quarta-feira, 17 de setembro de 2014

Sobre o vazio ético na sociedade brasileira

Estamos assistindo pelos noticiários televisivos a falência não só da democracia burguesa não liberal brasileira, como também o fracasso do estado em se colocar na condição de condutor das políticas públicas mínimas com o fito do bem estar social. 

Fracasso talvez seja pleonasmo, uma vez que, segundos os princípios marxianos, o estado em qualquer época, lugar, sempre aspirou os anseios de quem o comanda, governa. Sob este prisma, o estado brasileiro nunca fracassou, muito pelo contrário, sempre foi extremamente eficiente no exercício de favorecer os grupos mandatários, e não de promoção do bem-estar social.

Acontece que estamos assistindo a falência até mesmo dos princípios reguladores do estado em benefício das elites, vide que a corrupção macula, mancha, destorce, inviabiliza a ideia de que todos estamos sob o involucro de um fenômeno, um princípio régio para além do bem e do mal e sem o qual nenhuma sociedade subsiste. O Brasil, não como extensão de Ocidente, mas sua negação, é um fracasso. As instituições democráticas brasileiras em sua quase totalidade são grassadas pela antiética, pelo servilismo, apadrinhamento, ausência de transparência, cheias de pessoalidades, podres. Quem achar que os brasileiros confiam em suas instituições e/ou se sentem representados, protegidos, estão redondamente enganados.

Os brasileiros existem, vivem, apesar das instituições e não coparticipes delas. Nem mesmo os escândalos de corrupção são capazes de mudar o panorama eleitoral porque via de regra é consenso a ideia de que roubar é mais que natural, é endógeno da coisa pública, da condição da política. Prevalece a noção de que mesmo os honestos, uma vez inseridos na lógica da política, irão se corromper também.

Quem é o responsável por esse quadro? A história, não enquanto disciplina, conhecimento, e sim, enquanto processo, estrutura. Os brasileiros desde os períodos de conquista europeia foram expectadores da forma como os aparatos burocráticos do estado foram sendo apropriados para as benesses de um grupo sem o menor respeito e concessão aos demais segmentos sociais. Os brasileiros aprenderam a tirar proveito de tudo porque além de uma vingança contra os usurpadores, era a única chance de conseguirem algo para sobrevivência, porque pelas vias legais era muito difícil, quase impossível.

Isso virou uma questão cultural perpassada de geração a geração. Impunidade, esnobismo, pilhéria com o que é público virou norma, uma espécie de câncer que atingiu a quase todos levando a uma sensação de que nada poderia ser feito para evitar ou mudar esse quadro. Resultado: temos gerações inteiras “educadas” sob a égide da antiética. Ser antiético neste país é um valor cultuado, exemplo de esperteza, ou seja, trabalhar, ser sério, são sinônimos de ser otário, vacilão, perdedor, afinal, roubar é mais fácil e livre de punição.

Como mudar este quadro? Acabando com nepotismo, com favorecimentos, estabelecendo concurso público e transparente em todos os cargos, instituindo a meritocracia, e não a indicação, universalizando o ensino em todos os níveis, controlando o judiciário, protestando nas ruas e nas redes sociais, denunciando policiais, juízes, advogados corruptos, pressionando o estado, criticando a mídia quando faz vista grossa, lutando pela ética, pois que esta deveria estar acima de tipologias e tipificações deste ou daquela forma de governo.

Ou a sociedade brasileira vai às ruas, muda o quadro eleitoral votando em novos deputados, senadores, presidentes, governadores, prefeitos, vereadores de fato honestos, ou vamos assistir a enxurrada do dinheiro público, o erário, escorrer vala a baixo levando consigo esperança, desejo de mudança, acometendo vítimas de assassinatos pela pura descrença de que a barbárie, a banalização da vida são os motes da existência, quando no fundo sabemos que não é.

Não adianta apontar apenas os políticos profissionais acusando-os de corrupção, ela está em todos os lugares; professores que não ministram aulas em escolas públicas, mas não faltam nas particulares; moradores que roubam água e luz; guardas de transito que aceitam propinas; policiais associados aos criminosos; juízes corruptos; blogueiros chantagistas; governadores que fazem caixa 2; prefeitos que desviam verba da merenda escolar; funcionários públicos que falsificam documentações; pastores que roubam seus fiéis; empresários que não registram carteiras de trabalho de seus funcionários; contadores que se especializam em burlar a receita federal; população pobre que recebe benefícios similares conflitantes quando a lei não permite; pescadores que fraudam associações; sindicalistas que alteram dados de seus sindicatos; assessores parlamentares que não trabalham e se utilizam da máquina estatal para benefício próprio e dos familiares; jornalistas que vendem matérias; alunos que colam ou plagiam artigos.

