Pode parecer nostalgia escrever sobre
um passado que não volta mais, mas nostalgia também é um lugar, uma guarida em
tempos de hiperindividualismo. Pode ser um subterfúgio para acharmos o aconchego
absorto pelas nuvens que foram testemunhas de uma época em que ser feliz era dividir,
mesmo que fossem as disputas, o tempo que tínhamos para estarmos juntos e não o
acelerarmos para de novo, ficarmos sós.
Em tempos de levantamento de muros
altos, com câmaras de vigilância, vigias diurnos e noturnos, cães de guarda, me
recordo da boa e velha Cohab em tempos de infância. Lá, nos recônditos do
Brasil distante, numa cidade igualmente distante, num bairro à época muito distante,
eram comuns as casas que não possuíam muros, fruto em parte da falta de dinheiro,
em parte como herança de sociabilidades interioranas de pessoas recém-chegadas
à capital, São Luís, cujas práticas ainda não separavam com tanta ênfase o que
era público do privado. Por vezes as coisas se confundiam.
Sem muros, nós, as crianças das
ruas, adentrávamos nos terraços e quintais sem pedir licença, e nem por isso
era uma afronta. Adentrávamos para pegar algo emprestado ou apanhar de volta o
que nos pertencia, já emprestado, sem ter a esquizofrenia de chamar a polícia
ou considerar tal ato um roubo. Era comum dizermos depois o que havíamos feito.
As casas com terraços de areia,
ou quintais, eram nossas favoritas. Ainda
sem cimento podíamos desfibrar nossas imaginações à procura da brincadeira que
nos sobreviesse sem o risco de desfibrarmos nossas peles ralando na asperidade
do terreno, afora o belo espetáculo em dias de chuva quando os quintais
alagados absorviam lentamente a água do céu.
Por vezes escolhíamos a de peteca,
também conhecida por bolinha de gude. Extremamente baratas, mesmo para crianças
pobres como nós, coloridas, multicores, tamanhos, de múltiplas formações
internas, curtíamos as mais exóticas tentando entender como o artesão era capaz
de desenhar um interior tão caleidoscópico. Não sabíamos que a fabricação era
industrial e não artesanal.
Íamos até o venderão, lá na feira
da Cohab, com nossos recipientes de plástico de margarina pedir que enchesse
tal vasilhame. Nunca esquecíamos de pedir um bolão (a maior das bolinhas de
gude, servia como capitão, a bola guia para acertar – matar – as outras). Mas o barato não era comprar, e sim,
conquistar, jogar apostado. Essa era uma das poucas brincadeiras que nossos
pais permitiam que jogássemos apostado. Temiam tal prática em jogos como
bilharina, Sinuca, até mesmo em futebol.
Ganhar do adversário, leia-se,
amigos de infância, e raras vezes, desconhecidos, era como carregar no peito um
feito brioso, uma capacidade, uma maestria, “um quase dom”, capaz de fazer os
outros te respeitarem mais, ou pelo menos, não te enxergar como oponente fácil
de ser derrotado tirando de ti aquelas bolinhas que se carregava com tanto
esmero.
De tanto se jogar as bolinhas fricçavam
uma nas outras deteriorando-se. Ninguém queria os “cacabulhos”, “cacarecos”, as
mais velhas e imperfeitas, irregulares, desvalorizadas no mercado de petecas. Poucas
pessoas as aceitavam como pagamento.
Dois jogos se destacavam dentro
da peteca: triângulo e borroca. Triângulo consistia em
depositar um certo número de bolinhas dentro exatamente de um triangulo
desenhando no chão de terra distante de uma linha reta chamada de “marcação”,
usado como referência de posição e definidor de quem seriam os primeiros a
jogarem. Era assim: todos os jogadores ficavam na mesma altura do triângulo e
jogavam seus bolões, capitães, em direção à linha, quem mais se aproximava ou mesmo
ficasse em cima, “na linha”, era o primeiro a jogar, quem ultrapasse, seria o último.
Definido a ordem dos jogadores, era a vez de tentar acertar a maior quantidade possível
e retirá-las do triângulo. Quem retirasse todas, além de vencer aquela rodada, ficava
de “matança”, ou seja, poderia eliminar outros bolões, jogadores, além de não ser
eliminado, a não ser por quem também estivesse de matança.
Por vezes usava o recurso “firifico”,
“firiquite”, prerrogativa de defesa que dava a chance ao jogador de não sair do
lugar para não ser atingido, ele perdia a vez de jogar, mas não se expunha.
Desta feita, esquivava-se de ser morto. Uma outra tática, ainda mais engraçada era:
“pedir sujo”, ou seja, quando sua bolinha estava protegida por um obstáculo
evitando ou impedindo de ser atingida, ai, o adversário pedia exatamente o contrário:
“pedia limpo”, quer dizer, exigia a retirada dos obstáculos. Quem tinha o
direito? Já não me lembro mais.
Eu adorava “bilar”, ou seja,
acertar na mosca o outro capitão, mas odiava “alisar”, quer dizer, perder todas
as bolinhas e ver meu pote de margarina ficar vazio. Quando isso acontecia era
hora de assistir as minhas antigas bolinhas deslizarem no chão macio sendo
lançadas pelas mãos de novos donos. Ou então, esperar uma próxima oportunidade
de voltar à venda para encher o meu pote de novo.
