_ “Papai, pepel!!.
Ainda estamos longe de entender a relação pais e filhos. No mundo animal, os mamíferos são os que mais prolongam sua dependência paterna, grosso modo, no caso dos humanos, entre 20 e 27 anos, alguns a vida toda. Por que será? Será uma mera questão social, a da construção histórica do conceito de família ou porque existe um sentido de aprendizagem na relação pais e filhos, qualquer que seja ela?
Tenho aprendido a curtir cada fase, sorver cada instante, pois sei que são únicos, irrepetíveis.
O que é uma parede riscada, um chão borrado, ou o próprio corpo rabiscado diante de um pedido solene? – “Papai, pepel”... Eu sempre me aborreço, mas logo depois passa, afinal, quando elas crescerem nunca mais vou ouvir que macaxeira provoca colesterol alto, não vou ver Lucía imitando Angelina bailerina, personagem de desenho animado, nunca mais um choro por conta de uma queda, cabeçada, nunca mais pedidos para eu fazer chocolate, carregar para dentro de casa tirando do carro já dormindo, a alegria de deixar na porta da sala de aula e um abraço apertado repetido ad nausea para que eu não vá embora, nunca mais a petiz caçula vai dizer: “Eu, eu, eu”, para eu arrumá-la ao ver sua irmã se vestindo, nunca mais as fraldas, nunca mais músicas inventadas com letras indecifráveis...
Virão outras coisas, tão solenes quanto, tanto intensas quanto, tão umbilicais quanto... tudo passa, filhos não.
É sempre dessa forma que minha filha caçula Milene me
aborda pedindo para rabiscar grafos indecifráveis, por vezes as paredes, chão,
quando não o próprio corpo. Eu, sempre sabendo que ela vai riscar tudo, cedo.
Desse jeito de apreensão do mundo vou observando o desenvolvimento de
minhas filhas. Minha caçula, ao espreitar sua irmã mais velha quando vai para
escola, todas as vezes que começo a dar-lhe banho, escovar os dentes, arrumar o
cabelo, sempre com briga a petiz brada: – “Eu, eu, eu, papai”, insistentemente,
também querendo que eu a vista e a prepare. Não estuda ainda, só tem dois anos.
A insistência com o “pepel” deriva da observação atenta da
irmã, que é dois anos mais velha. Sempre por imitação, repete tudo o que a irmã
faz, é o xodó dela.
Outro dia, a mais velha, que se chama Lucía, com acento
agudo no i, como em espanhol, uma homenagem à mãe, Lucía, e cuja inspiração
para o nome veio do filme Lucía
y el sexo, do diretor espanhol Julio Medem, o mesmo de “Os amantes do círculo
polar”, me saiu com uma pérola. Eu a havia levado para exames de sangue, fezes
e urina. No ambulatório, um escândalo de parar a rua, quem passasse por perto
pensaria que alguém estava morrendo. Com dedo em riste, virou para a enfermeira
e disse com muita autoridade:
– Não faça
isso!!! Eu não quero ser furada!!! Não faça isso!!!”.
Lá se foram duas pessoas para segurar Lucía. Resultado do
exame: colesterol alto. Foi então a pérola:
– Papai, o meu colesterol alto não é por causa de besteiras
(leia-se: refrigerantes, bombons, congêneres).
– É por que então, filhota? perguntei.
– É por causa da macaxeira que eu comi (ela havia comido
macaxeira na semana anterior na casa de minha mãe).
– Filhota, os médicos disseram que é por conta do que
você anda comendo, e ao que me consta, macaxeira não aumenta colesterol.
– Os médicos estão errados, papai. Meu colesterol é por
conta da macaxeira!!!!
Esse diálogo durou todo o trajeto até a escola. Ouvi
atentamente os argumentos, nenhum válido, mas por ela tudo bem... Para mim
também. Ainda assim, a alimentação dela foi alterada.
Engana-se quem pensa que devemos educar os filhos da mesma
forma, ou que se ama da mesma forma, não me refiro à intensidade ou dimensão, e
sim, forma. Cada filho, filha, é de um jeito, porque cada um veio de um lugar
diferente.
