terça-feira, 29 de julho de 2014

Sobre o Sentido da Vida

Adonay Ramos Moreira


   Talvez, senhores, o maior desafio de estarmos vivos não seja somente viver, pois, além de nós, há outros seres que conosco compartilham esse grande Bem e essa grande Dádiva. Os pássaros, os animais, as flores, todos eles, na medida de sua existência, gozam a vida e, ao que parece, sabem viver.

   Respirar, movimentar-se ou sentir, nada disso responde ao grande apelo que é-nos colocado ante o fato de estarmos vivos. O amor, a falta, os sentidos, até mesmo o vazio, às vezes, comunica-nos que há sempre algo a mais, há sempre uma ausência, um apelo, algo a cumprir-se.

   Assim como as flores, além de belas, buscam perfume e revelam que, na vida, algo sempre além de nós mesmos deve ser buscado, vivido, assim também nós buscamos um sentido, uma razão, uma maneira de ser.

   Ainda que a busca seja, para alguns, árdua, ela é extremamente precisa, necessária, pois nos comunica com essa parte de nós que aspira à eternidade, ao infinito, que não se conforma com o fato de simplesmente existirmos, de vivermos passivos e entregues por entre as coisas.  

   Essa falta de sentido, esse medo, é justamente isso que deve ser superado, vencido, para depois ser esquecido, como uma sombra.

   E como, senhores, saber, em meio a esse grande turbilhão que é a vida, o que buscamos, o que nos é preciso, o que devemos ter? Embora o caminho seja longo e às vezes mesmo difícil, a resposta é simples: o que buscamos, o que dá sentido para nossa vida é o outro. O outro e o seu medo, a sua fraqueza, a sua culpa. O outro e o seu amor, sua compreensão, seu carinho, sua forma de ser. O outro e sua falta, a sua busca, o seu silêncio, o seu riso, a sua voz. Sim, é o outro que dá sentido às nossas vidas, pois, na nossa solidão de indivíduo, há sempre algo que deve ser preenchido, vencido, superado.

   Ter os outros como o sentido da vida não significa esquecermos de nós mesmos. Pelo contrário. O outro também nos ensina a nos querer a nós mesmos, a nos amar, pois é verdade que, quanto mais seguros estamos de nosso ser, mais rápido temos acesso ao outro, mais compreendemos, mais amamos, mais sentimos.

   E para aqueles que dizem que a verdadeira felicidade, o verdadeiro sentido da vida só é encontrado em nós mesmos, afirmando, assim, que só somos felizes na solidão, devemos dizer, com a mais plena certeza, que, em verdade, a solidão não existe, que é apenas uma ilusão de nosso ser, uma quimera.

   Para alguns, os mais incrédulos, isso pode parecer sem sentido, mas sabemos que, como homens, temos o direito de não compreender. Contudo, é preciso que se afirme: nunca, sob nenhuma hipótese, jamais estamos sozinhos, pois mesmo quando não há ninguém ao nosso lado, mesmo quando, trancados em um quarto escuro, exilados de todo e qualquer contato humano, mesmo assim a solidão não nos toma, pois sempre temos nós mesmos, os nossos sonhos, a nossa memória, os nossos desejos, a nossa fé. Sempre nos segredamos baixinho, em conversa com nossa alma. Onde, já então fracassados, vamos buscar forças para podermos continuar a viver? Em nós, é apenas em nós mesmos que se encontra esse manancial que, mesmo já vencidos, nos pega pela mão e nos coloca de volta à viagem. E como, então, podemos dizer que a solidão existe? Não, ela não é real, pois, mesmo exilados, ainda temos nossa alma para, junto conosco, continuar a seguir. Isso sobretudo, e, nessa relação, nada, nem mesmo a solidão, penetra. 

   Assim, percebemos que é no outro, em nossa relação com os outros seres, que vamos buscar sentido para nossas vidas, pois, como acontece a uma flor que, solitária, pode ainda ser bela, mas não gloriosa, por não ter jardim, assim acontece ao homem que, mesmo podendo viver afastado dos outros, é-lhe vedado desenvolver todo o seu ser, pois é somente em comunidade que pode dar tudo de si. Os artistas, os poetas, os homens comuns, todos eles só se tornam plenos quando convivem com os outros, quando aprendem que é no outro que preenchemos a nossa falta, é na alegria do outro que suportamos a nossa tristeza, é na vida do outro que ultrapassamos a nossa própria morte.  
   
   Quem quer que seja que nos tenha feito existir, se foi Deus ou o simples acaso, o fato é que, em nossa existência, lá no fundo, foi colocada essa grande necessidade de companhia, essa falta, essa vontade. 


   É apenas no outro que me afirmo. É por não ser ele que sei quem sou. É nele que vou buscar a palavra amiga, o abraço sincero, o conselho. É por ele que acordamos a cada manhã e cremos ser possível o dia, mesmo que a realidade nos maltrate. O outro continua a minha obra, me faz mais forte, me ensina a viver, me ensina a sofrer, me ensina a amar. O outro complementa a mim e ao mundo porque ele é capaz de fazer aquilo que não faço, é ele que sabe o que não sei, é ele que sente o que eu não sei sentir. E isso é recíproco, pois também o outro precisa de mim, é em mim que ele se afirma, é em mim que ele confia, sou eu quem ele espera.

   E essa relação nos fortalece, nos educa. Uma vida solitária não é de fato uma vida. É, no fundo, uma morte camuflada, pois, assim como os mortos, um homem solitário está sempre ausente, frio e incomunicável. E mesmo que digam que o contato com os outros nos corrompe, nos faz perder sempre alguma coisa, não é isso algo preciso, pois, depois dessa falha, não nos ergueremos ainda mais fortes?

   O outro é a medida de meu ser. É como um espelho que, mesmo sendo diferente, na sua observação formo uma imagem de mim. Eu sei que é difícil a tolerância, a compreensão, mas, como tudo na vida, a arte de compreender e tolerar é também um exercício e, como tal, só pode ser aperfeiçoada e chegar à excelência na prática, no cotidiano. No fundo, para chegar ao outro é preciso humildade, mas sobretudo sabedoria, calma e amor.

