupas de grife, espelho de quem venceu pelo esporte. As questões sociais
sempre foram deixadas de lado.
O futebol brasileiro fez uma dura
opção pelo elitismo, expulsando os pobres dos estádios com ingressos cada vez
mais caros, vinculando diretoria dos clubes à torcidas organizadas, sendo
patrocinadas em troca de apoio administrativo. Assistiu-se um espetáculo de horrores
com guerras de verdadeiras gangues, fruto da ausência de perspectiva social e da impunidade.
O futebol, como qualquer coisa no
capitalismo, virou uma mercadoria, um espetáculo midiático e financeiro em
busca de mais dividendos tendo por detrás uma megaestrutura empresarial,
inclusive sendo fulcro de lavagem de dinheiro. Clubes viraram empresas,
jogadores, trabalhadores sem vinculo sentimental com os clubes que os
revelaram. Qual o resultado disso? Um longo declínio técnico dos jogadores em
busca de fama deixando de lado a paixão e a feição cultural do povo
brasileiro por futebol por necessidade de vencer, leia-se, dar resultado. A
derrota da seleção de sonhos canarinho em 1982 teve grande parcela nisso. A vitória
do pragmatismo tencionou tal esporte a ser um apanágio burocrático.
O orgulho brasileiro em driblar,
gingar, foi substituído pela vergonha em não dar resultados. O último título
brasileiro tinha sido em 1970 com a melhor seleção de futebol de todos os
tempos. 24 anos depois o Brasil seria tetra campeão mundial com um futebol
horrível, mas eficiente. Dai pra frente o futebol brasileiro nunca mais seria o
mesmo.
Os episódios do vexame histórico
da derrota de 7 x 1 para a Alemanha são o ápice do começo do fim de uma era do
futebol. Toda a farsa montada em torno do evento veio às claras; a falta de
organização na preparação do evento; falha na reforma dos estádios; aeroportos; problemas de mobilidade urbana acompanhada de uma
onda de protestos sacudiram o país em 2013 e também em 2014. A FIFA foi
desmascarada: não passa de uma entidade empresarial cujo objeto de produção é
lucrar com a atividade futebolística, escondendo uma rede de interesses e
intervenções politicas. O Brasil seria a cereja do bolo: isenta de impostos
exatamente na copa que deu maior lucro a entidade, no país que tanto ama o futebol.
Estava tudo pronto. O evento se
aproximava e as manifestações arrefeciam-se. Os grandes transtornos em
decorrência da falta de organização não comprometeram o evento, a média de gols
é a mais alta desde 1982, um belo espetáculo apoiado por um povo hospitaleiro
que foi às ruas comemorar o evento, a seleção brasileira passando de fase, um
evento tecnicamente surpreendente como nos velhos tempos... Até cruzar nosso
caminho uma seleção chamada de alemã.
Absurdamente simpática com o povo
brasileiro, a seleção que mais interagiu
com a sociedade numa demonstração clara de empatia e encantamento, os alemães se preparam durante 6 anos para tal copa e reestruturam o futebol após
a derrota para o Brasil na Copa de 2002, jogaram como se fossem brasileiros,
tecnicamente muito superiores. Foi a vitória da disciplina contra o desleixo,
da organização contra o improviso, do comprometimento versus a farsa da
utilização sentimental e pressão por jogar em casa, da simplicidade contra a
ostentação e opulência, da serenidade versus o escarnio e deboche, do
profissionalismo contra a utilização ufanista e midiática de uma seleção que é
a própria cara do país: odeia receber criticas, tudo se ofende, não é
acostumada a contraposição, ao diálogo, vide a forma prepotente como o técnico
Felipão se relaciona com as criticas e a imprensa, sempre disposto a brigar.
Somente uma derrota dessa
envergadura seria capaz de mexer com as estruturas de nosso país. A humilhação
legou aos brasileiros a necessidade de enxergarem futebol apenas como um
esporte, aliás, cada vez mais longe dos setores mais pobres, de repensar a dependência
que temos de ver a pátria de chuteira, como se a seleção fosse a nossa tabua de
salvação. Já foi, mas não pode ser mais posto que seja muito pouco, a vida
depende de outros fatores e não apenas do futebol. Precisamos de saúde,
educação, moradia, segurança, mobilidade, distribuição de renda, se vier
acompanhada de um bom futebol, ótimo, senão, paciência.
O curioso dessa Copa de 2014 é
que toda a farsa montada em torno dela desmoronou: pululam os escândalos de
venda de ingressos envolvendo altos escalões da FIFA, o caso do suposto suborno
em torno da Copa do Qatar em 2022, os compromissos sociais que a FIFA não
cumpriu, como o do tatu bola, por exemplo, mascote do evento, dentre outros.
