O
filme “O Terminal” (2004), dirigido por Steven
Spielberg, com parceira de Tom Hanks, e estrelado por esse último, narra a
história de Viktor Navorski, um viajante do leste europeu que, ao adentrar nos Estados Unidos, aeroporto John
Kennedy, New York, é tomado de surpresa por um golpe de estado em seu país natal, impossibilitando-o obviamente de sair do aeroporto.
Isto porque com um golpe de estado os países não são obrigados a receberem os
cidadãos de tais lugares, posto que as relações diplomáticas são
cortadas.
O
que o filme de uma forma ingênua não explora é que no fundo os aeroportos
constituem-se como
não-lugares na contemporaneidade para os viajantes, não para quem trabalha
nele. O conceito de não-lugar denota espaços de dispersão social sem agregação
afetiva, de construção de relação política, da ideia clássica de pólis, urbe, pois os
transeuntes não são daquele lugar, estão sempre de passagem, de forma apressada
em busca de novas rotas. Como diria Marc Augé, antropólogo francês, autor do
conceito, não-lugar é um espaço de passagem incapaz de dar forma a qualquer
forma de identidade.
A
questão é que os não-lugares são cada vez mais comuns na ultramodernidade, já
que o termo pós-modernidade não se aplicaria bem. Com o avanço rápido do
capital, alterando substancialmente a percepção de tempo, espaço, coisificando
os sentimentos, viver passou a ser referente de remir o tempo, lastreado pela
concepção mais que voraz de consumo. O consumo é quem estabelece as bases da
cidadania, logo, o preposto clássico de participação do sujeito cidadão
enquanto premissa da política, forjada no classicismo grego, foi substituído
pela potência do ato revolucionário de consumir, qualquer que seja
a coisa: afetos, desejos, festas, situações.
Nos
aeroportos, em decorrência do avanço da tecnologia, é possível fazer o check-in de
casa, ou de qualquer lugar que possua a portabilidade digital, então, se o
sujeito não tiver bagagem para despachar, pode ir direto para a sala de
embarque. Lá dentro com o seu laptop, iphone, ipad, não se comunica com ninguém,
a virtualidade é o seu mote.
Esse
é um dos problemas da tecnologia e da internet: conecta e desconecta as pessoas
ao mesmo tempo. O italiano Giorgio Agamben, em
sua obra O que é contemporâneo, faz
uma dura crítica ao uso frenético do celular. Esse instrumento, cognominado por
ele como utensílio,
equipamento, dispositivo, leva as pessoas a um estado de não percepção de nada
ao redor, ao não ser a suposta ligação sensorial com outra pessoa do outro lado
da linha. O problema é que com o frenesi da vida moderna, passamos a falar
muito mais com o outro distante do que com o próximo.
Uso
dessa mesma prerrogativa para criticar determinados usos do facebook.
Ferramenta poderosa de interação, algumas pessoas se dessujeitaram a tal ponto que, como não conseguem
lidar com seu silêncio interno, necessitam o tempo todo consumir o que os
outros fazem de forma instantânea ao mesmo tempo em que
postam absolutamente tudo o que fazem, ou seja, ante a caoticidade da vida, a
vitrina do face serve como elemento de consumação da
vida, significação da vida, necessidade de estar e ser, ser visto e
ver, consumir freneticamente. Já existe até a expressão: “essa foto é para
o face”.
O facebook,
assim como o recente e já em desuso orkut, estabelecem novos
padrões de sociabilidades impondo uma necessidade instantânea de
comunicabilidade. A questão é se essa necessidade tão premente de se comunicar
não se dá exatamente pela real falta dela.
Isto
explica em parte por que a
chamada para questões políticas e sociais sempre perde em compartilhamento,
curtição, etc., no ranking de popularidade do facebook. É
como se a internet e suas ferramentas não fossem para coisas “sérias”, “cabeçudas”,
posto que perdemos em
grande parte a capacidade de reflexão, logo, facebook, orkut, são extensões do
esvaziamento dos sentidos e tecidos sociais, e
ao mesmo tempo, uma vontade de estabelecer nexos, laços.