   Alguns poderiam dizer que, em nosso discurso, esquecemos a morte, e então nos lembrar que, mesmo amando o outro, dela jamais estaremos salvos; lembrando-nos que o outro da morte não nos livra. Ora, mas por que deveria fazê-lo? Assim como todas as coisas que existem, a morte é também necessária e nos impõe ainda mais a necessidade de saber viver.

   Talvez seja mesmo esta a função da morte: mostrar que estamos vivos, que necessitamos do outro, que devemos buscar nele, durante o pouco tempo que nos concederam existir, o verdadeiro amor, a verdadeira felicidade. Dizendo-        -nos que é o outro o sentido de nossa vida e que é com ele que encontramos uma significação para ela. Sim, senhores, são os outros o sentido de nossa vida e, junto com eles, formamos uma chama finita, mas poderosa, intensa, que deve ser consumida segundo a segundo, hora a hora, dia a dia, com amor, com fé e sem pressa.   



Adonay Ramos Moreira é estudante do Curso de Filosofia da Universidade Federal do Maranhão (UFMA) e autor dos livros Sentimentos e Poemas, ambos de poesia. 

sexta-feira, 18 de julho de 2014

Afinal, o que é a existência?

Vindo do latim EXISTERE, EXSISTERE, desde quando a humanidade começou a indagar o sentido da existência, mais os desdobramentos dela se verteram em significados cada vez mais elaborados em que a própria palavra “existir” passou a definir um sentido em si mesmo. Existir é verbo (in) transitivo.

Intransitivo, porque não precisa de complemento, não requere objeto, existe por si só. Transitivo porque a própria ideia de existência não comporta uma definição sem prerrogativas. Como assim? Simplesmente SER, EMERGIR, SENTIR, ESTAR? É isso, não há muita compreensão ou explicação.

Existe uma corrente filosófica derivada dessa palavra. O movimento se cognomina de existencialismo, usualmente atribuído a Jean-Paul Sartre enquanto pilar de tal corrente surgida na França do século XX, mas que perfeitamente pode ser encontrado em várias passagens, citações, movimentos religiosos, políticos ao longo da humanidade. Modernamente teve como precursores um dinamarquês por nome Sören Kierkegaard, depois Nietzsche, Gabriel Marcel, Heidegger, até o famoso francês e sua não menos importante companheira Simone de Beauvoir.

A ideia central de tal corrente é a preconização de que nós, os humanos, somos os únicos responsáveis pelas conduções de nossas vidas e os desdobramentos do que tudo isso implica, ou seja, compete a nós única e exclusivamente a responsabilidade pela própria ideia de existência que assumimos. Para alguns isso cria um alívio e um peso. O alívio se dá pelo fato de que não é infortúnio do destino a consequência pela nossa infelicidade. O peso reside exatamente nisso, se somos infelizes, somos os condutores de nossas próprias decisões.

Certa vez, um escritor chamado Samuel Beckett afirmou saber a verdade sobre a existência. Claro, dentro da literatura qualquer verdade é aceitável, qualquer definição pode ser a palavra final sobre qualquer coisa, inclusive porque expressar as angústias acerca da própria existência é uma característica literária. Ali, nos sentimos representados em cada lágrima, amores correspondidos ou não, dramas, vicissitudes, mortes, apegos, ilusões, decepções.

A literatura, assim como a arte possui a capacidade de externar a assinatura de seus autores. Se quisermos saber como um escritor ou artista enceta o drama da vida basta olharmos suas assinaturas, suas obras. Muitas vezes não as compreendemos, nem eles. É que depois de existente – de novo a acepção latina –, as obras ganham vida própria como se elas mesmas possuíssem existências em si mesmas? Sim e não. Sim, posto que as obras sejam manifestações do narratário, a vontade de potência daquilo que é, necessitando de um meio, um meneio para se expressar; pode ser um livro, um poema, uma crônica, um objeto, uma peça teatral, etc. Não, porque o existente necessita tergiversar, dialogar, ilar. É como se cada fundamento que existe só compreendesse sua própria existência quando deparado com outra existência, com o outro. Não é que não seja necessária outra existência, e sim, que para compreender a dimensão de uma, é necessária a outra.

Tudo ao nosso redor é demonstração de existência, mesmo aquilo que muitas vezes desprezamos ou achamos sem sentido, nem por isso aquilo que desprezamos ou achamos sem sentido deixa de ter existência. Aliás, “qual a palavra que nunca foi dita”, trecho da música “Paula e Bebeto”, de autoria de Milton Nascimento?  Isso é sinfônico... Nós, que um dia fomos criados, também temos o poder de criar e de destruir, que por sua vez é apenas o reverso da medalha da criação, portanto, outra criação. Desfazer o que foi feito é também fazer desfazendo.

Os percursos escolhidos designam as concepções de existências. Nisso reside um labirinto. Por que esse roteiro e não outro? O que vocês que estão lendo agora estão pensando? O que se passa na cabeça do leitor? 

Não parece ironia escrever um texto cujo tema é Existência e não chegar a conclusão nenhuma? Seria pretensão e presunção definir algo tão caro e tão subjetivo a cada pessoa. Nisso se esconde mais um labirinto polissêmico de tal conceito.

Cada um é convidado a construir uma teia de significado de sua existência, embora a de todos esteja irmanada, iliçada, associada. Se dependemos uns dos outros para construir uma rede de significações de existências, ainda que a condição ontológica de existir seja ser, mesmo que Heidegger não tenha definido o que vem a ser o ser, então somos corresponsáveis, copartícipes no processo de elaboração, reelaboração, significação, ressignificação que cada ser humano elabora sobre a existência. E isso aumenta nossa responsabilidade.

