Beechcraft Bonanza (1959)
Por Tonny Araujo
- Ritchie!
Ritchie! Ritchie!
Acho que era
mais ou menos assim que gritava Bob (personagem interpretado pelo ator Esai
Morales no filme La Bamba de 1987) do alto de uma ponte similar àquela que o
Monet pintou. De forma espantosa o personagem, o irmão de Ritchie Valens,
possuía o mesmo sobrenome do ator. Coincidência ou apenas falta de criatividade
mexicana? No es importante.
"Espera
um minuto. Ritchie Valens? Quem é Ritchie Valens?"
Está
brincando, realmente não sabe? Conta outra, xará. Tudo bem, eu entendo sua
dúvida e desculpe pelo tratamento um tanto quanto arcaico. É que esse era o
linguajar das dublagens de filmes dos anos 80, em La Bamba não era diferente,
uma produção que conta a história de uma das lendas do rock n’ roll, Ritchie
Valens. Ou, como constava em sua identidade, Ricardo Esteban Valenzuela Reyes.
“Ué, mexicano tocando rock n’ roll?” Palavras-chave: Los Angeles, colonização
mexicana, bairros americanos cosmopolitas... Everybody wants the american
way of life, baby.
Ainda posso
recordar com um pouco de esforço aquela madrugada - talvez de sábado porque não
havia aula no outro dia - em que acordei para assistir desenhos animados que a
Globo transmitia de madrugada. Era um hábito que meu pai, geralmente, nutria
quando com um balançar sutil em um de meus ombros me fazia saltar da cama e
grudar os olhos na TV. Para a minha surpresa, havia sido condicionado a
despertar de madrugada, mas nesse dia não foi na hora exata do desenho. Na
verdade, ainda estava com um pouco de sono, e meus olhos pareciam estar em
chamas.
Ora bolas,
sei lá porque meu velho tinha essa mania de me fazer ver desenhos em plena
madrugada. Vai ver, sabia a importância de tudo aquilo para uma criança de sete
anos. Vai ver, ele adorava me ver lutar contra mim mesmo para ficar acordado,
enquanto ele, acostumado a perder noites de sono, realizava tal façanha sem
demonstrar qualquer sinal de fraqueza. Para um garoto naquela idade, um gigante
peludo, com voz grave (um pouco calvo, eu sei) e que aguentava ficar de pé à
beira das 4 horas da matina, eram sinais de quase imortalidade.
A luz
daquela Semp Toshiba preta, 29 polegadas parecia uma provação de minha força,
(40 dias no deserto, os 12 trabalhos de Hércules, Odisseu contra o Caolho, o
ragnarock) então, enfrentei a besta-fera que se impunha à minha frente de maneira
muito audaciosa. Estava começando um tal de Intercine. Um programa de filmes
que, sinceramente, não faço a mínima ideia se ainda existe. De repente, em
poucos segundos, minha alma fez uma viagem no tempo. Voltei 10 anos, data de
produção do filme, e depois mais 28 anos, quando Ritchie explodiu nas rádios
com os singles Donna, Come on let’s go, We belong
together, Oh! My head, entre outros e o mais famoso deles, a versão
eletrizante de uma música folclórica mexicana chamada La bamba.
Era o ano de
1959, e Ritchie vivia a melhor época de sua vida. Jovem, cheio de amigos, e um
broto que se chamava Dona com quem circulava em seu carro. Não me esqueço da
cena dos dois assistindo cinema ao ar livre dentro de um Cadillac. O carro dos
grandes. “E aí, meu chapa, já viu meu possante?”
Bob, seu
irmão mais velho, era um encrenqueiro, e apesar da inveja que tinha do
“tampinha” de 16 anos, fez de tudo para o irmão chegar aonde chegou, até ser
seu baterista quando ninguém queria tocar com ele. Não é estranho que
hoje eu sinta uma admiração maior pelo personagem.