Se o Brasil vencesse a Alemanha
ou perdesse de poucos gols ou nos pênaltis nada dessa ressaca sadia estaria
acontecendo. Se ganhasse a copa a histeria coletiva seria o vórtice. Somente
uma débàcle como essa é capaz de abalar convicções e certezas. A primeira delas
é que não somos mais já algum tempo o país do futebol e nem possuímos os
melhores jogadores porque a pragmática de vencer verteu a habilidade em jogar
numa relação simbiótica de força e velocidade, ou seja, a arte de jogar que
estava no imaginário coletivo se perdeu pela implosão autossugestionada em
apenas derrotar o adversário usando a força física. A segunda convicção é de
que não há mais espaço para a politica de pão e circo à custa de dinheiro
público, sem responsabilidade e compromisso social. O preço é alto demais. A
terceira é que a péssima fase de preparação para o evento fez surgir um
sentimento de revolta e indignação porque todo o circo foi bancado com dinheiro
dos contribuintes, uma quebra do compromisso quando foi firmado de que quase todos
os gastos seriam pagos com investimentos privados. Resultado: quando os
brasileiros disseram que o futebol não os representa, uma longa modificação na
concepção politica começou a se processar.
O fato de nossas contradições terem
sido expostas mundialmente foi outro fator positivo. Apesar da boa imagem em
geral que ficou nos visitantes, as feridas foram abertas e escancaradas e
passamos a ser pauta de debate internacional não pelo avanço das questões
sociais, mas pelo que ainda de muito falta. É claro que a simpatia e a
hospitalidade dão ao mundo um toque de esperança quanto à crueza das relações sisudas
e pragmáticas, até mesmo impessoais, mas afora isso, no geral, soçobram
criticas a quase tudo.
Do lado alemão, fiquei
embasbacado pela relação de respeito para com os brasileiros. Recusaram-se a
tripudiar da dor dos jogadores, foram extremamente respeitosos e carinhosos
depois do jogo, literalmente tiraram o pé no segundo tempo e ainda postaram nas
redes sociais que era necessário respeitar a tradição do futebol brasileiro.
Estavam fazendo média com os anfitriões? Duvido... Isso se chama educação e a
consciência de que a vida é maior que o futebol, logo eles que já perderam
tantas finais.
Portanto, para o bem do futebol
foi muito importante aquele vexame. Se a seleção brasileira ganhasse a copa do
mundo com aquele futebol medíocre, bagunçado, desorganizado, seria um
desserviço ao esporte. Só lamento que as coisas na CBF não vão mudar.
Conseguiram macular um traço cultural do povo brasileiro, uma herança de
sentimento e vinculação artística. No entanto, como todo processo de mudança
politica estamos no começo do fim, nesse caso, não do futebol, mas de uma
modificação nas relações de sociabilidade qual o futebol é caudatário e símbolo
ao mesmo tempo.
Danke, Deutschland, obrigado,
alemães, nem toda derrota é fracasso, nem toda a vitória é alegria. Se as
feridas deixadas pelo massacre servirem como suporte para um processo de
mudança, nunca uma derrota terá sido tão benéfica. Futebol não é apenas
futebol, sobretudo em se tratando de Brasil.
Só lamento pelos jogadores que
ficaram marcados pela derrota e pela tristeza do povo brasileiro que tanto
esperou por esse momento e abraçou o evento fazendo da Copa de 2014 a copa das
copas. Tudo bem! Um dia a dor passa, ainda que levem 64 anos, como a da família de
Barbosa que esperou para viver e respirar aliviada.
Excelente!
ResponderExcluirO que devemos dizer: Obrigado Alemanha!!! É isso mesmo.
Sem dúvidas a Alemanha exorcizou Barbosa, esse é um dos legados da Copa 2014.
A Alemanha é hoje o verdadeiro país do futebol, pois, consegue levar aos seus estádios a melhor média de público, tem a liga mais competitiva. isso traduz muito do que nos falta. A Copa não foi do grande público brasileiro, isso você diz muito bem.
Temos que agradecer e aprender com os alemães como competir e como ser cordial e não arrogante! A seleção da CBF é uma grande farsa e o legado da Copa foi o desbaratar destas maracutaias.
Foram tão nojentos que transformaram uma competição de futebol é uma guerra e perderam a oportunidade se divertirem em uma Copa em casa! É triste, esqueceram de dizer que só era futebol e que o esporte deixa um legado de solidariedade e disciplina e é o que nos falta um pouco na politica, educação, saúde! Que o esporte desperte muito mais em nossos corações.