Essa é uma das opções do labirinto, à medida que nos emancipamos, nos tornamos cada vez mais responsáveis, cônscios de nossos próprios destinos, aumenta consequentemente a responsabilidade para com o outro, afinal, uma existência isolada, absorta em si mesma definha. Isso é uma opção existencial: descobrir a luz e voltar para resgatar os que ainda estão nas trevas ou seguir um caminho por achar que aqueles que estão na escuridão não querem ou não tem condições de saber o que é a luz.

surgem todos os teoremas filosóficos existentes até hoje. O que é existência? O que é luz, o que é escuridão? Será que não é pretensão estender ao outro uma concepção que me é subjetiva, que vale para mim e não para o outro? Não é uma atitude etnocêntrica estabelecer qualquer parâmetro de julgamento a partir do que cada um estabelece como verdade? Sim, mas é possível estabelecer qualquer coisa sem parâmetro ou sem a percepção subjetiva sobre qualquer coisa?

Quando alguém escreve, ministra aula, dança, atua num filme, ama, chora, faz por si e para alguém. O nada inexiste em contraposição ao que é. Ninguém ama o vazio, se se ama o vazio ele já passa a ser pleno de amor. Quando se pensa sobre o nada, o nada se desnadifica e começa a receber significação de quem atribuiu sentido. Se inventamos culturalmente um sentido para existência a existência passou a ter existência, ainda que seja uma invenção.

Se estamos tanto tempo procurando respostas ou elaborando novas perguntas é porque existe algo de sentido em atribuir sentido para isso que foi construído. A pergunta é: por quê? Todos ao seu modo possuem respostas; conscientes ou inconscientes, claras ou obscuras, cheias de certezas ou dúvidas, movidas pela fé ou pela descrença, ideológicas ou alienadas, sinceras ou mentirosas. O que não cabe é um julgamento moral sobre as opções de cada indivíduo, caso tal decisão não implique violência física ou simbólica, no prejuízo de outrem.

O poeta Nauro Machado disse: “ser poeta é duro e dura uma existência”. Ao enunciar esse epitáfio existencial, coloca a urdidura da escrita se confundindo com a própria ideia de existir amalgamada pela capacidade poética de anunciar sua vida ao mundo. Sua poesia existencial, sua condição de poetar é dura, e tem durado toda a sua vida. Duro não significa não belo, não pleno de gozo /ou regozijo, ao contrário, o gozo em poetar, o regozijo de descobrir o sentido de sua existência é duro, difícil, como se andassem juntos o tempo todo mesclando dialeticamente angústia e prazer, eros e thanatos, “penicilina e dor”, encantamento e espasmo.

Cada um expressa de sua forma uma composição existencial e compete a cada um o recolhimento de tal construção. Não há um julgador, não há um tribunal, como se existisse uma única regra que todos deveriam seguir, um punidor esperando ao final da vida com uma régua, uma palmatória pronta para castigar aqueles que não conseguiram SER.

Dizer que não há um único caminho e que todos devem procurar os seus não implica afirmar que a existência não faz sentido e, portanto, que cada um pode elaborar a sua própria concepção de vida. Não se pode escolher qualquer elaboração existencial posto que, como vivemos interacionados, a escolha que fazemos repercute e tem consequências sobre os demais. Há sim uma perspectiva existencial que paira e deve nortear todas as pessoas: a felicidade, razão pelo qual existimos. Logo, não é qualquer escolha e caminho que devemos trilhar, afinal, se a escolha implicar prejuízo de outrem ou até mesmo da humanidade, não é o melhor percurso.

Não existem limites para as percepções existenciais, mas existem para as escolhas e suas consequências. Cada ser humano possui uma capacidade inimaginada para fruições, sensações, construções discursivas, imaginação sobre a existência, inclusive sobre a questão da felicidade, porém, quando saltada do plano da imaginação para o da efetivação, as perspectivas e possibilidades de encetação no plano das condições objetivas de vida se reduzem. E por que isso? Para que a noção de felicidade, ainda que subjetiva, plural, polissêmica, cultural, individual, não ultrapasse, não despreze a dimensão do eu coletivo, do que existe de um em todas as pessoas, ainda que prefiguradamente e muitas das vezes não perceptível. Desprezar a dimensão coletiva, pensar apenas na condição subjetiva privada, individual e restrita é colocar em risco a própria existência humana, pois se cada um em busca de sua felicidade despreza as implicações de tal decisão e ação sobre o outro, a tal felicidade se tornaria uma disputa famigerada de egos insuflados autorreferenciada, autossuficiente, em que a condição axiológica do bem viver seria suplantada pela antiética. Por antiética entende-se qualquer ação desrespeitadora da condição ôntica dos indivíduos.

Ética é uma construção cultural? Vida? Felicidade? Coletivo? União? Solidariedade? Etc.? São dispositivos linguísticos constructos da linguagem com capacidade de dar sentido às coisas? Sim, mas, inventou-se algo até agora melhor que tais dispositivos em se tratando de viver coletivamente? Não, haja vista que toda a história da humanidade foi alicerçada na busca de tais princípios. Então, se são meras invenções da linguagem são o que de melhor nossa capacidade sensorial, ontológica inventou até o momento e são os elementos norteadores de nossa frágil existência.

A linguagem é ao mesmo tempo um dispositivo da existência e o princípio criador dela. Dispositivo porque a capacidade de compreensão sobre qualquer coisa só é possível mediante a linguagem, ou seja, o sentido sobre tudo o que é só é perceptível porque o meio, a linguagem, estabelece a relação entre o significante e o significado, entre a coisa que representa e a coisa que é representada, segundo Diderot. Princípio criador dela porque a linguagem tem a capacidade de enunciar algo novo, literalmente CRIARE, mesmo que ainda não exista entendimento total sobre aquilo que está sendo criado e as relações sígnicas não estejam estabelecidas. Cria porque o ato potencial presente em uma ideia sobre algo ainda não existente é decorrente do desejo, ou seja, algo que já passou a existir, mas necessita de um meio, um suporte, no caso, a linguagem para ser expressada, ganhar contornos reais. Por exemplo, quando Deus disse: Faça-se a luz! Fiat Lux, a luz foi criada por intermédio da vontade divina em existir a luz potencializada na conjugação do verbo fazer, criar, existir. Portanto, quem criou tudo o que existe foi a palavra, expressão de um desejo e possibilitadora da compreensão sobre o existir. A linguagem cria e dá suporte de entendimento sobre o que foi criado. 