A outra brincadeira era a
Borroca. Três buracos equidistantes um do outro, da fundura que um calcanhar
poderia escavar. Exatamente! A borroca era feita girando-se em 360 graus um dos
calcanhares no chão fazendo um buraco até onde era possível. A regra consistia
em acertar cada buraco ida e volta. Era uma espécie de golfe sem grama, sem
bandeira, sem taco e com uma bolinha menor. Quem conseguisse atingir os três
buracos duas vezes venceria o jogo.
O que se escondia por detrás daquela
“inocência” era a ausência da complexificação da vida urbana, calcada na lógica
da indiferenciação, do individualismo e liberalismo da competitividade que
supostamente privilegia os mais fortes. Com o processo de aceleração urbana,
desmatamento, crescimento exponencial dos bairros, distanciamento dos centros
da cidade, obrigando as pessoas a saírem cada vez mais cedo de casa, aumento da
violência, as crianças de hoje são obrigadas a não saírem de casa, resguardadas
em seus condomínios que prometem uma vida “própria” protegendo-as do mundo lá
fora. É claro que as brincadeiras mudam, assim como as pessoas e as épocas, mas
o que causa torpor é exatamente uma falta de reflexão sobre as consequências dessas
mudanças nas pessoas.
O processo de aceleração da vida naturalizou
tudo, como se a única perspectiva possível fosse o do não encontros, ou dos
encontros dissuadidos pela falta de contato. É um contato que não conta, é um piso
cimentado que impede o contato do calcanhar com o chão e que ao invés de absorver
a água da chuva canaliza-a para o escoadouro da rua, por um cano gigantesco, de
diâmetro enorme esvaziando rapidamente a água como se dela quiséssemos nos
livrar.
É por isso que não se vê mais
crianças brincando na chuva, ou é cada vez mais raro, elas não adentram mais as
casas dos vizinhos, elas estão guarnecidas por guaritas. As crianças não se
encontram mais nas ruas, elas jogam Playstation pela internet.
As mãos das crianças não são mais
hábeis em manusear bolinhas coloridas, multiformes, elas hoje dominam outras
técnicas, como as de brincarem sozinhas com celulares, ipad’s, tablets.
Vamos evitar mudanças? Não, o
tempo não para, mas não foram os avanços tecnológicos que distanciaram as
pessoas, a técnica sempre existiu, foram os nossos desejos de deixarmos tudo o
que passou ser sinônimo de obsoleto, para trás, como se necessariamente o novo
tivesse que aplacar o passado, e não conviver com ele.
O engraçado é que a indústria cria
a cada dia milhares de novos brinquedos, todos esquecidos e deixados num canto
quando o frisson do novo acaba, mas as antigas brincadeiras não desaparecem das
memórias dos que um dia usufruíram delas.
As imagens hightech criadas por
supercomputadores criam mundo novos povoando a imaginação de novas crianças,
mas quem pode decifrar o mistério das luzes multicores e multiformes escondidas
no interior de uma bolinha de gude?
Saudades desse tempo em que a única preocupação com as crianças era "botar pra dentro pra almoçar". Excelente texto!
ResponderExcluirEsse texto me fez recordar momentos preciosos de minha infância. Tempo em que a criança era tratada como criança, e não como "adulto em miniatura". Belíssimo!!!
ResponderExcluirEsse texto me fez recordar momentos preciosos de minha infância. Tempo em que a criança era tratada como criança, e não como "adulto em miniatura". Belíssimo!!!
ResponderExcluirQuanta emoção e alegria sinto ao ler seu texto, professor Borralho! De verdade.
ResponderExcluirTambém recordo-me, com certa frequência, em conversas com meu irmão, de nossas brincadeiras de infância: o futebol na rua (e, muitas vezes, dentro de nossa casa, para o desespero de nossa mãe...), as "adedonhas" (jogos de adivinhação que continham perguntas sobre assuntos variados, escritos em uma folha de papel avulsa), etc.
A "peteca" (como era mais comum denominar o jogo com as bolinhas de gude) era algo com que brincavámos também, embora não tanto quanto o futebol de "travinha", no campo de asfalto da rua!
Sua exposição sobre as minúcias do jogo, com os nomes com que intitulávamos as jogadas e as situações de jogo ("borroca", "firifico", "bolões", "pedir sujo" e por aí vai...) e as lembranças de nossas idas à casa (de muro "baixo", não é mesmo?) de um vizinho para pegar uma bola, um peteca, ou o que quer que seja, com toda a pureza e ingenuidade que uma criança de 6, 7, 8 ou 9 anos possui, é nostálgica, sim, mas muitíssimo comovente e enormemente agradável de ser lida.
É incrível como esse cenário que tu retrataste acima é inimaginável nos dias de hoje e, pior do que isso, lamentavelmente, a pura (e triste) verdade.
E, sim, concordo plenamente contigo: "quem pode decifrar o mistério das luzes multicores e multiformes escondidas no interior de uma bolinha de gude?" E será que os "mundo novos" criados por computador e que povoam o imaginário das crianças de hoje produzirão nos adultos de amanhã a mesma alegre sensação que seu texto nos proporcionou?
Um abraço!
Raimundo Neto
Que bom que gostaste Raimundo Neto, era essa a intenção: remontar um pouco como foi minha infância. De fato ludica e inesquecível.
ExcluirAbracos do Henrique
Que bom que gostaste Raimundo Neto, era essa a intenção: remontar um pouco como foi minha infância. De fato ludica e inesquecível.
ExcluirAbracos do Henrique