terça-feira, 29 de março de 2016

Jogo de espelhos


         Condorcet nasceu pobre. Uma infância difícil e só superada quando seu pai conseguiu um emprego de caixeiro viajante. Vivendo na cidade de Ventosa, interior de TerraLonge, brincava com latas velhas imitando o galopar dos cavalos, único meio de transporte de sua região cercada por um braço de mar que sempre trazia ventos fortes do litoral. De sua janela avistava as dunas ao longe, a fina camada de areia que arribava quando o vento tocava o cume. Ele se via como um grão de areia sendo levado pelo vento para bem longe de Ventosa, sobretudo quando escondido dos pais pegava um livro “roubado” dos poucos que existiam na estante. Era uma criança isolada, ainda que brincasse quando às vezes era chamado por seus amigos. Por vezes também expressava sua maldade, sobretudo com sua irmã mais nova. Certa vez brincando com Alfredo apostou que iria queimar a perna de sua irmã com um cigarro de palha que roubaria de Seu Zuzão, o venderão da esquina. Assim o fez.

        As coisas ficaram bem difíceis em Ventosa depois da morte de seu pai. Levantaram acampamento e partiram em direção a Paranaíba, cidade do interior do estado vizinho de TerraSeca. Lá cresceu e concluiu seus estudos. De vida também difícil percebeu que não poderia mais permanecer, era pequeno demais para suas pretensões. Já na cidade de Natividade ingressou como jornalista nos Diários do Norte e sua projeção fora suficiente para ser convidado para ser assessor do prefeito da cidade. A vida começava a soprar as velas e seu barco mudava de prumo.

        Um certo dia o jornal de oposição publicou contas irregulares e indícios de corrupção da prefeitura levando uma multidão a invadir a sede do poder municipal. A gana por “justiça” fez os revoltosos atearem fogo no prédio e rumarem ao gabinete do prefeito. Quando ouviu a turba ensandecida, Condorcet se escondera no banheiro e pulando pelo basculante apertado, saiu pela lateral chegando ao muro, quando foi reconhecido por alguns manifestantes que começaram a espancá-lo. Desfalecido, foi salvo por uma patrulha da polícia que havia sido chamada. Quando acordou no hospital sabia que seus dias em Natividade haviam acabado. Era momento de arrumar as malas, mais uma vez.

        Para sua terra natal não voltara, de lá já saíra, então decidiu arriscar tudo. Comprou uma passagem no próximo paquete rumo à capital federal. Ao chegar se deslumbrou com o desenho das montanhas, o contorno de sua baía, a cidade com traços coloniais e a quantidade de gentes circulando pelas ruas, gentes de todos os tipos, muitos ou quase todos com o mesmo objetivo que ele.

       Com poucas peças de roupa procurou um dormitório mais barato na esperança de não tardar a encontrar um emprego. Trouxe consigo as referências dos Diários do Norte e depois de 15 dias a procurar, encontrou em caráter experimental uma vaga de redator no Folha da Manhã. Seus anos de leitura lhe permitiu ser um bom escritor, aliado à sua capacidade narrativa. Era o trampolim para a vida literária. Cada vez mais usava o espaço do jornal para aprimorar sua capacidade narrativa experienciando os voos nas crônicas. Como cronista publicou seu primeiro livro tendo como pano de fundo os bastidores da política nacional. Com o sucesso, tornara-se inquestionavelmente um escritor de renome e se valia da posição social que ocupava para angariar espaço político também. Foi assim que se lançou como Deputado Federal pelo seu estado natal tendo sido eleito.

       O ímpeto pela política durou pouco. Percebera que não era seu dom, mas não abria mão das regalias e nem do salário, além de frequentar pouco as sessões parlamentares dedicando grande parte de seu tempo ao oficio de escrever.  Era literalmente um deputado absenteísta e poucas vezes chegou a visitar seu estado natal. Projetos aprovados? Era de contar nos dedos. Poderia contribuir com todos os aspectos para o debate em construção acerca do que seria o bom governar, fazer interpelações, suscitar questões, mas omitira-se em sua posição confortável de escritor.

      O país foi sacudido pela revolta da canetada orquestrada pelos ministros de toga sob a alegação de corrupção no governo federal. Milhares de pessoas foram às ruas pedir renúncia do presidente mesmo não tenho clareza sobre os fatos. Condorcet como jornalista sabia como a trama havia sido orquestrada nos bastidores dos grandes jornais e sabia o quanto de injustiça havia naquela histeria. A imagem do presidente enfraquecia e as instituições democráticas combaliam dia após dia. Se lembrou do tempo em que era assessor da prefeitura de Natividade e como quase foi morto por acusações nunca comprovadas contra o prefeito, sobretudo porque não tinha o controle dos grandes jornais, todos de posse da oposição. A situação se repetia, de novo sabia das injustiças, da necessidade de se fazer justiça a qualquer custo e o quanto aquilo era uma estratégia para desviar os verdadeiros responsáveis. Ainda assim, se deu conta das vezes que de sua pena destilou mentiras ou verdades não provadas com o fito de desmoralizar seus adversários quando era jornalista, quer em Natividade, quer na capital federal.

      De tristeza, adoeceu. Nada recompunha seu ímpeto e seu esplendor como cronista e jornalista lhe parecia uma estranha caricatura. Estava diante de uma sala de espelhos em que toda a sua vida estava retratada, artigo por artigo, calúnia por calúnia, difamação por difamação.

Sabendo que sua morte se avizinhava resolveu escrever seu último livro de crônicas contando os bastidores de como presenciou e participou de conchavos, esquemas e conspirações. O sentido moral do livro era: toda acusação é antes de mais nada um ato de confissão de culpa.

Condorcet deixou determinado para seus herdeiros que a obra só poderia ser publicada 15 anos após sua morte.

Decorrido esse tempo quando o público tomou conhecimento do livro de crônicas, que no fundo eram anotações de diários, ficou estarrecido e toda aquela imagem de bom moço, grande cronista e jornalista veio abaixo. Caiu no ostracismo. Ninguém fala dele hoje em dia.                                               

Entrevista com Arton, de Sirius. Parte II

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