Antes de
chegar ao topo das paradas de sucesso juntamente de nomes como Buddy Holly e
Big Bopper, o chicano havia passado por maus bocados, trabalhado duro para
comprar uma guitarra, e mesmo assim, sonhava em ser um astro do rock. Algum
tipo de Elvis. Sem a jaqueta branca, claro.
Enquanto
assistia ao filme, aquelas canções que tocavam como trilha sonora, a maioria
regravações feitas pela banda Los Lobos, libertavam algumas sensações estranhas
em mim. Uma mistura de tristeza e alegria. Ânsia e calmaria. Desejo de tomar
banho na chuva que caía, mas medo do tremendo resfriado e da possível injeção
que viriam em seguida. Havia um cheiro diferente naquela história, contudo
ainda não sabia o porquê. É claro que estava na cara que não era igual a um
musical igual Dançando na Chuva, ou gozado como os filmes do Jerry Lewis. Havia
algo de diferente nele. Como se as tristes baladas de fundo me induzissem a
pressentir que algo ruim ia acontecer.
Uma das
coisas legais do filme, é que mostra certa apatia do jovem Ritchie no início da
carreira por ser chamado de “mexicano”.
- Não sou
mexicano, chapa. Sou americano.
Não sei se
ele mudou de opinião quando visitou a cidade de Tijuana. Mas não se pode negar
que fazer aquela versão para La Bamba foi uma grande sacada. É, sem sombra de
dúvidas, uma Twist and Shout mui caliente. Diz a letra no bom
espanhol:
Para
bailar la Bamba
Para
bailar la Bamba
Se
necesita una poca de gracia
Una poca
de gracia y otra cosita
Y arriba
y arriba, Y arriba y arriba
Por ti
seré, por ti seré, por ti seré
Yo no
soy marinero. Yo no soy marinero.
Soy
capitán. Soy capitán. Soy capitán
Não é
possível que você não conheça. Na época só entendia a última estrofe da canção.
Era o bastante para despertar minha mais profunda admiração. Nada de ser
mandado, nada de estar por baixo, nada de ser um palerma. Aquele era o cara.
Quem eu votaria em presidente. Se eu tivesse 18 anos e fosse americano em outra
dimensão espaço/temporal. Essa seria a parte mais difícil, porque tenho certeza
que, se pudesse Ritchie se candidataria. Infelizmente, não houve muito tempo
para cogitar tal empreitada.
Foi uma longa
turnê tocando seus maiores sucessos nos Estados Unidos. No filme, Ritchie tinha
um medo estranho de voar, tinha pesadelos com um avião se espatifando. Não sei
se realmente isso foi verídico na vida do cantor. Fato é que, aquela informação
que se repetia fomentava uma sensação de perda antecipada no telespectador. Era
isso! Os pesadelos sucessivos. Isso me causava uma tristeza precoce. Mas estava
gostando muito do filme para querer pensar em seu desfecho. Normal, nunca
pensamos a respeito do fim das coisas que gostamos para não estragar a
felicidade. Porém, tudo tem um início, um meio e um fim.
Na parte
inferior da tela surgia a mensagem que carregava a mesma sensação da frase
“reunião de pais e mestres”. Puxa vida, já era a parte final do filme! Que bela
droga. Fazer o que?
O ator que
interpretava Ritchie se chamava Lou Diamond Phillips, e por muitos anos
associei a pessoa do cantor ao rosto dele, até a internet cair do céu com suas
doses exacerbadas de esclarecimento. Gracias a dios! Lembro bem que,
Ritchie saía de uma apresentação, e corria para outra. Estava se tornando cada
vez mais famoso e requisitado. Os lugares em que tocava se tornavam cada vez
mais distantes e ir de carro se tornava cada vez mais um verdadeiro saco.
Imagine no final da década de 1950. Era hora de perder o medo de voar. Era hora
de ir mais longe. Mas antes, Ritchie tinha que dar uma palavrinha com seu
irmão. Os dois haviam brigado. Coisas do impulsivo Bob. Para a surpresa de
Ritchie, Bob pediu perdão pelos seus atos, uma conversa sem frescura entre dois
hermanos de verdade.
- Ainda
somos irmãos ou não somos?