A lista é quase infinda.         

sábado, 6 de setembro de 2014

Tempos Difíceis: o caso do racismo ao goleiro Aranha, do Santos Futebol Clube



                                                                                                                    Álvaro Moreira

No dia 28 de agosto em Porto Alegre, o goleiro Aranha, do Santos Futebol Clube, sofreu repetidas ofensas e demonstrações de racismo expressadas pela palavra “macaco”, cometidas por indivíduos da torcida do Grêmio. Aqui não irei me aprofundar no fato em si, mas em algumas repercussões post factum.

O incrível jornalista esportivo dos canais ESPN (que como muitos dos seus colegas de emissora, têm a perspicaz habilidade de fazer análises sobre futebol, se debruçando e fazendo o link entre sociedade, política e economia), Mauro Cezar Pereira, no seu não menos fantástico blog[1] nos alerta sobre algumas questões. 1) Existe uma certa conformidade generalizada com o ocorrido, esse ignóbil fato é materializado na súmula do jogo, o árbitro Wilton Pereira Sampaio ignora o que aconteceu, as queixas dos jogadores, enfatizando outros contratempos da partida e omitindo a animalesca atitude de alguns gremistas. 2) Como se o que aconteceu em campo não fosse algo suficientemente nocivo, alguns gremistas a posteriori postam em redes sociais como o Twitter frases como: “tem que queimar essa Aranha macaco catimbeiro!”, evidenciando um problema sintomático.

Contudo, o que se tornou a gota d’água para expor o que eu penso e sinto por meio desse texto, foi a coletiva de imprensa transmitida no dia 05 de setembro da torcedora Patrícia Moreira, uma das pessoas flagradas durante o ato racista, e a mais evidenciada da gravação na arquibancada. Ao contrário de certas opiniões defendidas na internet, eu não acho que a torcedora deva ser julgada e pagar pena... sozinha. Ela é uma cidadã em sua maioridade e deve ser responsável pelos seus atos, bem como todas as pessoas que vão ao estádio ou qualquer lugar para proferirem palavras racistas, ou outrora o fizeram. Estamos cansados desse discurso rasteiro que diz: “Ela não é racista, tem amigos negros”; “eu não sou racista, minha empregada negra, tem um quarto só pra ela nos fundos da casa”; “eu não sou racista, eu olho um negro e não corro”.

Não posso deixar de fazer referência à obra clássica para o entendimento do Brasil, escrita na primeira metade do século XX, Casa grande e Senzala, onde Gilberto Freyre, embora inovador no método de pesquisa e no uso de fontes até então não utilizadas, “suaviza” muito a relação de dominância entre a classe senhorial e seus escravos, ou entre brancos e negros, dando uma perspectiva de quase uma “harmonia perfeita” na ordem escravocrata. Essa falsa concepção de um Brasil livre de tensões interaciais se perpetuou até a atualidade.

Entendemos melhor esse fenômeno quando lemos o sociólogo Antônio Guimarães, que diz que o racismo no Brasil é mais difícil de ser identificado, pois é um racismo “assimilacionista”, que nega as diferenças e conota uma falsa ideia de sociedade homogênea (muitas vezes “nas entrelinhas” disfarçado), diferente do “jim crow” a segregação racial dos Estados Unidos. Ora, o Brasil é um país conservador, racista, homofóbico, abaixo o mito da igualdade racial e paraíso na terra! Estamos muito bem obrigado! Será?

Dito isto, vamos a algumas colocações no mínimo curiosas da entrevista. Não posso me furtar de explicitar que tive a impressão de que a torcedora estava mais preocupada com a situação do Grêmio, excluído da Copa do Brasil por decisão do STJD, do que sua própria situação perante o goleiro Aranha – o que é um absurdo! Quero aqui expor também minha ojeriza a sentimentos aflorados em demasia por clubes de futebol, que muitas vezes causam violência entre torcidas, resultando em atos de ignorância.

As falas do advogado Alexandre Rossato são ainda mais curiosas, eu destaquei algumas para que o leitor analise comigo: “A exposição dela não foi racista, de forma verdadeira”, e "Macaco, no contexto dentro do jogo, não se tornou racista. Isso se torna um xingamento dentro do futebol. Uma das expressões dentro do futebol. As próprias mães dos árbitros são xingadas historicamente dentro do futebol". É legitimo o direito da torcedora de defesa perante a lei e lamentável as ameaças que alega sofrer, todavia, o fato é muito claro, o que aconteceu foi uma manifestação racista com a intenção de ferir a moral de um indivíduo negro.