Ao longo da história, dominar os códigos culturais, tal como as diversas linguagens, deu origem a tantas disputas, guerras, genocídios, assassinatos. Dominar, controlar os elementos de compreensão sobre a vida era como ter acesso ao Éden, ao Alfa, ao Santo Graal, à chave de compreensão sobre quem nós somos, de onde viemos, para onde vamos, qual o sentido da vida.

Em nome dessas respostas surgiram religiões, filosofias, teorias, epistemologias, etc., muitas vezes digladiando entre si advogando cada uma a legitimidade sobre a verdade, a última palavra, o ponto final, o ômega, todas, no entanto, sem uma clara posição quanto ao fato de serem a derradeira e definitiva posição sobre a existência. Qual a verdadeira? Qual a derradeira?

Isso é absolutamente pessoal, como todo esse texto, ainda que baseado em leituras e experiências, que a verdade sobre a existência não está fora do indivíduo, mas dentro dele. É como se fosse uma relação simbiótica: precisamos dos outros para a construção de sentidos existenciais ao mesmo tempo em que é necessário se afastar dos que os outros falam acerca do que vem a ser a verdade existencial para o recolhimento e construção do que cada um entende sobre ela. É um dentro e um fora, um ser e não ser, uma dialética. É como se só fosse possível testar uma percepção existencial existindo coletivamente ao mesmo tempo em que o indivíduo, ainda que integrado aos outros, necessite de uma particularidade privada, uma subjetividade suficiente para perceber em que medida o que os outros advogam enquanto verdade existencial não serve para si, tem que ser construído sozinho-coletivamente.

É como a relação entre Eros e Anteros na mitologia grega: todas as vezes que Anteros se afastava de Eros ele decrescia, todas as vezes que se aproximava, acontecia o contrário.

Chega um momento, para muitos nunca chega porque não querem enfrentar esse diálogo consigo mesmo, que é necessário deixar de lado vozes, cascas, gorduras de investidura afastando nós de nós mesmos, para sabermos afinal o que caracteriza nossa existência, qual o sentido de nossas vidas, fazer um balanço de tudo o que temos vivido e obtermos alguma resposta, qualquer que seja ela.

Se algo incomoda, se tem alguma coisa sensível que nos indica de que o percurso não foi o melhor, uma inquietude aplacando o espírito, é momento de reflexão, de sondar o porquê de tal sensação. Não necessariamente eliminar a angústia existencial, caso contrário vamos acabar com a literatura, as artes em geral, os compêndios filosóficos, as religiões, a psicanálise, enfim, tudo derivado dela, porém, nenhuma angústia deveria se perpetuar ao longo de uma vida, afinal, a angústia em vez de ser um meio para se chegar a certos questionamentos e descobertas, passar a ser o fim em si mesmo. A vida fica insuportável e insustentável.

Por outro lado, temos construído culturalmente um olhar extremamente pessimista sobre os problemas, as dificuldades da vida, os sofrimentos, numa espécie de cissiparidade sobre a vida, quer dizer, como se somente os chamados momentos bons, felizes, fossem o cômputo geral do sentido de viver. A nossa visão atomística, especializada, segmentada sobre tudo também confere presença na sensação de bem-estar, como se os momentos pelos quais estamos imersos nessas circunstâncias não compusessem o quadro amplo da existência. A sociedade contemporânea refuta as dificuldades, não nos depararmos com a dor e sofrimento, e isso não é apologia ao estoicismo e crítica descontextualizada do hedonismo, e sim, um olhar sobre a sociedade narcísica signatária de valores como o da ostentação, opulência, riqueza a todo o momento e custo. Demonstrar qualquer sinal de fraqueza ou mesmo de sofrimento está automaticamente associado ao fracasso pessoal, quando é a face da mesma moeda, ou seja, só é possível perceber um referente quanto contraposto ao outro, como afirmou Kant.

Resignação, resiliência, foram termos e conceitos desgastados pelo uso às vezes irracional das religiões que verteram o signo do prazer e do bem-estar como algo marcado por um sinal negativo, uma espécie de culpa e expiação por conseguirmos ser felizes em meio ao mundo de pecados e horrores. Resignação não é conformismo, é compreender a dialética dos sentidos opostos da vivência num movimento por vezes sincrônico e diacrônico, como a própria dinâmica da vida. Resignação não é automutilação, castração, pietismo, alienação, é sabedoria por entender que certas coisas simplesmente não podem ser simplesmente porque não podem, não está no nosso alcance ou compreensão, não depende de nossa ação ou vontade. Certas coisas dependem de nós, outras não. Às que dependem são de nossas responsabilidades, outras são dos outros. Parece contraditório com o conteúdo desse texto inicial quando mencionado o existencialismo sartreano, mas não é. É reconhecer que a minha existência depende de mim, outras existências, não. O homem não é a medida de todas as coisas, somos parte de uma complexa rede de significações do existir.

Enquanto não sabemos qual é a verdade, trata-se de uma busca contínua, o melhor percurso me parece ser viver da melhor forma possível. A melhor forma possível não é viver de qualquer jeito, mas de uma forma comprometida consigo em primeiro lugar, depois com o outro. Só é possível viver bem com o outro quando estamos bem conosco.

Sócrates, certa vez, antes de tomar cicuta, afirmou que se havia um lugar melhor que a terra seria para lá que ele iria, afinal, era um bom sujeito. Se não houvesse tal lugar ele estaria em paz consigo mesmo porque viveu a melhor vida possível.