Nas sociedades orientais, notadamente a japonesa, quando
uma criança nasce é motivo de choro; no Ocidente, alegria. Para os orientais, o
nascimento representa o aprisionamento do espírito num corpo encarnado; a morte
é libertação. No Ocidente, a partir dos axiomas do cristianismo medieval, que
advogava a existência somente de uma única vida, após a morte, o
julgamento, e, acrescido da construção da modernidade, que mudou a percepção de
tempo, de espaço, da concepção de vida, oriundo da concepção burguesa de viver,
trabalhar e remir o tempo, “time is Money”, viver passou a significar a exploração plenipotente de todas
as oportunidades num curto espaço de tempo; “é necessário viver tudo aqui e
agora”. Daí por que no Ocidente morrer é motivo de choro, tristeza, representa
um fim de um processo, não o recomeço.
Para os orientais quando alguém morre, quando não jovem
demais, é motivo de alegria, afinal, o espírito está livre de novo, para um dia
mais uma vez ser aprisionado. Quando alguém jovem morre, os orientais consideram
um pesar por acharem que é mais um barco que descreve o arco e evitou atracar
no cais, ou seja, não cumpriu sua missão.
Partindo dessa premissa, dá para se entender porque cada
filho é de um jeito, ainda que se eduquem todos da mesma forma. E aí está um
equívoco. Com tendências, vícios e peculiaridades, cada filho traz
uma personalidade, visto que no fundo ele não está vindo ao mundo pela primeira
vez, já veio.
Outro equívoco comum que considero dos pais é achar que os
filhos são suas propriedades, não são. Filhos vêm, ou seja, nós mesmos, para
aprendermos e avançarmos no sentido da existência. A função dos pais é
educá-los, levá-los ao caminho da felicidade, corrigir tendências que notamos
serem perniciosas e perversas, orientá-los, instruí-los e amá-los; o resto é
com eles. Os filhos não são propriedades dos pais, são do plano maior.
Por não atentarem para esses detalhes é que alguns pais
acham que boa educação é colocá-los em escola cara, desde cedo inglês, muitos
cursos, mil obrigações, sem a devida atenção do que de fato precisam:
serem autônomos e suficientes, felizes. Mas, numa lógica de concepção
burguesa, ser feliz é ter sucesso: ganhar bem, ser famoso, carro, casa,
viagens, etc. Não sou hipócrita para descartar ou desprezar as questões
materiais, somos matéria, é claro que é importante, mas felicidade
não se resume a isso.
Quando se é pai, mãe, um conjunto de reflexões se coloca
cotidianamente. Estamos o tempo todo nos revendo como pessoas, pensando na
imagem construída perante os filhos, que valores passamos, que papéis
vamos exercer, como, de que forma, porque. É um exercício de
alteridade se colocar na condição de filho, aprender com ele. Daí
a importância da família, independentemente do formato que possui
hoje; se com pais juntos; separados; divorciados; se sem mãe; sem pai, etc. O
conceito de família é mais abrangente, porém, independentemente do formato,
conceito ou característica, porém, família existe para
o exercício do amar o outro, primeiro mais próximo, depois, o outro
desconhecido.
Filhos não significam apenas a perpetuação da espécie da
qual foi oriunda, sua família, mas da humanidade, ou seja, do conjunto de
significados prenhes na ideia do que é ser humano. O
desenvolvimento psicossocial de uma criança é em determinado grau o
desenvolvimento da sociedade, com pitadas de subjetividade de cada ser,
exatamente o que o diferencia de qualquer outro sujeito.
Os especialistas na área da infância e juventude podem
alegar que de tempos em tempos a concepção de paternidade e maternidade muda,
portanto, trata-se de uma construção social. Para os gregos, as mães geravam
filhos para o estado; na Idade Média, crianças eram adultos em miniaturas; no
início da industrialização, filhos eram proles (proletariados), ou seja, força
de trabalho; nos dias atuais, para muitas famílias, desejo de sucesso como
forma de valorização e transferência afetiva dos pais.
É possível separar sentido afetivo de construção social? Sim, esse é
o exercício. Na verdade, separar não é o verbo adequado, e sim, entender
como se dão as construções sociais, seus limites. As pessoas não são apenas
aquilo que o social diz sobre elas.