A
necessidade de aumento da velocidade da internet é proporcional à nossa
voracidade de consumir as relações freneticamente, sem que necessariamente se estabeleçam vínculos sensoriais
e sentimentais. É como se a tecnologia fosse extensiva ao nosso corpo, e de
fato já é. O cinema e a literatura já abordaram isso.
O
transumanismo advoga a imbricação entre vida biológica e tecnologia
sob o argumento de que os homens sempre se serviram de ferramentas para a
ampliação da concepção de vida e que, portanto,
a resistência a essa tendência é antes de mais nada moral, religiosa.
Sob esse aspecto, cabe questionar qual é o lugar do corpo na sociedade
ultramoderna e se o corpo transumano não se constitui um não-lugar em si mesmo,
absolutamente coerente com o avanço das relações aceleradas da sociedade ultracontemporânea. Aliás,
somente um corpo transumano comporta a velocidade de uma sociedade hiperveloz,
hiperreal, para usar uma expressão de Jean Beaudrillard.
Das
vezes em que ando de ônibus fico observando as pessoas com fone de ouvido. Questiono-me
se o fone é para distrair ante o longo trajeto até o destino, se para
não se perceber as condições de uso do coletivo, se para evitar qualquer
contato com o usuário, ou se o somatório de todas essas acrescidas de tantas
mais.
A
questão é que as relações humanas estão mudando radicalmente e com elas a noção
de identidade. O grande problema dos não-lugares é a impossibilidade de fixação
de qualquer parâmetro indentitário. Os não-lugares sociais são em última instância os não-lugares de nós
mesmos, ou seja, o que se estende aos espaços sociais são reverberações da
amplitude da definição do sujeito, ao mesmo tempo, de sua redução, já que ele
só se potencializa à medida que se expande, logo, se dessujeita, se estende a limites ultra-corporais.
Qual é a capacidade de expansão sensorial humana?
Quantas consciências cabem nos nossos múltiplos corpos, a que fala ao
telefone ao mesmo tempo que tecla no chat, a que posta uma foto
no face, a que come enquanto ouve televisão?
Por
outro lado, com o avanço das tecnologias aumentou a percepção sensorial das
novas gerações. Na condição de professor
sei quão é difícil deter a atenção dos meus alunos por muito tempo,
já que em suas mesas, com o serviço de wireless, seus laptops, iphones, ipad’s, os ligam ao mundo de forma
interativa, rápida e às vezes mais dinâmica. Eles executam várias tarefas ao
mesmo tempo, o que eu por exemplo tenho muita dificuldade. A sala de aula em
alguns momentos se torna um não-lugar, posto que após o término, os alunos
correm para uma lan house ou suas casas para comentarem com
seus colegas que passaram a manhã com eles o que acharam ou não acharam da aula
que acabaram de assistir, ou qualquer outro assunto.
O
que fazer diante de tais questões? A resposta é difícil, pois é
igualmente difícil a sociedade definir o que quer; caímos num absoluto reducionismo
individualista, subjetivista, relativista.
Penso
que isto se trata de uma estratégia subjacente e sub-reptícia do capital. Eu explico. A defesa de
que a felicidade só pode ser adquirida individualmente deita raiz numa lógica
de não organicidade coletiva, logo, de esmaecimento de qualquer luta
social, ideológica, já que o indivíduo sozinho, longe de sua individuação
coletiva, se sente desmotivado a qualquer mobilização política, portanto, o
imaginário social está sendo cada vez mais alicerçado na ideia de que
não há saída, não há mudança, não há sonhos, somente o imediatismo. Se não há
saída, não resta outra coisa a fazer a não ser consumir tudo freneticamente,
mas nem isso preenche o vazio, e, portanto, lá estamos nós em busca de mais
divertimento, mais velocidade, só o imediatismo é capaz de preencher os
não-lugares físicos e sentimentais.
Os
não-lugares são a maior expressão das distopias, ou seja, da ideia de que nada tem profundidade, tudo é
voraz, tudo é volátil, tudo é etéreo.
Muito bem colocado, Henrique!
ResponderExcluirObrigado meu anjo. que bom que gostaste
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