É importante o papel dos outros no exercício de construção de uma ideia de existência? Sócrates não chegou a essa elaboração sozinho, tampouco suas palavras serviram apenas para ele. Ainda assim, a decisão de ser uma pessoa boa, com todas as implicações que tal conceito consiste, é absolutamente individual.



terça-feira, 15 de julho de 2014

“Olhos que não posso ver”.


 JOSÉ ANTONIO BASTO
Poeta


Quanto tempo sem te ver/ Hoje eu quero recordar/ Os seus beijos seus carinhos/ Que eu não consigo esquecer/ Eu não sei por onde andas / Talvez nem lembre o que passou / Mas eu não esqueci ainda / Serás sempre o meu amor. Refrão: “Vou vivendo/ E só te encontro nos meus sonhos / E cada dia mais distante / Dos olhos que não posso ver”.  Assim é a música de Bartô Galeno, um dos maiores ícones do brega romântico brasileiro. O “Eu” lírico adentra no mais profundo sofrimento amoroso, numa intensa saudade da mulher amada tentando recordar momentos vividos e não vividos quando juntos eram felizes. Os afagos do coração dilacerado pela saudade incontrolável deixa no ar as chamas do pranto derramado pela dor de não ter lutado em busca da felicidade junto a pessoa amada. A encarnação de não conseguir esquecer o único amor fica abismado e indeciso de acreditar se o seu amor ainda lembra de alguma coisa, pois o ser que clama e sonha com mais uma chance reafirma com pura convicção e sem medo de recordar que ainda ama de todo coração. Melancolicamente o “Eu” lírico tenta viver mesmo sabendo que há tempo foi condenado a penar por amor, a fantasia então nesse instante entra em cena na proporção em que o mesmo diz que só encontra a pessoa amada em seus sonhos, fazendo morada um ar de platonismo sobrenatural que aquela alma até então imaginada gêmea está a cada momento mais distante da ótica que o amante não pode ver. Para acentuar é importante saber que a coisa que se diz “amor” desde os primórdios da humanidade que é cantado por poetas e cantores, pois atire a primeira pedra quem nunca passou por essa experiência no que se diz respeito algum relacionamento. Temas como saudade, sofrimento, sonho, distancia... emfim são tijolos que compuseram e compõe a construção de uma boa poesia. Sabe-se de práxis que a tristeza amorosa se torna bonita em música. Quando se estuda o ensino médio, os alunos são obrigados a passar por vários períodos literários (escolas literárias e movimentos de épocas), são muitos no currículo, mas o curioso é que apesar de tantos períodos o mais marcante foi o “Romantismo” - com a melancolia de sempre, pode até ser chato ainda nos dias de hoje se falar em pessoas românticas que escrevam cartinhas de amor decoradas. Chegou um tempo em que os cavaleiros tratavam suas damas com respeito... Era o tempo do tradicionalismo das serenatas nas calçadas e janelas, o tempo em que as músicas tinham letras, tempos estes que não voltam mais. Isso ainda se pode perceber na lírica de Bartô Galeno e de muitos nomes da MPB. A música romântica tem suas grandes diferenciações dos outros estilos e gêneros é um martelo que bate e zine no eco que o mundo inteiro ouve sua pancada. Em “Os olhos que não posso ver” esses conjuntos de virtudes estão interligados sobre um fio condutor que leva as personagens junto a um mundo de ilusão que pode ser tornar real dependendo da força de vontade para a realização desejada. Castro Alves -, poeta da terceira fase do romantismo no Brasil completa a temática dessa explicação em seus versos: “O coração é o colibri dourado / Das veigas puras do jardim do céu. / Um - tem o mel da granadilha agreste, / Bebe os perfumes, que a bonina deu. / O outro - voa em mais virentes balças, / Pousa de um riso na rubente flor. / Vive do mel - a que se chama – crença -,  / Vive do Aroma - que se diz – amor”. Esse é o poder da canção e das palavras amorosas que apesar da época em que nasceram atravessaram as barreiras do tempo. E aí Camões estava certo quando escreveu: “Ah o amor... que nasce não sei onde, vem não sei como, e dói não sei por quê?




quinta-feira, 10 de julho de 2014

Danke, Deutschland 7 x 1 Brasil

Há quem pense que tudo no Brasil é tristeza após a "humilhação vexatória" por ter perdido para a Alemanha de 7 X 1 numa semifinal em casa, mas não é não. Antes de qualquer coisa, a família de Barbosa, goleiro da seleção brasileira de 1950 que perdeu para o Uruguai em pleno Maracanã por 2 x 1 deve estar aliviada. Ele foi injustamente acusado do vexame cognominado de Maracanaço, quando na verdade não foi, e sim, a arrogância brasileira em comemorar a vitória antes do apito final, além do que, perder por 2 X 1 não é vexatório, sobretudo para aquele timaço do Uruguai.

É que como uma sociedade ufanista, extremamente emotiva como o Brasil, é difícil fazer o exercício de reflexão e assumir as próprias responsabilidades, erros e incompetências, acusar alguém ou procurar um bode expiatório é mais cômodo. Naquele caso foi Barbosa, vitima do racismo e da falência do discurso de democracia racial brasileira. 

E nesse último, da derrota para a Alemanha em casa, numa semifinal batendo todos os recordes negativos? Estão ainda procurando os culpados e me parece que o arrogante técnico Luis Felipe Scolari será a bola da vez, de fato tem muita participação nisso, mas não é o único.

O artigo escrito pelo tetra campeão e Deputado Federal, Romário, ex-jogador do Vasco, Flamengo, PSV, Barcelona, Sevilha, Fluminense, sobre os casos de corrupção na CBF (Confederação Brasileira de Futebol) é bombástico e revelador do grau de desestruturação e montagem de um esquema de corrupção montado em cima do futebol.

