segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

Impaciência, auto-sabotagem e a mentira



Sara era uma mulher obstinada quanto aos seus planos de vida. Estudiosa, determinada, todos os dias acordava as 6h da manhã com seu iphone de última geração tocando Valsa das Flores, de Tchaikovsky. Era uma forma de tentar manter algum tipo de equilíbrio interno e começar bem o dia estressado que viria pela frente. Tinha dificuldades de se levantar da cama; a preguiça como antítese do sucesso lhe era um empecilho, mas sempre se desvencilhava deste pecado capital, levantava-se com a fronte no horizonte e seguia até o banheiro para a primeira ducha do dia, aquela que prepara a alma para o labor.

Preocupada com seu peso, caminhava todos dias 1h com o mesmo iphone ao ouvido continuando a escutar a melodiosa valsa. Era como se a proteção, o invólucro melodioso a protegesse do barulho da cidade, associada à competição, disputa, anti-comiseração. Se dava conta ao longe que o excesso de peso lhe era um inconveniente pela aparência, pelos problemas de saúde, indisposição, mas sobretudo por ter lido num livro de autoajuda que a gordura é uma espécie de proteção da vida, na verdade uma barreira separando o ânimo do contato com o mundo, uma espécie de salvaguarda. O problema é que esse isolamento traz lá suas consequências como doenças e uma sub-reptícia auto-sabotagem, quer dizer, se proteger do mundo, na verdade se isolar, também é uma forma de se eximir de qualquer responsabilidade para consigo e com os outros.  

O que Sara buscava entender todos os dias era porque ela havia engordado tanto nos últimos anos. Ela queria se proteger e se eximir do que? No fundo ela sabia, era perspicaz demais para não notar a doença de sua mãe, no fundo não havia doença alguma a não ser a mesma obesidade que grassava a família impedindo-a de se locomover e viver a vida como sempre fizera. Visitar a mãe era uma tormenta, pois ao vê-la naquele estado sentia uma profunda inquietação, irritação, perdendo a paciência com alguns minutos de contato. O excesso de reclamação da mãe, de tudo e de todos, era o pretexto para a não visita frequente, quando no fundo, se trata de uma situação de um espelho invertido, ou seja, ao ver a mãe naquele estado ela projetava seu futuro de tamanha dependência e obesidade e não gostava do retrato que via. A irritação no fundo era com ela mesma.

A gordura no corpo de Sara era apenas uma das auto-sabotagens, apesar da vida ter-lhe beijado e tudo ter se aberto como um arco-íris. Focada, todos os projetos de vida haviam sido conquistados, era o que podia se chamar de pessoa feliz, com paz de espirito, exceção quando visitava sua mãe. Mesmo Sara sendo uma pessoa extremamente respeitada ainda havia alguns senões na sua trajetória de vida bem sucedida. Ainda que competente em seu trabalho por vezes era contumaz desbriar-se em mentira, tornando-a quase uma misantropa.

A mentira era uma forma de manter o grau aparente de credibilidade no que falava e fazia. Era como se não saber de certas coisas no ambiente de trabalho soasse quase como um ato falho, uma confissão de imperfeição, de não logro com êxito em tudo o que fazia.

Por isso Sara todos os dias ouvia Valsa das Flores, para que as flores da melodia saltassem da música sinesteticamente e perfilasse suas veredas até o trabalho e à casa de sua mãe. A repetição do ato era quase uma oração, um pedido contido de socorro a si mesma, lutando internamente entre o desejo de querer ser e a condição de estar-em-devir ser.

Os momentos de caminhada sozinha era um dos raros durante o dia que procurava ouvir sua voz interna, num processo sincrônico de queimar calorias em busca de uma saúde e corpo melhores para em seguida desvariar-se em grandes pratos de comida eliminando o esforço das primeiras horas matinais. Uma gangorra, uma vida ciclotômica, uma incompreensão entre o ser e o querer estar.

Caminhar todos os dias era assepsia, arrumando as gavetas internas profilaticamente jogando fora o que não servia mais, riscando os obstáculos já ultrapassados e visualizando os que ainda restavam. Todas as vezes que comia um grande prato de comida se martiriza, mas não desistia da ideia de eliminar as gorduras novas acumuladas com a caminhada do dia seguinte. Quando se irritava com sua mãe procurava mentalizar um próximo encontro mais afável e menos tenso. Todas as vezes que se pegava mentindo assistia um filme de ficção e se imaginava como uma das personagens que nunca foi ao espaço, mas todas as vezes que se encontrava com amigos contava histórias de um mundo ainda inexplorado. Se perdoava e se imaginava num lugar idílico, noutra galáxia, onde mães não adoecem e nem engordam, guloseimas estão por toda a parte e pode-se comê-las sem culpa e ... mentir.... é apenas idealizar uma condição diferente das condições objetivas da vida.      