Quando penso em minhas filhas, sinto uma amor incontinente,
inconteste. Lembro-me dos dias em que nasceram. Fiz um “curso” no Youtube sobre partos. É que eu queria
assistir, mas não posso ver sangue. Filmei tudo e não desmaiei, consegui. Fiz
um filme de curta metragem sobre as duas. Um dia elas vão assistir; na verdade,
Lucía já assistiu ao dela. A trilha sonora é do compositor catalão Juan Manuel
Serrat. Nome da música? Lucía, claro. Meu amigo uruguaio-catalão Enrique
Padrós, o Lola, me disse que por conta dessa música uma geração inteira
de mulheres na Espanha se chamam Lucía. Foi ele quem me apresentou Juan Manuel
Serrat. O nome de Milene foi dado pela mãe, uma antiga promessa à mãe de Lucía,
Dona Cidália, falecida em 1992, de que quando tivesse uma filha poria o nome de
Milene.
Amor dos pais é amor que não se mede, amor filos. Quando
Chico Buarque na canção As meninas embala: “As
meninas são minhas/Só minhas na minha ilusão/Na canção cristalina Da
minha imaginação/Pode o tempo Marcar
seus caminhos Nas faces Com
as linhas Das noites de não/E a
solidão Maltratar as meninas/As minhas não...” Eu entendo perfeitamente.
Entendo o sentido de proteção, de um amor
inefável, que se pudéssemos protegê-los de tudo, faríamos. Outro
equívoco. Filhos precisam de suas frustrações, restrições, problemas,
adversidades, decepções, para a constituição de suas personalidades, seus
posicionamentos perante o mundo. Quem muito protege perde a constituição da
subjetividade de cada ser e como vai lidar com as contrariedades. Mas não é
fácil. O instinto de proteção, que não é apenas materno, nos remete à nossa
constituição primeva, originária, biológica, umbilical. Filho é uma questão
quase instintiva, é o que coloca na outra ponta da balança: de filhos à
compreensão do porquê de determinadas atitudes de nossos pais. Como diria
Belchior: “ainda somos os mesmos e vivemos como nossos pais”.
Ainda estamos longe de entender a relação pais e filhos. No mundo animal, os mamíferos são os que mais prolongam sua dependência paterna, grosso modo, no caso dos humanos, entre 20 e 27 anos, alguns a vida toda. Por que será? Será uma mera questão social, a da construção histórica do conceito de família ou porque existe um sentido de aprendizagem na relação pais e filhos, qualquer que seja ela?
Qualquer que seja a resposta, todas as
vezes que minhas filhas me sorriem, me recebem com abraços, choram, esperneiam,
resmungam, birram, dizem que me amam, entendo mais o sentido de viver, e todo o
resto passa a ser pequeno. Só elas importam.
Tenho aprendido a curtir cada fase, sorver cada instante, pois sei que são únicos, irrepetíveis.
O que é uma parede riscada, um chão borrado, ou o próprio corpo rabiscado diante de um pedido solene? – “Papai, pepel”... Eu sempre me aborreço, mas logo depois passa, afinal, quando elas crescerem nunca mais vou ouvir que macaxeira provoca colesterol alto, não vou ver Lucía imitando Angelina bailerina, personagem de desenho animado, nunca mais um choro por conta de uma queda, cabeçada, nunca mais pedidos para eu fazer chocolate, carregar para dentro de casa tirando do carro já dormindo, a alegria de deixar na porta da sala de aula e um abraço apertado repetido ad nausea para que eu não vá embora, nunca mais a petiz caçula vai dizer: “Eu, eu, eu”, para eu arrumá-la ao ver sua irmã se vestindo, nunca mais as fraldas, nunca mais músicas inventadas com letras indecifráveis...
Virão outras coisas, tão solenes quanto, tanto intensas quanto, tão umbilicais quanto... tudo passa, filhos não.
Quando me sinto triste, cabisbaixo, olho
para elas e percebo que ser pai é um exercício profilático, é como uma
terapia do AA (alcoólicos anônimos): uma coisa de cada vez, uma
vitória por dia, não dá pra desistir. Quando tudo me falta, quando não
vejo os meus pés no chão, lembro-me que elas existem e sigo em frente.
Ontem minhas filhas me disseram, primeiro
a Milene: – “Papai,
te amo, GANDÃO!!!”, depois, Lucía: – “Papai,
eu não sei o que seria de mim sem você”...
Os filhos são um dom Deus, nos dão mais do que damos a eles, completam o vazio de outrora. Cada sorriso, gesto, olhar, cada palavra nova, a bem da verdade quando nascem não tem bula a seguir, porém o amor conduz. Para o Paulo José e o Gustavo Miguel amo vcs.......