A utilização politica do futebol não é nova e neste ano de 2014 as coisas ficaram mais expostas. Há quem vá discutir as táticas de Scolari, a convocação, a péssima preparação fugindo do foco, o excesso de marketing, blá, blá, blá, é tudo verdade, mas é apenas sintoma, não a origem do problema.

O futebol brasileiro, usado como válvula de escape ao nosso verdadeiro fracasso, o social, fez uma opção, leia-se, os dirigentes esportistas, por alavancar economia, mercado consumidor, pane et circense, falta de seriedade e compromisso, corrupção, lucros adquiridos pelo espetáculo midiático futebolístico. Isso merece uma reflexão.

O futebol se tornou sucesso no Brasil por um conjunto de fatores (já nomeie alguns no artigo: o legado da copa 2014, há algumas semanas), dentre eles; espaços destinados ao lazer que serviam de preparação aos nossos futuros jogadores; ausência de profissionalização permitindo a espontaneidade dos campeonatos de várzea e a epifania a partir dos chistes dos dribles; gols; comemorações; clara compreensão de que era um instrumento de reconhecimento social e racial, vide a estrutura perversa e elitista das estancias burocráticas brasileiras; um sentimento de vingança em relação aos ricos, já que no campo de futebol as diferenças sociais se aniquilavam, o que importava era o talento. Exemplo disso na Argentina é o Maradona: nasceu em bairro pobre, disse aos 09 anos que um dia compraria uma casa para sua mãe, se filiou aos movimentos sociais de seu país e vingou a Argentina por conta da guerra das Malvinas derrotando a Inglaterra num gol antológico na copa de 1986 no México. Resultado: virou deus...Tem até a religião maradonista.

No Brasil racista Nilton Santos, Didi, Vavá, Pelé, Garrincha foram cultuados. Poderiam ser de outra forma? Ao longo dos anos nós brasileiros nos acostumamos mal em ver Garrincha fazer com adversários de países desenvolvidos uma espécie de desforra. O país sempre foi motivo de piada internacional, no futebol, nossa vingança.  Era uma forma de sermos respeitados já que os dados sociais eram e ainda são de chorar.

O problema é que o processo de internacionalização do futebol virou empresarial. Jogadores cada vez mais cedo rumando para a Europa virando sonho de consumo das novas gerações, a tal ponto que muitos jogadores sequer são conhecidos em clubes brasileiros, inclusive os da seleção brasileira pouco atuaram no Brasil.

Ganhando milhões de dinheiro poucos assumiram posições politicas sempre optando pelo estilo Pelé de fazer politica, ou silenciando ou omitindo-se, ou até mesmo no caso do próprio Pelé apoiando a ditadura, depois sendo ministro de estado. Muitos jogadores sempre optaram por ficar bem na fita. Exemplos de sucesso adoram exibir seus carros, roupas de grife, espelho de quem venceu pelo esporte. As questões sociais sempre foram deixadas de lado.

O futebol brasileiro fez uma dura opção pelo elitismo, expulsando os pobres dos estádios com ingressos cada vez mais caros, vinculando diretoria dos clubes à torcidas organizadas, sendo patrocinadas em troca de apoio administrativo. Assistiu-se um espetáculo de horrores com guerras de verdadeiras gangues, fruto da ausência de perspectiva social e da impunidade.

O futebol, como qualquer coisa no capitalismo, virou uma mercadoria, um espetáculo midiático e financeiro em busca de mais dividendos tendo por detrás uma megaestrutura empresarial, inclusive sendo fulcro de lavagem de dinheiro. Clubes viraram empresas, jogadores, trabalhadores sem vinculo sentimental com os clubes que os revelaram. Qual o resultado disso? Um longo declínio técnico dos jogadores em busca de fama deixando de lado a paixão e a feição cultural do povo brasileiro por futebol por necessidade de vencer, leia-se, dar resultado. A derrota da seleção de sonhos canarinho em 1982 teve grande parcela nisso. A vitória do pragmatismo tencionou tal esporte a ser um apanágio burocrático.

O orgulho brasileiro em driblar, gingar, foi substituído pela vergonha em não dar resultados. O último título brasileiro tinha sido em 1970 com a melhor seleção de futebol de todos os tempos. 24 anos depois o Brasil seria tetra campeão mundial com um futebol horrível, mas eficiente. Dai pra frente o futebol brasileiro nunca mais seria o mesmo.

Os episódios do vexame histórico da derrota de 7 x 1 para a Alemanha são o ápice do começo do fim de uma era do futebol. Toda a farsa montada em torno do evento veio às claras; a falta de organização na preparação do evento; falha na reforma dos estádios; aeroportos; problemas de mobilidade urbana acompanhada de uma onda de protestos sacudiram o país em 2013 e também em 2014. A FIFA foi desmascarada: não passa de uma entidade empresarial cujo objeto de produção é lucrar com a atividade futebolística, escondendo uma rede de interesses e intervenções politicas. O Brasil seria a cereja do bolo: isenta de impostos exatamente na copa que deu maior lucro a entidade, no país que tanto ama o futebol.

Estava tudo pronto. O evento se aproximava e as manifestações arrefeciam-se. Os grandes transtornos em decorrência da falta de organização não comprometeram o evento, a média de gols é a mais alta desde 1982, um belo espetáculo apoiado por um povo hospitaleiro que foi às ruas comemorar o evento, a seleção brasileira passando de fase, um evento tecnicamente surpreendente como nos velhos tempos... Até cruzar nosso caminho uma seleção chamada de alemã.

Absurdamente simpática com o povo brasileiro, a seleção que mais interagiu com a sociedade numa demonstração clara de empatia e encantamento, os alemães se preparam durante 6 anos para tal copa e reestruturam o futebol após a derrota para o Brasil na Copa de 2002, jogaram como se fossem brasileiros, tecnicamente muito superiores. Foi a vitória da disciplina contra o desleixo, da organização contra o improviso, do comprometimento versus a farsa da utilização sentimental e pressão por jogar em casa, da simplicidade contra a ostentação e opulência, da serenidade versus o escarnio e deboche, do profissionalismo contra a utilização ufanista e midiática de uma seleção que é a própria cara do país: odeia receber criticas, tudo se ofende, não é acostumada a contraposição, ao diálogo, vide a forma prepotente como o técnico Felipão se relaciona com as criticas e a imprensa, sempre disposto a brigar.