                   

quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

mau presságio

Mau Presságio



Ligação àquela hora da madrugada é sempre é um mal sinal: ou alguém morreu ou um vizinho avistou um ladrão assaltando sua casa. Com problemas de insônia Bernardo já acordou, se é que assim é possível dizer, sobressaltado com o trim trim do seu celular. Deu um pulo e na pirueta segurou o coração com a mão. Era Bernadete chorosa ao telefone pedindo que fosse à sua casa o mais depressa possível. Agitado e esbaforido deu-lhe um desarranjo intestinal, fruto possivelmente do nervosismo do trim trim àquela hora, ou em decorrência das cervejas que tomara na noite passada, noite não, já que Morfeu não dormiu às voltas do longo papo na noite que avançou no bar dos poetas, com aquele camarão seco à mesa, aquele espumosa cu de foca, falando sobre mulheres e machismos.

O fato de se delongar no banheiro só aumentava a angustia de Bernadete. Era ela de novo perguntando onde estava, se já próximo de sua casa ou não. Resposta mais plausível só havia uma:

_ Sim, já sai de casa e estou dirigindo... logo logo chego ai.

Sonolento e sorumbático passa a mão no para-brisa do carro no afã de retirar a fina camada gelosa de brisa. Liga o som com o espirito de tentar acalmar os ânimos. Está tocando back to black, de Amy Winehouse. Gelou!!!!. Suas pupilas se dilatam, seu coração acelera, o que aconteceu, pensou Bernardo.

Mais agitado e nervoso enfia o pé no acelerador sem se importar com as montanhas russas dos quebra-molas, ou melhor, quebra-carros. Numa dessas descidas de um quebra-molas ligeiramente mal construído, daqueles que os moradores da rua aproveitando a noite, quando não há fiscalização e os vizinhos dormem, conseguem um punhado de picaretas, enxadas, instrumento, enfim, começam a esburacar a rua, sem autorização da prefeitura, sem se importarem com os defeitos na pista após o termino desse suposto redutor de velocidade, pimba!!!! Atropelou um pombo, cuja carcaça foi arremessada no para-brisa, espargindo um pouco de sangue, atrapalhando ainda mais a visão e cujas penas ficaram marcadas no limpador.

O frio na barriga só aumentava. Dirigindo ainda mais nervoso o telefone toca de novo, de novo Bernadete, mas sem poder atender com medo de que uma hecatombe tivesse acontecido, lembrando-se de Back to black e do pombo no para-brisa resolve não atender. A dor de barriga volta, só que com mais força. Aperta o passo, mas se lembrou que quanto mais a dor de barriga aperta e você tenta chegar ao local de destino mais são as chances de se borrar todo, então, prefere manter a velocidade média, cruza as pernas pressionando o abdômen, só soltando para pisar no freio, já que a outra perna continua no acelerador.

Ainda está distante da casa de Bernadete. Começa a suar frio. Medo e dor de barriga.

Finalmente avista a casa. Para o carro, abre as portas sem fechá-las e corre em direção ao primeiro banheiro que avista. Bernadete começa a esmurrar a porta pedindo pelo amor de Deus que a abra e socorra Pistorius, nome do seu cachorro que recebeu tal alcunha em deferência ao corredor sul-africano acusado de assassinar sua namorada. Bernadete optou por esse nome depois do seu cachorro ter matado Arali, uma galinha, na verdade namorada daquele que seria depois chamado de Pistorius. 

Quando Bernardo sai do banheiro, encontra o algoz da namorada deitado no chão, com febre, fraco e sem forças. Pergunta o que aconteceu e Bernadete conta que tudo começou depois de um exame feito na clínica veterinária em que o nada delicado médico-veterinário, na tentativa de combater uma verminose, enfiou-lhe um supositório de elefante, trazendo sangramento e deixando-o naquele estado.

Bernardo então carrega seu amigo Pistorius, leva-o até o carro, deita-o no banco de trás, retira o pombo do para-brisa, joga uma água lavando o sangue do vidro, passa a mão no porta-luvas, procura um mp3, seleciona a pasta Roberto Carlos e vai até a música "O Portão". Olha pelo retrovisor, vê seu amigo deitado no banco, tenta acalmá-lo e tranquilamente leva-o até uma clínica.                

Entrevista com Arton, de Sirius. Parte II

  Entrevista realizada no dia 14 de fevereiro de 2024, às 20:00, com duração de 1': 32'', gravada em um aparelho Motorola one zo...