terça-feira, 14 de fevereiro de 2017

No bolso da camisa



Todos os dias William Autumn fazia o trajeto a pé de sua casa até a Universidade de Vancouver. Para o professor de Filosofia da Linguagem, caminhar era uma forma de manter a conexão consigo mesmo, ainda que com os barulhos dos carros. Espelhara-se em Sêneca sobre o princípio de pensar com os pés. Arguto observador comparava as tonalidades das árvores durante as estações, mesmo no inverno, cujos termômetros acinzentavam as folhas, mas branqueavam o chão de neve.

Certa vez, sua caminhada foi acompanhada de preocupação, a respiração ficou mais ofegante, a observação da paisagem perdeu o espaço para a alta explosão de seus neurônios em virtude da preparação para a conferência de abertura do Seminário sobre Filosofia e existência.

Pensara em seguir talvez os mesmos argumentos de Kierkegaard, Heidegger ou talvez Sartre, mas dizer o quê sobre a existência calçando as mesmas sandálias, os mesmos percursos de seus antecessores? O desafio era acrescentar, talvez contrapor, interpelar ou anunciar algo não pronunciado.

Deu-se conta que o ponto de partida deveria ser novamente a linguagem, sempre ela, a pletora edificadora de como enxergamos o mundo, a bem da verdade, constrói os randômicos princípios, teorias, hipóteses sentidos de interpretação e, depois de corroborados, alicerçados, apoiados e reverberados, deixam de ser aleatórios argumentos para serem teses, até serem novamente contestados.

De tanto pensar, afinal, a conferência se aproximara, sonhou sobre o tema. Teve um sonho tão inusitado a ponto de sentir que era real, via-se nele, interagindo, sentido como se estivesse acordado. No sonho, estabelecia um diálogo com alguém desconhecido, nunca antes visto, mas estranhamente “próximo”, como se no fundo não fosse tão desconhecido assim. O tal desconhecido prometera esclarecer um dos sentidos da existência, exatamente, um dos, afinal, cada pessoa constrói os símbolos de sua vivência, ainda que exista algo que unifique todas as outras: a imaginação sobre a vida.

Em tal imaginação coletiva, ainda que particularizada, todas as pessoas partem do mesmo princípio: o de que a vida é estabelecida a partir da percepção dos cinco sentidos. Era como se os cinco sentidos fossem a própria materialização da vida, logo, qualquer construção simbólica ou interpretativa inexoravelmente se origina nela. Sendo assim, pergunta William no sonho, isso cria um axioma indagando acerca daquilo que os sentidos não captam, porém existem. Por exemplo – indaga ele – sabemos que certos animais veem cores, ouvem frequências sonoras que os humanos não captam, então, o que seria realidade para eles não é a mesma nossa, afora o problema da linguagem, não conseguimos decifrar ou estabelecer grande comunicabilidade com os animais!! Seu interlocutor não retruca e permite que ele desenvolva o raciocínio chegando às suas próprias conclusões.

Então ele começa a mergulhar num campo de percepção sensorial deixando de lado todo o seu arcabouço conceitual, intelectual, perscrutando outras zonas de sensibilidade, como a tátil, a sentimental, numa fusão entre mente e coração. Deu-se conta de que a mente fora usada todo esse tempo como a única ferramenta de compreensão da vida, como se os demais órgãos, capacidades, não interagissem entre si, faltando inter-relação, controlados pela mente e seus jogos simbólicos de decodificação do mundo de tal forma tão irretorquível, tão inquestionável que passou a ser em si mesma o sentido da existência.

Quem teria começado o jogo da separação entre os demais órgãos e a mente e da mente com outras possibilidades existenciais? A chamada realidade exigiu uma interpretação da mente que, usando de uma linguagem racionalizada, passou a ser a intérprete da vida, ou a mente se colocou como única possibilidade interpretativa porque assim, calcada na separação, conseguia se notabilizar enquanto diferente? Isso abria uma série de leques e dúvidas, tais como: como a mente, outrora integrada a outros órgãos, “optou” pela separação para se sentir superiora? Quais as consequências da separação? Se a mente, fruto da separação, era limitada, então, todos os códigos interpretativos da vida, por conseguinte, são duvidáveis, ilusões? Se assim o é, então, os nossos sentidos sobre a vida estão alicerçados em falsas premissas? Qual foi o papel da linguagem nesse processo de interpretação, separação de outros órgãos e simbolização da existência?

Ele acordou sobressaltado. Claro, somente num sonho, longe do controle do consciente, tais questões ganhariam tal monta a ponto de não saber o que era ficção e realidade. Logo no sonho onde os códigos interpretativos ganham leveza, as certezas se diluem pela diluição da racionalidade. Correu para o bloco de anotações e começou a esboçar o roteiro da conferência.

À medida que fazia suas caminhadas lançava mão do bloco e acrescia tópicos para reflexão. Começou a ter sudorese pela falta de encadeamento, não havia ainda uma estrutura formal e sabia que a plateia o aguardaria ansiosamente. À proporção que anotava percebia conexões da linguagem com ela própria, ou seja, dependendo do argumento que utilizava abriam-se novos leques de interpretações, todas corretas porque não há erros, e sim, conexões que o pensamento a partir da linguagem, ou a linguagem leva pensamentos para novas miríades a tal ponto que a mente se enevoa nela mesma, nas suas próprias conexões e sinapses. É uma espécie de labirinto sem fim, abrindo portas, mais portas e mais portas. O problema para ele continuava sendo a separação com outros órgãos. Os demais também pensavam da mesma forma? Se pensavam, como estabelecer uma conexão com a mente que só entende sua própria linguagem?

Chegou o grande dia. Auditório lotado. É anunciado ao microfone seguido de um estrondoso bater de palmas. Caminha lentamente até o palco. Usava um blazer azul claro, camisa azul turquesa, calça de linho cinza, cinto marrom e sapatos pretos. Ao subir toca levemente no microfone testando-o. Coloca seus óculos, dá uma profunda expiração, olha para a plateia e retira um bloco de anotações do bolso da camisa. Passa a vista nas suas anotações e sobrevém-lhe na mente brancas nuvens, as palavras embaralham-se na sua frente, fazem um redemoinho, vê literalmente um formato de nebulosa. Silêncio na plateia. Um ligeiro suspense. Pede então a todos que fechassem os olhos e sentissem o que para eles era a existência. Sentir, não pensar, frisou. Neste instante, uma borboleta azul magicamente pousa sobre seus ombros. Ao sentir o voar da borboleta abre os olhos e a vê pousada no seu ombro esquerdo. Estica o braço puxando a manga do blazer para ver as horas: o marcador digital apontava 11:11h am. O silêncio estendeu-se. Aos poucos as pessoas isoladamente começam a abrir os olhos. Começou o burburinho. Quando todos perceberam o palco estava vazio, William Autumn não estava mais lá. Sobre o púlpito apenas os alfarrábios sobre o sentido da existência com anotações sem conclusões.                                               
    


                   

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