Somente uma derrota dessa envergadura seria capaz de mexer com as estruturas de nosso país. A humilhação legou aos brasileiros a necessidade de enxergarem futebol apenas como um esporte, aliás, cada vez mais longe dos setores mais pobres, de repensar a dependência que temos de ver a pátria de chuteira, como se a seleção fosse a nossa tabua de salvação. Já foi, mas não pode ser mais posto que seja muito pouco, a vida depende de outros fatores e não apenas do futebol. Precisamos de saúde, educação, moradia, segurança, mobilidade, distribuição de renda, se vier acompanhada de um bom futebol, ótimo, senão, paciência.

O curioso dessa Copa de 2014 é que toda a farsa montada em torno dela desmoronou: pululam os escândalos de venda de ingressos envolvendo altos escalões da FIFA, o caso do suposto suborno em torno da Copa do Qatar em 2022, os compromissos sociais que a FIFA não cumpriu, como o do tatu bola, por exemplo, mascote do evento, dentre outros.

Se o Brasil vencesse a Alemanha ou perdesse de poucos gols ou nos pênaltis nada dessa ressaca sadia estaria acontecendo. Se ganhasse a copa a histeria coletiva seria o vórtice. Somente uma débàcle como essa é capaz de abalar convicções e certezas. A primeira delas é que não somos mais já algum tempo o país do futebol e nem possuímos os melhores jogadores porque a pragmática de vencer verteu a habilidade em jogar numa relação simbiótica de força e velocidade, ou seja, a arte de jogar que estava no imaginário coletivo se perdeu pela implosão autossugestionada em apenas derrotar o adversário usando a força física. A segunda convicção é de que não há mais espaço para a politica de pão e circo à custa de dinheiro público, sem responsabilidade e compromisso social. O preço é alto demais. A terceira é que a péssima fase de preparação para o evento fez surgir um sentimento de revolta e indignação porque todo o circo foi bancado com dinheiro dos contribuintes, uma quebra do compromisso quando foi firmado de que quase todos os gastos seriam pagos com investimentos privados. Resultado: quando os brasileiros disseram que o futebol não os representa, uma longa modificação na concepção politica começou a se processar.

O fato de nossas contradições terem sido expostas mundialmente foi outro fator positivo. Apesar da boa imagem em geral que ficou nos visitantes, as feridas foram abertas e escancaradas e passamos a ser pauta de debate internacional não pelo avanço das questões sociais, mas pelo que ainda de muito falta. É claro que a simpatia e a hospitalidade dão ao mundo um toque de esperança quanto à crueza das relações sisudas e pragmáticas, até mesmo impessoais, mas afora isso, no geral, soçobram criticas a quase tudo.

Do lado alemão, fiquei embasbacado pela relação de respeito para com os brasileiros. Recusaram-se a tripudiar da dor dos jogadores, foram extremamente respeitosos e carinhosos depois do jogo, literalmente tiraram o pé no segundo tempo e ainda postaram nas redes sociais que era necessário respeitar a tradição do futebol brasileiro. Estavam fazendo média com os anfitriões? Duvido... Isso se chama educação e a consciência de que a vida é maior que o futebol, logo eles que já perderam tantas finais.

Portanto, para o bem do futebol foi muito importante aquele vexame. Se a seleção brasileira ganhasse a copa do mundo com aquele futebol medíocre, bagunçado, desorganizado, seria um desserviço ao esporte. Só lamento que as coisas na CBF não vão mudar. Conseguiram macular um traço cultural do povo brasileiro, uma herança de sentimento e vinculação artística. No entanto, como todo processo de mudança politica estamos no começo do fim, nesse caso, não do futebol, mas de uma modificação nas relações de sociabilidade qual o futebol é caudatário e símbolo ao mesmo tempo.

Danke, Deutschland, obrigado, alemães, nem toda derrota é fracasso, nem toda a vitória é alegria. Se as feridas deixadas pelo massacre servirem como suporte para um processo de mudança, nunca uma derrota terá sido tão benéfica. Futebol não é apenas futebol, sobretudo em se tratando de Brasil.

Só lamento pelos jogadores que ficaram marcados pela derrota e pela tristeza do povo brasileiro que tanto esperou por esse momento e abraçou o evento fazendo da Copa de 2014 a copa das copas. Tudo bem! Um dia a dor passa, ainda que levem 64 anos, como a da família de Barbosa que esperou para viver e respirar aliviada.                                     
     


                 

quinta-feira, 3 de julho de 2014

uma final im(provável)

 Os olhos atentos do anjo das pernas tortas vagueiam perscrutando o lado direito por onde ele jogava. Acha estranho um homem forte, robusto, encorpado, tomar conta de um setor outrora dominado por ele e que se chama por um nome de um personagem em quadrinhos. 

Procura seus antigos parceiros ou quem mais possa se aproximar daquela antiga forma de jogar, mas só encontra marcação forte, passos rápidos, necessidade de força física acima da técnica, muito estranho esse novo jeito de jogar.  

Atenta para um esquálido de mechas loiradas, estilo pica-pau, tatuado, talentoso, que acaricia a bola com uma intimidade típica dos antigos deuses do futebol. As atenções se voltam para ele, às esperanças também. Não reconhece sua antiga casa; está diferente, menor, todo mundo sentado, não há bandeirolas ou bandeirões, instrumentos musicais, muita gente de amarelo entoando sempre o mesmo canto ufanista, sem criatividade, mas freneticamente cantado como se fosse o décimo segundo jogador. Isso não mudou. 