- Bob, ainda
está aí?
- Sim, cabron,
ainda estou aqui. E ainda sou seu irmão.
- Tá certo,
irmão, te vejo em Chicago.
- Até mais,
chapa.
Aquela seria
a última vez que Bob e Ritchie consertariam as coisas, e engoliriam o orgulho
que parece ser maior entre os próprios familiares quando o assunto é perdão.
Foi uma cena emocionante, mas estava longe de ser tão emocionante quanto o
final que estava em curso.
Após uma
apresentação juntamente com os astros do rock daquela geração, os quais Ritchie
admirava, e os quais foram sua influência e sua motivação: Buddy e Big Bopper.
O cantor e guitarrista tinha que tomar um avião com eles e outros se quisesse
divulgar seu nome e sua música para lugares mais longínquos. Deveria enfrentar
seu medo de voar. A grana, porém, só dava para bancar um jatinho, de nome
Beechcraft Bonanza, com apenas quatro lugares, incluindo o piloto Roger
Peterson. No filme, era preciso tirar na sorte para ver quem ocuparia os
lugares na primeira viagem, pois havia uma quarta pessoa querendo ir, talvez
outro cantor, chamado Tommy. Os felizardos foram, exatamente, Buddy Holly, Big
Bopper e Ritchie Valens.
- Engraçado,
é a primeira vez que ganho no cara ou coroa em toda a minha vida. Disse
Ritchie, sorridente.
Ao adentrar
as dependências do jatinho, Buddy notou que o semblante de Ritchie estava
empalidecido, preocupado. Para confortar o amigo, Buddy disse uma frase que
jamais saiu da minha mente:
- Relaxa
irmãozinho, vai dar tudo certo. Além disso, o céu pertence às estrelas, certo?
Ritchie
sorriu, foi acalmado pelas palavras do amigo. Nada daquele aspecto pusilânime
para um futuro astro do rock n’ roll.
Manhã de
terça-feira era fevereiro de 1959. Os jornais documentavam que três astros do
rock texanos haviam morrido em um acidente de avião, devido às péssimas
condições do tempo. Segundo os jornais, a dura tempestade naquele inverno fez
com que o avião que levava as três pessoas caísse e se destroçasse em uma
plantação.
No filme,
Bob está debaixo de um carro tentando consertar uma peça quando ouve a notícia
no rádio, e apenas dá atenção quando o locutor revela o nome dos três top
rock n’ roll singers. Um deles era seu irmãozinho.
Não tardou
para que a notícia se espalhasse. Raul Seixas diria muito tempo depois que
aquele foi “O dia em que o rock n’ roll bateu as botas”. Os jornais americanos
diziam a mesma coisa, em um tom mais triste, devido a proximidade temporal.
Lembro que
assistia ao filme atento, esperando um final tão feliz quanto o de Querida,
encolhi as crianças. Estava enganado. Redondamente. Minha tristeza foi súbita.
Não era possível. Devia ser sacanagem do diretor. Para garotos de sete anos,
todo mundo morria de velhice e não daquela forma, e aos vinte anos. Infelizmente,
era tudo verdade.
A cena do
funeral se tornava cada vez mais emocionante ao passo que a trilha sonora, Good-night,
my love, ia aumentando devagar. Bob se isolara para pensar, desconsolado,
em prantos. Estamos de volta àquela ponte, lembra? O sonho parecia ter
terminado com o eco daquele triste grito.
Tudo nessa
vida tem um início, um meio e um fim. Esse é o final desta história. A história
da vida real, que começa e termina, às vezes, sem dizer adeus. Se há alguma
espécie de moral da história? Se eu aprendi algum valor depois de ver esse
filme quando criança? Se manter vivas tais lembranças me traz algum benefício?
Você gosta muito de fazer perguntas, não é, meu chapa?
Vou te dar
um conselho, xará. Em vez de ficar com essa babaquice melodramática, aumente
seu som, e experimente ouvir e dançar La Bamba. E não, não interessa se você é
marinheiro ou capitão. Esse será sempre o som da cascavel.