Dia 19 de junho durante o programa da SPORTV, “Extraordinários”, o jornalista Eduardo Bueno, gremista por coincidência, se dirige à Região Nordeste como “aquela bosta” citando a empreitada produção açucareira pelos holandeses durante o período colonial, causando muita repercussão. Apesar do dito bom humor do programa, eu não vi uma retratação, e o pior, ao sofrer pressão dos nordestinos, o jornalista convidou quem o criticou a ler 40 livros sobre o nordeste para, então, poder discutir com o mesmo.

Eu não li 40 livros sobre o nordeste, contudo, me irritei com a declaração e principalmente com a falta de preocupação em notar a conjuntura de preconceito que o nordestino sofre, muitas vezes, por indivíduos das Regiões Sul e Sudeste, em redes sociais ou, “à queima roupa”. Já disseram caros leitores: “Nordestino não é gente, faça um favor a Sp, mate um nordestino afogado!” Eduardo Bueno não teve sensibilidade em reconhecer que a expressão utilizada foi no mínimo “sofrível”.

Esse texto simplório, entretanto, sincero, é uma tentativa de externar minha revolta contra fatos que estão simplesmente mais corriqueiros, e convido as pessoas com senso crítico mais apurado, que não deixem esses fatos se tornar legitimados, denunciem preconceito, racismo ou quaisquer tipos discriminação.

Estamos vivendo tempos difíceis. O atual período de eleição é terreno fértil para fundamentalismos religiosos, principalmente contra a causa LGBT, que é extremamente nobre e legitima. Cito as palavras de uma pessoa muito especial que há um tempo me acompanha: “O Brasil está na contramão do mundo”, enquanto nossos “hermanos” argentinos e uruguaios já aprovaram o chamado “matrimonio igualitário”, equiparando o casamento de homossexuais ao casamento de heterossexuais, setores da sociedade brasileira insistem de forma ignorante em dizer que homossexualidade é um “comportamento”, “doença”, e pode ser curada.

O historiador Leandro Karnal, na exposição oral Confrontos Religiosos e Fundamentalismos, no programa Café Filosófico da TV Cultura, usa exatamente essa expressão, porque o fundamentalismo está inserido em todas as religiões, não somente no Islamismo como o Ocidente retrata. Por exemplo, o argumento utilizado por alguns fundamentalistas dos Estados Unidos contra o casamento homoafetivo, é que, se esta relação se pautar apenas no amor, e não somente na união “natural” entre homem e mulher, a família será destruída. Leandro Karnal, sensatamente retruca: “Eu nunca entendi isso exatamente, como a minha família será destruída se meu vizinho for gay.”

Frases como: “Mas sempre foi assim”, ou “As coisas são assim mesmo”, são um desserviço à sociedade, o ser humano é dotado de capacidade de mudança, e para melhor. No século XIX, a corrente do “racismo cientifico” demonizava a miscigenação e acreditava que através do estudo de crânios de pessoas negras era possível perceber o quanto estas eram propensas a serem criminosas. A sociedade evoluiu em relação a esse aspecto, contudo, não podemos ficar de braços cruzados contemplando cidadãos marginalizados por sua cor, orientação sexual, crença, ou condição econômica. SIM! SOU BRASILEIRO, NORDESTINO, MESTIÇO, SOU UM SER HUMANO E SOU CONTRA RACISMO, DISCRIMINAÇÃO E A HOMOFOBIA.



terça-feira, 2 de setembro de 2014

Sobre um alguém incomum

Poucas profissões permitem tanto a capacidade de aprendizagem, circulação e mudanças de pessoas como a de professor. A cada semestre, já que o sistema acadêmico universitário brasileiro, via de regra, é semestral, me deparo com um conjunto de novas criaturas com suas histórias de vidas, sonhos, medos e ansiedades. A cada semestre o repertório de expectativas aumenta; a delas em relação a mim, as minhas em relação à deles.

Como eles são? Penso eu... Como são os professores? Pensam eles... E assim, perpetua-se um ciclo renovado nas lides da pedagogia, pedagogos, pai das crianças. É dessa forma que tenho me sentindo recentemente, isso porque a cada semestre, a cada ano, eu envelheço ao passo que as novas turmas são constituídas de pessoas cada vez mais jovens. Já se foi o tempo em que a distancia entre minha idade e a deles era pouca. O mecanismo de Bolt, qual o relógio do tempo não para, funciona como uma engrenagem perfeita, muito mais para mim. Não me refiro a Bolt, velocista jamaicano, e sim ao físico que descobriu a impossibilidade da máquina perfeita.  