De tanto tentar se reconhecer nessa que já foi sua morada não atenta para o adversário vestido de azul e branco, um antigo oponente, sempre difícil, rival, lutador, combatente, guerreiro, habilidoso. Não desistem nunca, bravejam, vociferam, não querem perder, sobretudo para o seu arquirrival.

Será uma final de Copa América? Não, há muitos jornalistas estrangeiros e gente engravatada, cartolas, televisões, flashes, ansiedades, clima de guerra no ar. Então, do que se trata? Por que há tanta gente no entorno do estadio e a sensação de que o país parou para essa partida? Não, não pode ser... Será de fato que está acontecendo o que ele imagina? É isso, o improvável aconteceu? Uma final de Copa do Mundo no Brasil entre a seleção canarinho e a Argentina. 

Os letreiros eletrônicos ao derredor do gramado mostram como as coisas mudaram. Há muito dinheiro envolvido, a ingenuidade se perdeu, já não é mais um espetáculo romântico, e sim um evento a serviço do capital, cuja bola, outrora amada, agora virou panaceia mercantil de uma entidade gananciosa, empresarial que faz do futebol seu objeto de produção e circulação de consumo. Os torcedores que dantes habitavam esse templo foram limados da possibilidade de assistir esse estranho espetáculo agora feito para os que acumularam o vil metal. Veem-se ao longe as luzes cintilantes das casas do morro da Mangueira mais parecendo o céu no chão salpicado de estrelas onde nada distraídos seus moradores não piscam e nem desgrudam dos televisores. Estranho! Tão perto tão longe do estádio. 

Os convidados tentam estragar a festa. Há um branquinho, franzino, cuja bola não desgruda de seu pé esquerdo independentemente da velocidade que entona. Raro de se ver. A cada lance de perigo ouve-se o uhhhh!!!! Seguido de cantigas empolgantes, provocadoras, estimulantes o tempo inteiro, mesmo se a jogada oferece perigo de gol a eles. 

De repente pára para ouvir o que a torcida adversária entoa, pois um nome conhecido é reconhecido por ele: Maradona es más grande que Pelé. Que ousadia!! Ele não sabe quem é esse tal de Maradona, mas certamente não pode ter sido melhor que seu antigo parceiro da bola. Com ele ganhou duas Copas e foi o personagem central depois que Pelé se machucou na de 1962, no Chile.

O jogo está empatado. Se encaminhando para o final. É tenso. Vai para a prorrogação.

De repente, o magrinho com a amarelinha pega a bola no meio do campo, dribla um, dois, três adversários, toca para o homem forte que ocupa sua antiga posição, ele devolve na frente de dois zagueiros e num lance genial ao invés de chutar dribla também o goleiro e só não entra com bola e tudo porque teve humildade.

O Brasil é campeão, na verdade hexa. Choro, comoção, delírio e um cântico ensurdecedor ecoando: é campeão, é campeão, é campeão! Alguns empaletozados se sentem aliviados afrouxando os nós das gravatas, afinal, se o Brasil não ganha o titulo não se sabe como seria a reação do público, aliás, ele não entende como algumas pessoas vestidos de preto marcham e enfrentam a policia protestando contra a copa do mundo. Mas como? O Brasil é o país do futebol e como pode haver pessoas contra? Ele não entende nada. De fato muita coisa mudou, o que não mudou foi o delírio fremente e entorpecedor da massa altaneira e feliz pelo titulo esquecendo-se inclusive dos augúrios da vida, de como será o dia seguinte, agora não importa. Por mais quatro anos o brasileiro pode erguer a cabeça e sentir-se o rei do mundo, pelo menos no futebol. E alguma mais importa que isso? Nas dimensões daquelas quatro linhas são deuses imaginados pairando numa atmosfera em que sofreguidões não existem, pelo menos por 90 minutos.

Mas se existe um vencedor existe também um perdedor. Eles estão chorando, alguns fitam os olhos na comemoração dos brasileiros percorrendo o campo, se aproximando da torcida efusivamente. De repente os jogadores brasileiros tomam uma decisão inusitada: se aproximam dos hermanos e pedem para trocar de camisas. Sobem os degraus que levam em direção à taca do mundo vestidos de azul e branco listrados, a equipagem dos adversários. O estádio inteiro chora não de tristeza, mas de comoção. Dão-se as mãos torcidas rivais, se abraçam por um instante se esquecendo das disputas regionais e de como o futebol por vezes é válvula de escape de tantas frustrações e canalização de projeção, por isso sua magia. Somente nesse espaço argentinos e brasileiros podem se unir olvidando passado e presente de controle econômico e politico da região, da tentativa de sobrepujar um ao outro, abortando inclusive o projeto pan-americano de construção de uma identidade latino-americana.

Por um instante as diferenças se apagam e o mundo abismado se comove perguntando como um histórico de tantas rivalidades pode dar espaço a um sentimento de ilação tantas vezes frustrado de ambos os lados. A magia do futebol contagia o mundo e antigos adversários se abraçam. É apenas um esporte, apenas uma competição cujo poder atrativo unifica o discurso pela técnica, não pelo poder bélico.

Foi isso que o anjo das pernas tortas sempre pensou. Foi isso que tantas vezes vicejou. Lentamente ele vai caminhando para o vestiário enquanto o estádio explode em alegria com os olhos marejados. Todo mundo à sua época queria que ele levasse a coisa a sério, mas se esqueceram de que era a alegria do povo exatamente por não levar aquilo a sério, e sim, por brincar, ziguezagueando com os zés, sempre pro mesmo lado.

Enquanto os campões iriam posar de estrelas, ganhar milhões, ele simplesmente iria voltar para a sua pequena cidade, longe dos holofotes, do glamour e continuar a fazer o que mais gostava: jogar bola, ou seja, ser feliz, simplesmente.                    

Entrevista com Arton, de Sirius. Parte II

  Entrevista realizada no dia 14 de fevereiro de 2024, às 20:00, com duração de 1': 32'', gravada em um aparelho Motorola one zo...