ResponderExcluirOlá querido e eterno companheiro e pai de minhas filhas, tuas palavras preenchem meu coração de felicidade. Sei o quanto ter se tornado pai foi e é especial para você. Sei porque você vive o papel de pai como se já fizesse parte de tuas entranhas desde o início de tua existência e como uma profundidade que como mãe sei e sinto que é possível. Por isso querido Henrique sei o quanto é importante a presença de nossas filhas em nossas vidas.
ResponderExcluirQuando Milene pergunta: - Quidê papai? Sei que essa pergunta está repleta de uma certeza de que logo vai te vê... e é por isso que quando eu as entrego pra ti as duas se despedem dizendo: - Tchau mamãe! E quando você as entrega para mim, lá se repete: - Tchau papai!
Beijos querido amigo!
Lúcia Tugeiro
Querida Monica, concordo contigo, de fato filhos são um presente de DEus, a bem da verdade, os filhos são deles, nós, os pais, somos apenas guardiãs de suas trajetórias. Obrigado pelo teu comentário. Abraços no Paulo José e Gustavo Miguel
ResponderExcluirMinha querida Amiga e companheira na criação de nossas filhas Lucia. Tenho muito orgulho de ter tido nossas filhas contigo, aliás, somente contigo poderia ter, afinal, ter filhos é uma questão de confiança. Tenho muito orgulhos de ser amigos e cumplices na criação delas.
ResponderExcluirbeijos do amigo Henrique
O que me faz ser tão fã dos teus escritos é esse DOM que tu tens de mostrar tudo com tanta naturalidade, o que é extenso não se torna cansativo, mas sim prazeroso...
ResponderExcluirO amor que sentes por suas filhas é simplesmente maravilhoso...
Meus pais também me amam dessa forma(sei que amam), mas o meio em que foram criados não os permitiram uma liberdade para demonstrar tais sentimentos... ou seja, enquanto infância corria para trás do sofá, chorava loucamente, desejando que um "balão" viesse me buscar, não queria uma família que não me amasse, queria que papai me pegasse no colo e me desse carinho, sobretudo mamãe.
Eu tenho duas irmãs, Lorena e Gabriele, quando eu tinha 4 anos lorena nascera, eu fiquei feliz, mas com o tempo passei a sentir algo muito ruim sobre ela, era o tal do ciúme, eu não sabia oque era dividir, pior ainda era ter que ouvir os familiares falarem " iiii Flávia ta no canto..." Ninguém intendia oque eu sentia, era uma dor muito grande para uma criança de 5 para 6 anos de idade. Depois 3 anos depois nasceu Gabriele, eu já era mocinha, já tinha 7 para 8 aninhos, a chegada dela não foi tão difícil, porém mais uma vez tive de escutar "iiiii Flávia foi pro outro canto", não sei se era normal pra minha idade, mas sinceramente dava vontade de sumir... É estranho, derrepentemente todos os olhares se voltaram para elas e eu de fato fiquei no canto...
O tempo passou, hoje tenho 19, Lorena 15 e Gabriele 12, vivo amavelmente com Lorena, somos até confidentes, ela me ama muitooooo, confia em mim e as vezes percebo que ela tem a mim como um exemplo. Gabriele me ama tanto quanto Lorena, mas não conseguimos nos entender, brigamos muito, de minha parte acho que é ciúme por ela ser tão próxima a mamãe (algo que nunca consegui)... e por parte dela é o ciúme por papai mostrar mais atenciosidade comigo!
Nunca havia parado pra pensar nisso tudo, nossa, tantas coisas que são vividas todos os dias e deixamos passar por entre nossos dedos...
A sua visão do que é ser pai... do que é ser filho...
A minha visão do que é ser irmão... do que é ser filho...
AMO MEU PAI, AMO MINHA MÃE (apesar de nunca ter dito isso a ela), AMO LORENA (que carinhosamente, chamo de minha gata) rsrsrs, E AMO GABRIELE (apesar de também nunca ter dito isso).
De forma geral tu (Henrique) nesse momento me deixou novamente naquela situação de reflexão e pelo vistoooo... vai durar! rsrs
Parabéns meu querido, por ser esse pai maravilhoso, por amar tanto tuas meninas...
(OBS: ri muito da história da macaxeira rsrsrsrs)
Grande bjo pra você e suas princesinhas! Tudo de bom!