Todas as turmas são especiais ao seu modo, todos os alunos possuem suas características: engraçados, tímidos, envergonhados, exibidos, inteligentes, religiosos, revolucionários, ansiosos, afoitos, conservadores, enfim, um mosaico da tipologia humana.

Neste semestre que se inicia me deparei com um aluno sui generis. Ele é esquálido, corpo de jogador de futebol, anda mancando em virtude de uma contusão em seu joelho decorrente de uma pelada (partida de futebol em campo de várzea), esse é um sonho frustrado dele, cabelo aloirado pintado artificialmente, engraçado, despojado, ingênuo e muito, muito contemporaneamente retrato de uma época que mistura sonhos e possibilidades, esperanças e frustrações, perspectivas e clareza da ausência de projetos sociais e educacionais que possam levar o Brasil a um patamar mais decente. Na verdade projetos há, mas os embates em torno deles levam a uma sensação de confusão quanto ao que seja sociedade, o que é melhor, como atingir tal condição, qual modelo seguir.

Esse aluno é um sintoma disso. Ele e a turma são oriundos de um ensino médio defasado, cujos professores mal remunerados, desprestigiados, despreparados, desrespeitados em suas condições ancilares de construtores não só de conhecimentos, como de princípios políticos norteadores da vida, muitos já não transmitem paixão no que fazem, já se descolarem da condição ontológica do que é ensinar, para que, por que e como.

Ao chegarem ao ensino superior encontram um abismo entre o que é ensinado ao longo dos ensinos médios e fundamental e os conteúdos, abordagens, metodologias distintas ministradas no ensino superior. Abre-se um debate acerca da função da Universidade, o que fazer, como proceder, qual deve ser sua ação: proporcionar uma espécie de nivelamento dos conteúdos ou explorar os procedimentos relativos ao ensino superior. Cada vez mais estou convencido do papel da Universidade, sua omissão em relação aos ensinos fundamental e médio, sua entropia e distanciamento da sociedade, numa espécie de autoreferenciação com seus códigos quase fechados, linguagem hermética.

Esse aluno, cujo espirito despojado é compartilhado pela turma, igualmente receptiva, alegre, engraçada, inteligente e ávida por conhecer, é carinhosamente alcunhado pelos seus pares como “filósofo contemporâneo” por suas tiradas geniais, abstraídas de suas vivências, pelo seu humor refinadíssimo e pela sua capacidade catártica de sempre correlacionar um fundamento filosófico com situações absolutamente triviais, tentando buscar ilações, numa reelaboração a partir de suas formas de apreensão da vida.

No fundo ele é um filósofo contemporâneo sim, mas ao seu modo, a partir de suas representações e de como associa uma abstração trazendo para seus códigos internos de reelaboração e ressignificação dos conteúdos. Não adianta a Universidade fechar os olhos e simplesmente criticar a ausência de conceitos que não foram desenvolvidos ao longo da vida  estudantil, e sim, utilizar tais formas de apreensão da vida a partir desses jovens e perceber como eles depreendem as relações sociais, quais os nortes desta sociedade contemporânea complexa e multiforme, e como pode ajudar na construção de novos sujeitos, sem perder de vista suas especificidades.

É um desafio para todos nós, inclusive para eles. Para os professores porque é preciso compreender a dinâmica do tempo, das mudanças, das múltiplas formas como o conhecimento se apresenta e como pode ser abordado. Para eles, pois que precisam fazer um exercício continuo de aprendizagem, absorver a necessidade de uma dinâmica de leitura, de refazer estruturais mentais, se abrir para novos horizontes e apreenderem que a vida é um continuo fazer, aprender, resignificar, reelaborar. A vida é como um jogo de pinball, conforme a rebatida da bola, a vida, segue um caminho ou outro, mas o destino é sempre o mesmo, o vórtice da existência.

Quão bom seria se amadurecêssemos incorporando novos processos sem perder a ingenuidade, meiguice, humor deste jovem e destes jovens de sua turma e época que sempre estão nos ensinando... Inclusive que não devemos nos levar muito a sério, aliás, nada, a vida é leve, são os anos que vão pesando sobre os nossos ombros.   

  
     

             

Entrevista com Arton, de Sirius. Parte II

  Entrevista realizada no dia 14 de fevereiro de 2024, às 20:00, com duração de 1': 32'', gravada em um aparelho Motorola one zo...